quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O que é que as prostitutas querem?

Monique Prada, trabalhadora sexual, faz um levantamento do PL 4211/2012 – que trata da questão da regulamentação do trabalho sexual.


*por Monique Prada, em mundoinvisivel.org

Papo vai, papo vem e o assunto é “PUTA”. Citadas a torto e a direita em mesas de debates, em cínicas reuniões de combate ao tráfico humano**, na roda feminista ou mesmo em locais nem tão honrosos assim (como a boca de pastores e religiosos em geral, por exemplo), fato é que desde que a questão da regulamentação do trabalho sexual voltou à pauta, por conta e obra da Grande Puta Gabriela Leite e do deputado Jean Wyllis, não mais tivemos paz. Gente que até noites antes de o PL 4211/2012 ser apresentado não queria nem ouvir falar de nós agora vive com a puta na boca, hora se posicionando contra, hora a favor – fato: toda e todo a cidadã brasileira e cidadão brasileiro hoje tem um pitacozinho pra dar sobre a vida das mundanas.

Então – e não que a minha palavra seja de grande valia neste debate (como prostituta, incrivelmente faço parte do grupo de pessoas cuja opinião menos pesa nesta questão) – cá estou de volta com mais um (nem tão breve, mas espero que minimamente esclarecedor) texto sobre a regulamentação do trabalho sexual. Para facilitar a leitura, desta vez tentarei separar por tópicos. Lá vamos (e já aviso que a leitura somente será proveitosa se trabalho sexual pra ti for trabalho, e não algo a ser eliminado da face da Terra. Aqui lidamos sempre com o conceito de que trabalho sexual é trabalho).


Ponto 1: “O PL 4211/2012 não beneficia em nada as prostitutas, apenas torna o cafetão empresário e oficializa a exploração da prostituição.”

Afirmação Falsa: o PL Gabriela Leite visa regulamentar o funcionamento de nosso local de trabalho, tornando as casas e bordéis, que hoje no Brasil (e em muitos outros países) funcionam à luz do dia, porém à margem da lei, locais seguros para o trabalho (o que inegavelmente nos beneficia). Caso o PL fosse aprovado, as trabalhadoras passariam a ter mecanismos legais para cobrar o que lhes é devido tanto pelo dono do bordel (ou PELA donA!! – pasmem, mas há uma boa quantidade de mulheres empresárias, donas de bordéis) quanto pelo cliente. E a regulamentação nos traz não apenas segurança financeira como proteção contra assédio e outros tipos de violência. Na Nova Zelândia, onde o trabalho sexual é regulamentado, recentemente uma trabalhadora abriu processo por assédio sexual contra o dono de um prostíbulo – e ganhou; situação inimaginável em praticamente qualquer outro lugar do mundo onde a trabalhadora não tenha proteção legal. Agora, por um instante, pare e pense comigo: se algo é ilegal e mesmo assim funciona, alguém deve estar ganhando muito pra permitir isso, não?

Ponto 2: “Mas o PL garante um lucro de até 50% sobre os rendimentos das trabalhadoras, isso é regulamentar a exploração.”

Afirmação Questionável: Seria interessante pensarmos no conceito de exploração – sempre presente nas relações capitalistas. Na prática, quantos e quais trabalhadores sabem que percentual do lucro da empresa sobre seu trabalho chega às suas mãos? Para ficarmos dentro do tema das profissionais autônomas, eu costumo usar o exemplo das manicures ou cabeleireiras, que ficam em média com 40% a 60% do valor cobrado por seu trabalho (e normalmente levam seu próprio material e mesmo clientes, usando apenas do espaço disponibilizado pelas estéticas). É parecido com o que o PL Gabriela Leite propõe. O PL prevê que a casa fique com ATÉ 50% do valor cobrado por um encontro, percentual negociável entre trabalhadora e a casa. Como é hoje: as melhores casas já não cobram percentual sobre os programas, ganhando com o consumo e locação de quartos; a maioria das casas, em especial as clínicas e estabelecimentos que funcionam durante o dia, além deste percentual (que normalmente já gira por volta desses 50% mesmo), cobra multas. Sim, multas. Por atraso, por falar palavrão (!!!!), por reclamação quanto à higiene, por dia de falta ou por qualquer coisa que lhes convier. Considerando que boa parte do lucro das casas vem dessas ‘infrações’, eu quase chego a crer que muitas delas acabariam fechando suas portas com a regulamentação.

