Ferida. Maria Júlia* mostra as
marcas das facadas que levou do ex; ela perdeu 30% do sangue e quase teve um
pulmão perfurado
“A primeira agressão tem que ser registrada, porque a segunda pode ser a última”, diz a delegada de homicídios de Contagem, Fabíola Alessandra de Oliveira.
Quando enfim encontramos o
endereço de Silvana*, 44, às margens de uma rodovia mineira, ela encerrava o
trabalho como carpinteira. Ao ser questionada se falaria sobre violência contra
a mulher, ela respondeu: “Espera, que eu tenho que pegar um cigarro porque esse
assunto me deixa muito mal”. Segurando o cigarro com as mãos sujas e calejadas
de tanto consertar carrocerias de caminhões, ela contou como sua relação de 22
anos com José* acabou em tragédia. Há quatro meses, ela matou o marido com uma
facada no peito. “Ele iria me matar aos poucos, ele me humilhou e me agrediu
muito. Eu quis pegar no ombro dele, mas acertei o coração do meu único amigo, o
companheiro de uma vida”, disse, mostrando no meu ombro o movimento do golpe.
Ao acertar o marido para se
defender das pauladas que ele desferia, Silvana correu sem saber que José não
aguentaria ir atrás dela. “Quando olhei pra trás e vi que ele não veio, pensei:
‘Machuquei ele muito’”. A polícia considerou o caso legítima defesa. Silvana
não é a única que chega a esse ponto após sofrer violência doméstica – quando
não são elas que morrem. Na segunda reportagem da série “Que amor é esse?”, O
TEMPO mostra o que acontece quando nem lei, nem medida protetiva, nem denúncia
resolvem: a morte deixa de ser só ameaça.
Na primeira vez em que Silvana
chamou a polícia, o militar, segundo ela, deu três tapas em José. “Eu achei que
ele tinha vindo para apaziguar ou levar ele daqui”. Para a carpinteira, o
policial não fez nem uma coisa nem outra. Da segunda vez, Silvana reencontrou o
militar. “Você de novo? Foi assim que ele me recebeu. E eu falei: ‘Não, talvez
essa seja a última, acho que eu matei meu marido’”, e ela continuou: “Aqueles
tapas que você deu nele, ele vingou em mim durante um ano. Depois daquilo, o
homem ficou pior”.
Silvana mostrou as cartas que
escreveu para desabafar sobre o que sentia todas as vezes em que José, quase
sempre drogado, a maltratava. “A pior violência é a psicológica. Vivemos todo
esse tempo juntos e tivemos seis filhos. Mas, no último ano, ele me humilhou
muito. Colocava outras mulheres aqui dentro”. Antes de José morrer, apenas o
filho de 5 anos estava com o casal. “Ele me botava pra correr com meu menino na
estrada. Meu filho também sofreu muito, hoje chama o irmão de pai”. O mais
velho, de 18 anos, que havia saído de casa por não suportar as brigas dos pais,
agora voltou. Ele procura alguma imagem de José no celular, mas não acha.
Então, Silvana mostra a única fotografia revelada do marido quando criança.
“Gosto tanto dela, não me traz dor”.
As dependências financeira e
psicológica são empecilhos para as mulheres saírem de casa e do ciclo de
violência. “Eu coloquei todo o meu dinheiro no nosso negócio, não tinha como ir
embora”, disse a carpinteira. Para Silvana, o problema era que o marido achava
que os dois competiam. “Ele não aguentava ver que eu trabalhava mais que ele.
Queria me fazer de empregada, mas eu o chamava de campeão”. Hoje, quem toca o
negócio é Silvana, mas ainda enfrenta o preconceito: “Quando os clientes me
veem, falam: ‘Chama o moço, por favor’. Eu digo: ‘A moça não serve?’”
“E agora Silvana, quais são os
planos?”, pergunto. “Vencer”. “Como?” “Podendo ser eu mesma”.
“Talvez você não saiba a
importância que tem pra Deus tratar as pessoas como gostaria que tratassem
você, exaltar, proteger, agradar, perguntar ‘como vai você?’ (...) Mas Jesus
vai ressuscitar meus sonhos, restituir planos e projetos que foram saqueados e
mortos por você.” (trecho de carta escrita por Silvana para o marido)
“Se a mulher pede socorro, é uma família que está pedindo”, diz vítima
Silvana* acredita que uma
conversa (referindo-se a um tratamento), que abrangesse toda a família,
ajudaria mais a mulher vítima de violência, “em vez de uma lei para manter o
marido distante”, disse em alusão às medidas protetivas de afastamento
previstas na Lei Maria da Penha. “Se ela pede socorro, é uma família que está
pedindo”. E disse mais: “Eles nunca preparam a mulher pra sair de casa. É
complicado, ela depende financeiramente, psicologicamente”.
A delegada Águeda Bueno,
coordenadora da Divisão Especializada em Atendimento às Mulheres Vítimas de
Violência na capital, acredita que é preciso, primeiro, evoluir sem usar
instrumentos legais do direto penal, como encarcerar e judicializar. “Porque
ele (o agressor) continuará sendo o pai dos filhos dela, realmente precisamos
de outras medidas, principalmente de atendimento psicológico. O conflito
(judicial) teria que vir quando não tivesse mais jeito”.
Na Casa de Diretos Humanos, onde
funciona a rede de proteção à vítima, há o Centro Risoleta Neves de Atendimento
à Mulher (Cerna), com psicólogas que atendem cerca de 400 pessoas por mês. Mas
o serviço não é em esquema de plantão. O acompanhamento psicológico é semanal,
sem prazo para término.
“A primeira agressão tem que ser
registrada, porque a segunda pode ser a última”, diz a delegada de homicídios
de Contagem, Fabíola Alessandra de Oliveira. Enquanto o caso for de violência
doméstica, é apurado pela Delegacia Especializada da Mulher. Mas, quando vira
morte, segue para a Divisão de Homicídios da Polícia Civil. As duas delegacias
mantêm contato para resgatar históricos que ajudem na investigação. Mas, na
delegacia da mulher, o objetivo é acabar com o ciclo de violência.
De frente para o computador,
Fabíola, recente no cargo, começou a contar os vários casos de homicídios
domésticos que já apurou neste ano, como, por exemplo, o de uma mulher de 35
anos que também matou o marido. Ela usou a pedra que escorava a porta para acertá-lo
na cabeça. “A morte dele foi um alívio para a família (a mulher e os quatro
filhos pequenos), porque todos eram espancados constantemente”, contou. Esse
crime foi cometido em 2003, “numa época em que as mulheres não costumavam
denunciar as agressões”, e, agora, foi arquivado como legítima defesa.
Logo, Fabíola se lembra de outro
caso, em que o homem, de 27 anos, matou a namorada, de 19, por ciúme, e na
delegacia ele chorava copiosamente de arrependimento. “Ele não parava de cantar
a música ‘Na Linha do Tempo’, de Victor e Leo”.
283
Homicídios motivados por
violência doméstica ocorreram somente no primeiro semestre deste ano em Minas
Gerais. No mesmo período de 2013, foram 288, em 2014, 284.
Mês passado
Em 1° de setembro, um rapaz, de
20 anos, matou a mulher, de 23, com um tiro de espingarda, na zona rural de
Santa Vitória, no Triângulo Mineiro. O casal estava a passeio na casa do pai da
vítima e retornaria para Goiás, onde os dois moravam, dias depois. O caso é
investigado pela polícia.
*Nomes fictícios
Fonte: O Tempo
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