Monique Prada, trabalhadora
sexual, faz um levantamento do PL 4211/2012 – que trata da questão da
regulamentação do trabalho sexual.
*por Monique Prada, em
mundoinvisivel.org
Papo vai, papo vem e o assunto é
“PUTA”. Citadas a torto e a direita em mesas de debates, em cínicas reuniões de
combate ao tráfico humano**, na roda feminista ou mesmo em locais nem tão
honrosos assim (como a boca de pastores e religiosos em geral, por exemplo),
fato é que desde que a questão da regulamentação do trabalho sexual voltou à
pauta, por conta e obra da Grande Puta Gabriela Leite e do deputado Jean
Wyllis, não mais tivemos paz. Gente que até noites antes de o PL 4211/2012 ser
apresentado não queria nem ouvir falar de nós agora vive com a puta na boca,
hora se posicionando contra, hora a favor – fato: toda e todo a cidadã
brasileira e cidadão brasileiro hoje tem um pitacozinho pra dar sobre a vida
das mundanas.
Então – e não que a minha palavra
seja de grande valia neste debate (como prostituta, incrivelmente faço parte do
grupo de pessoas cuja opinião menos pesa nesta questão) – cá estou de volta com
mais um (nem tão breve, mas espero que minimamente esclarecedor) texto sobre a
regulamentação do trabalho sexual. Para facilitar a leitura, desta vez tentarei
separar por tópicos. Lá vamos (e já aviso que a leitura somente será proveitosa
se trabalho sexual pra ti for trabalho, e não algo a ser eliminado da face da
Terra. Aqui lidamos sempre com o conceito de que trabalho sexual é trabalho).
Ponto 1: “O PL 4211/2012 não beneficia em nada as prostitutas, apenas
torna o cafetão empresário e oficializa a exploração da prostituição.”
Afirmação Falsa: o PL Gabriela
Leite visa regulamentar o funcionamento de nosso local de trabalho, tornando as
casas e bordéis, que hoje no Brasil (e em muitos outros países) funcionam à luz
do dia, porém à margem da lei, locais seguros para o trabalho (o que
inegavelmente nos beneficia). Caso o PL fosse aprovado, as trabalhadoras
passariam a ter mecanismos legais para cobrar o que lhes é devido tanto pelo
dono do bordel (ou PELA donA!! – pasmem, mas há uma boa quantidade de mulheres
empresárias, donas de bordéis) quanto pelo cliente. E a regulamentação nos traz
não apenas segurança financeira como proteção contra assédio e outros tipos de
violência. Na Nova Zelândia, onde o trabalho sexual é regulamentado,
recentemente uma trabalhadora abriu processo por assédio sexual contra o dono
de um prostíbulo – e ganhou; situação inimaginável em praticamente qualquer
outro lugar do mundo onde a trabalhadora não tenha proteção legal. Agora, por
um instante, pare e pense comigo: se algo é ilegal e mesmo assim funciona,
alguém deve estar ganhando muito pra permitir isso, não?
Ponto 2: “Mas o PL garante um lucro de até 50% sobre os rendimentos das
trabalhadoras, isso é regulamentar a exploração.”
Afirmação Questionável: Seria
interessante pensarmos no conceito de exploração – sempre presente nas relações
capitalistas. Na prática, quantos e quais trabalhadores sabem que percentual do
lucro da empresa sobre seu trabalho chega às suas mãos? Para ficarmos dentro do
tema das profissionais autônomas, eu costumo usar o exemplo das manicures ou
cabeleireiras, que ficam em média com 40% a 60% do valor cobrado por seu
trabalho (e normalmente levam seu próprio material e mesmo clientes, usando
apenas do espaço disponibilizado pelas estéticas). É parecido com o que o PL
Gabriela Leite propõe. O PL prevê que a casa fique com ATÉ 50% do valor cobrado
por um encontro, percentual negociável entre trabalhadora e a casa. Como é
hoje: as melhores casas já não cobram percentual sobre os programas, ganhando
com o consumo e locação de quartos; a maioria das casas, em especial as
clínicas e estabelecimentos que funcionam durante o dia, além deste percentual
(que normalmente já gira por volta desses 50% mesmo), cobra multas. Sim,
multas. Por atraso, por falar palavrão (!!!!), por reclamação quanto à higiene,
por dia de falta ou por qualquer coisa que lhes convier. Considerando que boa
parte do lucro das casas vem dessas ‘infrações’, eu quase chego a crer que
muitas delas acabariam fechando suas portas com a regulamentação.