Ponto 3: “O PL não prevê garantias trabalhistas reais.”

Afirmação verdadeira: O PL prevê que as trabalhadoras possam atuar de modo autônomo ou em cooperativa, sem vínculo com  as casas de prostituição. Algumas trabalhadoras com quem falei consideram positivo que não haja vínculo com  as casas, por que costumamos trocar de casa – ou mesmo de cidade – conforme o movimento. Outras, e cito como exemplo as mulheres da Articulação Norte-Nordeste de Profissionais do Sexo, consideram que seria imprescindível o vínculo empregatício, já que atuam por longos períodos na mesma casa, o que gera compromissos como frequência mínima e horário a cumprir. O PL peca em não ter sido pensado para essas situações, frequentes em cidades menores ou mesmo nas grandes metrópoles quando se fala de trabalho em clínicas de massagem, termas, saunas. Por isso, volta e meia me refiro a ele como ‘raso’. Mesmo nas casas onde passamos poucas horas nós temos um horário máximo de entrada e mínimo de saída, o que já caracteriza algum tipo de obrigação maior da parte da trabalhadora do que da parte da casa – que nos provê um lugar quentinho e seguro para trabalho, garante movimento e publicidade, mas no entanto não nos paga um  valor mínimo pelo ‘salão’ (em tempos remotos, algumas boas casas pagavam um valor básico, que era suficiente para a trabalhadora pegar um táxi até sua casa em noite de movimento zero).

Ponto 4: “Sendo assim, por que é que vocês não se organizam e trabalham em cooperativas?”

Boa sugestão, ainda que controversa: Embora a Constituição de 1988 permita que todo o trabalhador se organize de forma legal em cooperativas (artigo 174, parágrafo 2), este tipo de organização é vetado às trabalhadoras sexuais pelo Código Penal – ver artigo 228, que versa sobre exploração sexual e facilitação da prostituição, dentre outros – se duas ou mais trabalhadoras alugam um mesmo local para trabalhar juntas, isso legalmente pode configurar que uma explora à outra. (Bom… eu vejo aí um vácuo legal bem interessante: o trabalho sexual passou a constar do Código Brasileiro de Ocupações (CBO) em 2005, através do número 5198. Se então, pela Constituição de 1988 – promulgada antes que a prostituição constasse do CBO – permite que todo o trabalhador se organize em cooperativa, a partir do momento que a prostituição passa a constar do CBO, a possibilidade de uma cooperativa é discutível – ainda e apesar de questões relativas ao trabalho sexual seguirem constando do Código Penal. Em Ibiza desde fevereiro deste ano funciona a primeira cooperativa de trabalhadoras sexuais do mundo, e é uma ideia a ser pensada, apesar das dificuldades financeiras e legais).

Ponto 5: “Regulamentando a prostituição, teremos mais mulheres desejando exercê-la”

Sério mesmo? Em sendo assim, eu devo considerar que legalizando o aborto mais mulheres abortarão por dia e em se legalizando as drogas, todos estaremos permanentemente chapados. É uma afirmação claramente falaciosa: a regulamentação não afasta o estigma do mesmo modo que a falta de regulamentação (as you can see..) não impede mulheres de recorrerem a este trabalho – por talento, gosto ou necessidade. Nada indica que mais ou menos mulheres desejarão se prostituir – se há algo que condiciona este mercado certamente não são as leis.

Ponto 6: “Mas mulheres se prostituem por não ter outra opção”

Totalmente verdadeiro: Muitas, muitas mulheres mesmo aderem à prostituição por não ter saída melhor para suas vidas, por que consideraram as outras opções piores ou impraticáveis. A mim este me parece motivo mais do que suficiente para correr e garantir direitos para estas mulheres – é assim que pensamos em relação ao trabalho doméstico, não?

