Para antropóloga, violência
sexual persiste porque ensinamos as mulheres a se protegerem, mas nunca os
homens a não estuprar.
Trinta e cinco mulheres vestidas
de preto, com idades entre 44 e 80 anos e uma lembrança em comum: elas teriam
sido estupradas pelo comediante Bill Cosby entre 1960 e 2000. Dentre aquelas
que contam sua história na matéria “Cosby: As Mulheres, uma Irmandade
Indesejada”, tema de capa da revista New York Magazine, estão as atrizes
Beverly Johnson e Lili Bernard e a modelo Janice Dickinson, ao lado de outras
modelos, atrizes, jornalistas, esportistas e até colegas de trabalho de seu
programa de TV, A Hora de Bill Cosby.
Em 2005, Andrea Constand, antiga
estrela do basquete, denunciou que havia sido abusada por Cosby quando
trabalhava no departamento atlético da Universidade de Temple, na qual ele
fazia parte do conselho curador. Ela afirmou ter sido drogada e, ao ficar
inconsciente, apalpada e penetrada por ele. Depois de sua denúncia, uma
advogada também foi à televisão: afirmava ter sido estuprada por Cosby trinta
anos antes. Logo apareceram outras mulheres dizendo coisa parecida, mas seus
depoimentos, à época, não foram levados a sério e os casos, logo esquecidos. No
mesmo ano, face a face com a polícia, Cosby assumiu que usava o sedativo
quaaludes para manter relações sexuais com algumas mulheres. Mas afirmou que
era sempre com o consentimento delas.
Na capa. 35 mulheres, entre as 46
que acusam Bill Cosby de estupro, estampam a revista (Foto: Reprodução)
Tâmara Green, uma das
fotografadas na New York Magazine, disse que até hoje as pessoas perguntam “mas
por que você não procurou a polícia? Andrea foi à polícia em 2005, como foi
para ela?”. “Não serviu de nada. Em 2005, Bill Cosby tinha o controle da mídia”,
responde. O ator, que encarnou o ginecologista Doctor Cliff nos anos 1980,
gozava de grande popularidade e chegou a ser chamado de “pai da América” por
causa de uma série de TV na qual era o pai de uma família. “Em 2015, nós temos
as redes sociais. Não podemos ser desaparecidas. Está online e nunca mais vai
embora”, afirma Tâmara.
Na mesma semana em que a New York
Magazine encampava essa capa, o Instituto Patrícia Galvão divulgou para
jornalistas o Dossiê Violência contra as Mulheres, disponível no site a partir
de quarta-feira, dia 5. Feito com o apoio do Fundo Social Elas, em parceria com
o Instituto Avon, o dossiê pretende ser acessível, tem ferramenta de busca
facilitada e apresenta mais de cem nomes de fontes – especialistas que podem
ser consultados e entrevistados. No geral, levanta as várias formas de
violência contra a mulher, como a doméstica e a familiar, a sexual e o
feminicídio, e chega à conclusão de que o tema está em pauta, é divulgado, mas
não contextualizado. Aparece como crime nas páginas do dia a dia, porém em cima
de fatos apenas, e não relacionando a questão com o problema social. Passa-se
ao largo, em resumo, da origem e do porquê da violência.
Beatriz Accioly Lins, uma das
colaboradoras do trabalho, doutoranda em antropologia social da USP e membro do
Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas), também da USP,
está na lista das fontes. Tem seu foco na violência contra as mulheres em
tempos de internet. Nesta entrevista, ela busca explicar o que leva as vítimas a
se silenciarem diante do estupro, como as redes sociais podem ajudá-las a
enfrentar esse trauma e fazer justiça e como, no entanto, existem novas formas
de violência contra a mulher que se dão exatamente no ambiente virtual.
Começamos a semana com a capa da
‘New York Magazine’ denunciando estupros de Bill Cosby que teriam ocorrido por
quatro décadas, desde os anos 1960. A que se deve todo esse tempo de silêncio?
Cosby é uma figura importante nos
Estados Unidos. É um ator e comediante muito conhecido, fez uma série de TV na
qual era pai de uma família inteiramente negra. Mas, independentemente da fama
ou não do estuprador, é generalizada a subnotificação quando se trata de
violência sexual. Ela acontece muito mais do que é registrada em boletins de
ocorrência e acontece muito mais do que nos contam. Uma prima pode ter sido
estuprada e não falou, uma amiga pode ter sido estuprada e não falou,
principalmente porque existe a prática compartilhada pela sociedade de culpar a
vítima ou duvidar do relato dela: “mas será que foi assim mesmo, será que ela
não fez nada nem se colocou naquela situação?”. Quando as primeiras vítimas de
Cosby falaram e fizeram suas denúncias, ele estava no auge do estrelado, era
muito querido nos Estados Unidos e elas eram, em sua grande maioria, muito
jovens. Ele acabou tendo mais credibilidade do que elas. Devia se pensar algo
do tipo “ele é famoso e pode ter a mulher que quiser, porque vai dopar alguém e
fazer isso?”. E a reação social a elas era sempre a mesma: “mas tal moça tinha
interesse, era aspirante à atriz, ele poderia ajudar a alavancar sua carreira,
foi de saia curta, se colocou naquela situação” ou ainda “será que ela não
topou, se arrependeu depois e agora está dizendo isso?” No caso dessas
denúncias, a fala da vítima é sempre colocada em xeque. O que define se alguém
é vítima de estupro acaba sendo o comportamento da vítima, e não o do
estuprador. Além disso, a mulher que passa por uma violência sexual leva um
tempo para reconhecer aquilo como violência e para admitir isso para si mesma.