Ponto 3: “O PL não prevê garantias trabalhistas reais.”
Afirmação verdadeira: O PL prevê
que as trabalhadoras possam atuar de modo autônomo ou em cooperativa, sem
vínculo com as casas de prostituição.
Algumas trabalhadoras com quem falei consideram positivo que não haja vínculo
com as casas, por que costumamos trocar
de casa – ou mesmo de cidade – conforme o movimento. Outras, e cito como
exemplo as mulheres da Articulação Norte-Nordeste de Profissionais do Sexo,
consideram que seria imprescindível o vínculo empregatício, já que atuam por
longos períodos na mesma casa, o que gera compromissos como frequência mínima e
horário a cumprir. O PL peca em não ter sido pensado para essas situações,
frequentes em cidades menores ou mesmo nas grandes metrópoles quando se fala de
trabalho em clínicas de massagem, termas, saunas. Por isso, volta e meia me refiro
a ele como ‘raso’. Mesmo nas casas onde passamos poucas horas nós temos um
horário máximo de entrada e mínimo de saída, o que já caracteriza algum tipo de
obrigação maior da parte da trabalhadora do que da parte da casa – que nos
provê um lugar quentinho e seguro para trabalho, garante movimento e
publicidade, mas no entanto não nos paga um
valor mínimo pelo ‘salão’ (em tempos remotos, algumas boas casas pagavam
um valor básico, que era suficiente para a trabalhadora pegar um táxi até sua
casa em noite de movimento zero).
Ponto 4: “Sendo assim, por que é que vocês não se organizam e trabalham
em cooperativas?”
Boa sugestão, ainda que
controversa: Embora a Constituição de 1988 permita que todo o trabalhador se
organize de forma legal em cooperativas (artigo 174, parágrafo 2), este tipo de
organização é vetado às trabalhadoras sexuais pelo Código Penal – ver artigo
228, que versa sobre exploração sexual e facilitação da prostituição, dentre
outros – se duas ou mais trabalhadoras alugam um mesmo local para trabalhar
juntas, isso legalmente pode configurar que uma explora à outra. (Bom… eu vejo
aí um vácuo legal bem interessante: o trabalho sexual passou a constar do
Código Brasileiro de Ocupações (CBO) em 2005, através do número 5198. Se então,
pela Constituição de 1988 – promulgada antes que a prostituição constasse do
CBO – permite que todo o trabalhador se organize em cooperativa, a partir do
momento que a prostituição passa a constar do CBO, a possibilidade de uma
cooperativa é discutível – ainda e apesar de questões relativas ao trabalho
sexual seguirem constando do Código Penal. Em Ibiza desde fevereiro deste ano
funciona a primeira cooperativa de trabalhadoras sexuais do mundo, e é uma
ideia a ser pensada, apesar das dificuldades financeiras e legais).
Ponto 5: “Regulamentando a prostituição, teremos mais mulheres
desejando exercê-la”
Sério mesmo? Em sendo assim, eu
devo considerar que legalizando o aborto mais mulheres abortarão por dia e em
se legalizando as drogas, todos estaremos permanentemente chapados. É uma
afirmação claramente falaciosa: a regulamentação não afasta o estigma do mesmo
modo que a falta de regulamentação (as you can see..) não impede mulheres de
recorrerem a este trabalho – por talento, gosto ou necessidade. Nada indica que
mais ou menos mulheres desejarão se prostituir – se há algo que condiciona este
mercado certamente não são as leis.
Ponto 6: “Mas mulheres se prostituem por não ter outra opção”
Totalmente verdadeiro: Muitas,
muitas mulheres mesmo aderem à prostituição por não ter saída melhor para suas
vidas, por que consideraram as outras opções piores ou impraticáveis. A mim
este me parece motivo mais do que suficiente para correr e garantir direitos
para estas mulheres – é assim que pensamos em relação ao trabalho doméstico,
não?