Ponto 7: “Mas Monique, trabalho doméstico e trabalho sexual são coisas completamente distintas”

Olha… Eu vejo semelhanças bastante claras entre os dois tipos de trabalho, ou principalmente as circunstâncias que levam a eles. Se não, vejamos: em ambos veremos possibilidade de exploração infantil (sexual inclusive no trabalho doméstico), o aliciamento em massa de meninas jovens para exercê-lo em locais distantes de sua cidade de origem e muitas mulheres os exercem por “não terem outra alternativa” (cabe ressaltar que muitas prostitutas são oriundas do trabalho doméstico, trabalho sexual segue pagando melhor do que trabalho doméstico e é visto como menos humilhante por muitas trabalhadoras).

Ponto 8: “Mas se o trabalho sexual já consta da CBO, por que precisa regulamentar?”

Explicando direitinho: Incluir o trabalho sexual na CBO foi sem dúvida uma grande vitória do movimento de prostitutas brasileiro na década passada. No entanto, de nada adianta podermos atuar individualmente se nosso local de trabalho é clandestino. Didaticamente (não me odeie por isso), vamos lá. Imagine-se sendo, por exemplo, uma escritora – num país onde vender livros escritos por outra pessoa é crime. Tu serias lida apenas se tivesses grana e condições de imprimir, divulgar e vender teus próprios livros – e que escritora tem essa condição? Nossa situação hoje é similar: podemos atuar individualmente, mas poucas de nós conseguem atuar de modo totalmente independente. Passamos então a ser tão clandestinas quanto nossos locais de trabalho, e isso com a consequente amplificação do estigma e todas as questões abordadas em outros tópicos. Veja: toda a legislação brasileira em torno do trabalho sexual hoje gira em torno da ideia de que somente podemos atuar sozinhas, o que nos vulnerabiliza e aumenta consideravelmente o risco envolvido.

Ponto 9: “O PL prevê aposentadoria especial aos 25 anos de serviço. Isso é bom?”

Não necessariamente: Quando a profissional tem vínculo empregatício e a empresa é quem paga o INSS, há um adicional para aposentadoria especial, estabelecido na Lei n.º 9.732, de dezembro de 1998. Além da contribuição patronal de 20% e dos adicionais de 1%, 2% ou 3%, conforme o risco ocupacional, está sendo cobrado o adicional de 12%, 9% ou 6%, de acordo com a exposição a agentes nocivos que ensejem aposentadoria especial após 15, 20 ou 25 anos, respectivamente. Então, SE houvesse vínculo empregatício entre as trabalhadoras e as casas, sim, a possibilidade de aposentadoria especial seria vantajosa para as profissionais – não é o caso. Em minhas pesquisas, ainda não encontrei qual seria a contribuição no caso de profissionais autônomas, mas alguns links apontam mesmo para a dificuldade de comprovar a exposição a agentes nocivos à saúde e integridade física (justificativa para aposentadoria especial). No caso de trabalhadoras vinculadas a uma cooperativa, esta comprovação em tese seria mais fácil.

Ponto 10: “E esse PL passa? Como posso conferir a tramitação dele?”

Com o Congresso que elegemos? Nunca! Para a tranquilidade geral da Nação e segurança da ~família brasileira~, não: eu não acredito que esse PL seja aprovado. Eduardo Cunha, em 2007, quando o PL do Fernando Gabeira, que visava também regulamentar o trabalho sexual, foi rejeitado, já dizia: “Daqui a pouco vão querer tudo. Todos direitos. Vão querer até carteira assinada.” O PL 4211/2012 foi à votação em 2013, tendo parecer contrário por parte do deputado Pastor (sic) Eurico (PSB-PE), na Comissão de Direitos Humanos. Este ano, Jean Wyllis pediu seu desarquivamento, e foi criada comissão especial para apreciação da matéria. Na prática, isso apressa sua votação – e deve novamente ser rejeitado. Para acompanhar a tramitação, basta acessar o site da Câmara dos Deputados.

Ponto 11: “E se o PL não passar, como vocês ficam?”

Tudo como dantes no Quartel de Abrantes…  Os estabelecimentos seguem funcionando à luz do dia e à margem da lei, as trabalhadoras de nichos mais humildes seguirão sendo as mais exploradas, continuarão existindo mulheres cuja única ou melhor opção será o trabalho sexual e elas seguirão tendo seus direitos desrespeitados, do mesmo modo que as famosas ~ficha rosa~ seguirão supostamente cobrando 2 mil reais a hora ou mais. Conservadores e algumas vertentes do feminismo seguirão resmungando contra nosso trabalho enquanto seguimos exercendo-o.