Quando aparece uma que fala, vão vindo memórias, outras começam a se reconhecer
naquelas histórias e, então, decidem falar. Uma ou duas tiveram a coragem de se
“expor”, porque é assim que a vítima é vista e avaliada.
Você acredita que as redes
sociais, as mesmas que servem para difundir violência de gênero, serviu a essas
mulheres, de alguma forma, para fazerem essa denúncia tanto tempo depois?
Podemos pensar as redes sociais e
a internet com uma dupla faceta. De um lado ela permite que se perpetuem essas
violências e que surjam novas formas, como a pornografia de vingança, de que
falamos no dossiê. Ela pode ser definida como o compartilhamento de fotos e
vídeos íntimos na internet sem autorização de todos os envolvidos ou com o
propósito de causar humilhação à vítima. De outro lado, no entanto, permitiu
que essas mulheres se encontrassem e tivessem voz. Só a internet não é
suficiente para lidar com a questão, mas serviu para unir essas pessoas e
informar outras. A mulher entra em contato com termos e categorias, ouve outras
dando relatos parecidos e acaba se sentindo segura e apoiada, troca formas de
se proteger, encontra blogs e pessoas falando sobre o assunto. A internet,
assim, cria espaços de proteção, mas é ambivalente porque cria espaços de
violência também. A internet e as redes sociais são só um instrumento. Dependem
do uso que fazemos delas.
Por que uma só não bastou para
fazer a denúncia? Se é um grupo, 35 mulheres, aí sim ele é considerado
estuprador?
Como olhar para isso?
Pelo que acompanho desse caso,
mesmo quando o número de denúncias começou a crescer, ainda se duvidava muito
das mulheres. Quando a primeira falou, foi um efeito bola de neve, outras
falaram, mas mesmo assim seus shows de stand-up comedy continuavam lotados. O número
é significativo pelo impacto, mas nem assim fez virar o jogo para que
acreditassem que ele fosse culpado. Em crimes em geral, tendemos a acreditar em
quem está acusando, mas com a violência sexual ocorre exatamente o contrário.
Tende a se duvidar do denunciante. O Polanski, por exemplo, não pode ir para os
Estados Unidos porque lá seria preso, mas vive na Europa, continua seu trabalho
de cineasta e sendo indicado ao Oscar. (O cineasta Roman Polanski foi condenado
nos Estados Unidos por ter tido relação sexual com Samantha Geimer, em 1977,
quando ela tinha 13 anos de idade.)
Ao mesmo tempo, como você mesmo
afirmou, a internet também têm sido espaço de violência contra as mulheres.
Como se dá essa violência e por que ela é tão difundida?
A internet faz parte do mundo. É
novidade ainda, inovação, trouxe a possibilidade de comunicação, de produção de
conteúdo, você pode comentar, escrever um blog, mas ela reflete comportamentos
que já existem e, pior, faz surgir novas formas de violência também, facilitadas
por esse meio e pela sensação do anonimato. A internet reproduz os
comportamentos e valores da sociedade. A violência contra a mulher na internet
só existe porque existe violência contra a mulher fora dela. E a violência na
internet só se difunde porque as pessoas compactuam com ela. Veja a pornografia
de vingança: uma menina terminou o namoro e o ex-namorado joga na internet
vídeos dos dois fazendo sexo. Se ninguém ligasse, se olhassem e dissessem “ok,
fazer sexo é normal”, se não falassem mal, não teria as mesmas consequências
para a mulher. Mas temos que parar de olhar o papel do outro e olhar o nosso
papel nisso tudo também. Ao olharmos aquilo e julgarmos a mulher – e só a
mulher -, naturalizamos a violência contra ela e, assim, ela acaba se propagando.
Não olhamos para os dois, mas para ela, “que não deveria estar fazendo aquilo,
por ser mulher”.
Na repercussão da matéria da ‘New
York Magazine’ em sites brasileiros, abaixo há comentários, assinados por
homens, do tipo “ok, ele estuprou, mas elas também não são santinhas!”. A que
você acha que se deve essa lógica da culpabilização da mulher pelo estupro
sofrido?
Se acontece na vida, como falamos
acima, acontece na internet, mas na internet esses comentários podem ser ainda
mais agressivos pela sensação do anonimato. Você se permite ser mais grosseiro,
mais agressivo, falar coisas que talvez não falasse no face a face. Isso
aparece na internet, porque as pessoas compartilham esses valores na vida real.
Olhando para esse comentário especificamente, o que vemos: o correto é a mulher
ser recatada, não se expor, não se colocar numa situação em que possa ser
estuprada. Culpamos de novo a vítima. E não é menos grave por estar na
internet, por ser um comentário anônimo em um site. É uma armadilha
hierarquizarmos a violência. Não tem como dizer se é mais grave dentro ou fora
da rede. De qualquer forma é uma violação de direito ao bem-estar, à dignidade
e à intimidade, que é um direito constitucional. Traz consequências morais e
psicológicas que podem ser tão sérias quanto as físicas. Então, quando não
reconhecemos a pessoa que sofreu a violência, estamos cometendo outra
violência, e isso pode ser na internet ou na vida real. Esse comentário deixa
bem explícita toda a lógica por trás da violência contra a mulher: elas que têm
que se cuidar, não andar de saia curta, não se colocar em nenhuma situação que
possa levar a isso, pois, se forem estupradas, a culpa é delas. Estamos sempre
ensinando as mulheres a se protegerem, mas nunca os homens a não estuprar.
Fonte: (Paula Sacchetta)O Estado de S. Paulo
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