Ponto 7: “Mas Monique, trabalho
doméstico e trabalho sexual são coisas completamente distintas”
Olha… Eu vejo semelhanças
bastante claras entre os dois tipos de trabalho, ou principalmente as
circunstâncias que levam a eles. Se não, vejamos: em ambos veremos
possibilidade de exploração infantil (sexual inclusive no trabalho doméstico),
o aliciamento em massa de meninas jovens para exercê-lo em locais distantes de
sua cidade de origem e muitas mulheres os exercem por “não terem outra
alternativa” (cabe ressaltar que muitas prostitutas são oriundas do trabalho
doméstico, trabalho sexual segue pagando melhor do que trabalho doméstico e é
visto como menos humilhante por muitas trabalhadoras).
Ponto 8: “Mas se o trabalho sexual já consta da CBO, por que precisa
regulamentar?”
Explicando direitinho: Incluir o
trabalho sexual na CBO foi sem dúvida uma grande vitória do movimento de
prostitutas brasileiro na década passada. No entanto, de nada adianta podermos
atuar individualmente se nosso local de trabalho é clandestino. Didaticamente
(não me odeie por isso), vamos lá. Imagine-se sendo, por exemplo, uma escritora
– num país onde vender livros escritos por outra pessoa é crime. Tu serias lida
apenas se tivesses grana e condições de imprimir, divulgar e vender teus
próprios livros – e que escritora tem essa condição? Nossa situação hoje é
similar: podemos atuar individualmente, mas poucas de nós conseguem atuar de
modo totalmente independente. Passamos então a ser tão clandestinas quanto
nossos locais de trabalho, e isso com a consequente amplificação do estigma e
todas as questões abordadas em outros tópicos. Veja: toda a legislação
brasileira em torno do trabalho sexual hoje gira em torno da ideia de que
somente podemos atuar sozinhas, o que nos vulnerabiliza e aumenta
consideravelmente o risco envolvido.
Ponto 9: “O PL prevê aposentadoria especial aos 25 anos de serviço.
Isso é bom?”
Não necessariamente: Quando a
profissional tem vínculo empregatício e a empresa é quem paga o INSS, há um
adicional para aposentadoria especial, estabelecido na Lei n.º 9.732, de
dezembro de 1998. Além da contribuição patronal de 20% e dos adicionais de 1%,
2% ou 3%, conforme o risco ocupacional, está sendo cobrado o adicional de 12%,
9% ou 6%, de acordo com a exposição a agentes nocivos que ensejem aposentadoria
especial após 15, 20 ou 25 anos, respectivamente. Então, SE houvesse vínculo
empregatício entre as trabalhadoras e as casas, sim, a possibilidade de
aposentadoria especial seria vantajosa para as profissionais – não é o caso. Em
minhas pesquisas, ainda não encontrei qual seria a contribuição no caso de
profissionais autônomas, mas alguns links apontam mesmo para a dificuldade de
comprovar a exposição a agentes nocivos à saúde e integridade física
(justificativa para aposentadoria especial). No caso de trabalhadoras
vinculadas a uma cooperativa, esta comprovação em tese seria mais fácil.
Ponto 10: “E esse PL passa? Como posso conferir a tramitação dele?”
Com o Congresso que elegemos?
Nunca! Para a tranquilidade geral da Nação e segurança da ~família brasileira~,
não: eu não acredito que esse PL seja aprovado. Eduardo Cunha, em 2007, quando
o PL do Fernando Gabeira, que visava também regulamentar o trabalho sexual, foi
rejeitado, já dizia: “Daqui a pouco vão querer tudo. Todos direitos. Vão querer
até carteira assinada.” O PL 4211/2012 foi à votação em 2013, tendo parecer
contrário por parte do deputado Pastor (sic) Eurico (PSB-PE), na Comissão de
Direitos Humanos. Este ano, Jean Wyllis pediu seu desarquivamento, e foi criada
comissão especial para apreciação da matéria. Na prática, isso apressa sua
votação – e deve novamente ser rejeitado. Para acompanhar a tramitação, basta
acessar o site da Câmara dos Deputados.
Ponto 11: “E se o PL não passar, como vocês ficam?”
Tudo como dantes no Quartel de
Abrantes… Os estabelecimentos seguem
funcionando à luz do dia e à margem da lei, as trabalhadoras de nichos mais
humildes seguirão sendo as mais exploradas, continuarão existindo mulheres cuja
única ou melhor opção será o trabalho sexual e elas seguirão tendo seus
direitos desrespeitados, do mesmo modo que as famosas ~ficha rosa~ seguirão
supostamente cobrando 2 mil reais a hora ou mais. Conservadores e algumas
vertentes do feminismo seguirão resmungando contra nosso trabalho enquanto
seguimos exercendo-o.