Ponto 12: “Mas bah, não tem nenhum outro PL que trate da situação de vocês?”

Ah, bom.. até tem: Há alguns outros projetos tratando do tema; vamos começar pelo PL 377/2011, apresentado pelo deputado federal João Campos, do PSDB de Goiás, modifica o Código Penal (CP) e torna crime contratar e aceitar a oferta de serviços sexuais. Vale lembrar que o deputado é o mesmo a apresentar o PL da cura gay (agora me diz: como é que se reelege uma criatura dessas?) e, adivinha? Também é relator de outro PL, que prevê a restrição de anúncios de acompanhantes e similares em jornais e revistas (rá! Acharam que tava pouco?). O PL 377/2011 já tinha ido à votação, foi rejeitado mas em maio deste ano foi desarquivado. A única diferença deste PL para o tão bem visto modelo nórdico ou sueco é o fato de ele não prever políticas públicas que tirem as mulheres da prostituição capacitando-as a exercer outro tipo de trabalho – no entanto, pesquisando em blogs de trabalhadoras sexuais suecas, descobriremos rapidamente que as tais políticas na prática inexistem mesmo na Suécia… que adotou este modelo, o de criminalização do cliente de sexo pago, em 1999 (bom, estamos em 2015 e ainda existem trabalhadoras sexuais na Suécia – a mim não parece que tenha funcionado).

Em resumo e na prática, as coisas para nosso lado vão, como de costume, de mal a pior. Com o PL 4211/2012 rejeitado, um Congresso cada vez mais conservador e autoritário e cheio de demandas mais urgentes, vamos ficando de lado. Some-se a isso a perda de Gabriela Leite e a (as colegas que me desculpem, mas..) nítida dificuldade ou mesmo incapacidade do movimento de apoiar e empoderar outras lideranças à altura de Gabriela, mais o pânico moral de um Governo que segue nos vendo apenas da cintura pra baixo*** e as esperanças são parcas… Sigamos.

*Monique Prada é trabalhadora sexual e co-editora do projeto MundoInvisivel.Org.

** Sim, eu me referi às reuniões de combate ao tráfico humano como cínicas, e ficarei devendo um longo texto a respeito. Em resumo: o Brasil é signatário do Protocolo de Palermo que, dentre outras coisas, prevê que quaisquer deslocamento que seja feito para trabalho sexual seja classificado como tráfico – independente da vontade da profissional. Eu vejo que isso não só dificulta a vida das trabalhadoras como mascara estatísticas referentes a tráfico humano para exploração sexual. Neste trecho do texto que vou linkar pode-se perceber sobre o que eu falo quando digo que, nos termos atuais, eu simplesmente não posso (por mais que eu realmente queira) sem questionamentos me aliar à luta contra o tráfico de mulheres para exploração sexual – o trecho me diz que não temos, eu ou quaisquer de minhas colegas vontade própria ou discernimento: “O tráfico de pessoas não se dá somente através de associações, máfias e grupos. Uma forma de configuração do crime, porém muito difícil de ser detectada, é a que se dá entre amigos. São os casos em que uma prostituta chama uma amiga sua para trabalhar no país em que a primeira se encontra. A percepção desta modalidade é muito mais difícil e complicada, pois dá a impressão de livre vontade da pessoa, nos levando de volta à questão do consentimento.” Percebam que em nenhuma outra espécie de trabalho, incluindo as confecções ou trabalho doméstico, se vê esta tipificação. Como assim, “impressão de livre vontade”??? As leis internacionais de combate ao tráfico de pessoas para exploração sexual mascaram xenofobia apenas e precisam ser rediscutidas. Não é opinião isolada, associações de trabalhadoras através do mundo tem questionado o teor destas leis….


*** Nossas questões seguem sendo tratadas (e carinhosamente tratadas até, diria) pelo Ministério da Saúde. No entanto, mulheres que somos, não temos tido diálogo com a Secretaria de Políticas para Mulheres, bem como a Secretaria de Direitos Humanos não me parece ter posicionamento acerca das trabalhadoras sexuais. Com a palavra a ministra Eleonora Menicucci e ministro Pepe Vargas…

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