Ponto 12: “Mas bah, não tem nenhum outro PL que trate da situação de
vocês?”
Ah, bom.. até tem: Há alguns
outros projetos tratando do tema; vamos começar pelo PL 377/2011, apresentado
pelo deputado federal João Campos, do PSDB de Goiás, modifica o Código Penal
(CP) e torna crime contratar e aceitar a oferta de serviços sexuais. Vale
lembrar que o deputado é o mesmo a apresentar o PL da cura gay (agora me diz:
como é que se reelege uma criatura dessas?) e, adivinha? Também é relator de
outro PL, que prevê a restrição de anúncios de acompanhantes e similares em
jornais e revistas (rá! Acharam que tava pouco?). O PL 377/2011 já tinha ido à
votação, foi rejeitado mas em maio deste ano foi desarquivado. A única
diferença deste PL para o tão bem visto modelo nórdico ou sueco é o fato de ele
não prever políticas públicas que tirem as mulheres da prostituição
capacitando-as a exercer outro tipo de trabalho – no entanto, pesquisando em
blogs de trabalhadoras sexuais suecas, descobriremos rapidamente que as tais
políticas na prática inexistem mesmo na Suécia… que adotou este modelo, o de
criminalização do cliente de sexo pago, em 1999 (bom, estamos em 2015 e ainda
existem trabalhadoras sexuais na Suécia – a mim não parece que tenha
funcionado).
Em resumo e na prática, as coisas
para nosso lado vão, como de costume, de mal a pior. Com o PL 4211/2012
rejeitado, um Congresso cada vez mais conservador e autoritário e cheio de
demandas mais urgentes, vamos ficando de lado. Some-se a isso a perda de
Gabriela Leite e a (as colegas que me desculpem, mas..) nítida dificuldade ou
mesmo incapacidade do movimento de apoiar e empoderar outras lideranças à
altura de Gabriela, mais o pânico moral de um Governo que segue nos vendo
apenas da cintura pra baixo*** e as esperanças são parcas… Sigamos.
*Monique Prada é trabalhadora
sexual e co-editora do projeto MundoInvisivel.Org.
** Sim, eu me referi às reuniões
de combate ao tráfico humano como cínicas, e ficarei devendo um longo texto a
respeito. Em resumo: o Brasil é signatário do Protocolo de Palermo que, dentre
outras coisas, prevê que quaisquer deslocamento que seja feito para trabalho
sexual seja classificado como tráfico – independente da vontade da
profissional. Eu vejo que isso não só dificulta a vida das trabalhadoras como
mascara estatísticas referentes a tráfico humano para exploração sexual. Neste
trecho do texto que vou linkar pode-se perceber sobre o que eu falo quando digo
que, nos termos atuais, eu simplesmente não posso (por mais que eu realmente
queira) sem questionamentos me aliar à luta contra o tráfico de mulheres para
exploração sexual – o trecho me diz que não temos, eu ou quaisquer de minhas
colegas vontade própria ou discernimento: “O tráfico de pessoas não se dá
somente através de associações, máfias e grupos. Uma forma de configuração do
crime, porém muito difícil de ser detectada, é a que se dá entre amigos. São os
casos em que uma prostituta chama uma amiga sua para trabalhar no país em que a
primeira se encontra. A percepção desta modalidade é muito mais difícil e
complicada, pois dá a impressão de livre vontade da pessoa, nos levando de
volta à questão do consentimento.” Percebam que em nenhuma outra espécie de
trabalho, incluindo as confecções ou trabalho doméstico, se vê esta
tipificação. Como assim, “impressão de livre vontade”??? As leis internacionais
de combate ao tráfico de pessoas para exploração sexual mascaram xenofobia
apenas e precisam ser rediscutidas. Não é opinião isolada, associações de
trabalhadoras através do mundo tem questionado o teor destas leis….
*** Nossas questões seguem sendo
tratadas (e carinhosamente tratadas até, diria) pelo Ministério da Saúde. No
entanto, mulheres que somos, não temos tido diálogo com a Secretaria de
Políticas para Mulheres, bem como a Secretaria de Direitos Humanos não me
parece ter posicionamento acerca das trabalhadoras sexuais. Com a palavra a
ministra Eleonora Menicucci e ministro Pepe Vargas…
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