No seminário A Prostituição: uma
abordagem desde os Direitos Humanos Letícia Barreto, doutora em Antropologia e
estudiosa do tema Prostituição, falou sobre “Os movimentos de prostitutas:
avanços e impasses”.
Letícia iniciou o painel da tarde
do dia 23 de setembro ressaltando a importância de ouvir as prostitutas.
Segundo ela, é muito comum o interesse das pessoas pelo tema, que querem
discutir prostituição, ajudar e até se interessam por curiosidade, mas poucas
vezes vemos um diálogo efetivo com o movimento que sabe quais são as demandas.
A demanda da regulamentação já é antiga, e existem diversas divergências,
comenta Letícia.
Movimento de prostitutas no Brasil, Belo Horizonte e partes do mundo
“Apesar do movimento de
prostitutas ter um longo processo histórico, no Brasil já com mais de 30 anos,
é difícil encontrar documentos que contem essa história. Então, na minha
pesquisa, tivemos que reconstruir passos, sendo que nos Estados Unidos já existe
uma história mais consolidada.”
Ao falar sobre sua tese
intitulada “Somos sujeitas políticas de nossa própria história: prostituição e
feminismos em Belo Horizonte, Letícia Barreto explica que sua pesquisa objetivou analisar a relação
entre prostituição e feminismos em Belo Horizonte, a partir de um olhar sobre a
emergência das prostitutas como sujeitas políticas e a produção do conhecimento
sobre prostituição.
“Os movimentos de prostitutas têm
autonomia, mas é restrita em alguns campos, como por exemplo na hora de ajudar
a passar um projeto de lei”.
Com o material organizado ao
longo de 10 anos de pesquisa, ela foi elaborando uma narrativa histórica sobre
o processo de construção dos movimentos de prostitutas em Belo Horizonte em
relação ao contexto nacional e internacional.
Capítulos Históricos
O surgimento dos movimentos de
prostitutas: período da ditadura e primeiros anos da redemocratização no
Brasil.
“O movimento das prostitutas
surge exatamente dentro do contexto da ditadura militar. Com os relatórias da
comissão da verdade, observa-se que a ditadura não afetava apenas as pessoas
que eram contra o regime, mas também as prostitutas, os movimentos gays e
diversos outros grupos. Nesse momento, também havia em nível internacional,
principalmente nos Estados Unidos, o que chamamos de “As guerras dos sexos
feministas”, que não chegaram ao Brasil do mesmo modo como chegaram nos EUA.
Adriana Piscitelli, grande
pesquisadora sobre o tema da prostituição, diz que essas guerras do sexo
chegaram com 20 anos de atraso ao Brasil. Então, hoje vemos os debates com mais
força do que nessa época (até final da década de 80). Essas guerras foram
chamadas de pró-sexo e por outro lado de contrassexo ou antissexo. Foi um
momento de forte levante conservador. Várias feministas se aliaram a movimentos
conservadores para exigir o fim de algumas questões que, para elas, eram
consideradas opressivas em relação à sexualidade da mulher, como o caso da
prostituição e da pornografia.
Isso virou alvo de ataque dessas
feministas, pois se acreditava que a prostituição e a pornografia eram as
formas máximas de opressão das mulheres e que elas iriam afetar todas as
mulheres.
Do outro lado, temos as
feministas pró-sexo, que dizem que existem as questões de opressão dentro da
pornografia e da prostituição, mas que essas questões não são intrínsecas à
prostituição. Então, não é por ser prostituta que a mulher é violentada,
oprimida.
Temos que entender como cada
contexto se caracteriza. Por exemplo: uma determinada prostituta pode ser
oprimida, pois, como no caso do Brasil, temos uma legislação que criminaliza
todo o entorno dela. Isso pode ser uma forma de opressão. Não precisa
necessariamente vir por parte de um cliente violento; pode ser a sociedade que
não a aceita.
Nessa segunda linha, essas
feministas colocam que a prostituição pode sim trazer experiências de autonomia
e autodeterminação. Isso gera conflitos, pois muitas as vezes pensam que essas
feministas estão falando que toda prostituta é 100% livre e não têm nenhuma
forma de opressão. Mas não é isso. Elas falam que é preciso entender cada caso.
Para Letícia Barreto, a
prostituição é uma questão de direitos que precisam ser assegurados. Ela
continua o contexto histórico falando sobre o feminismo de segunda onda, que
não afeta tanto a questão da prostituição, pois as prostitutas foram mais
afetadas nesse momento pelo surgimento da AIDS.
“O movimento de prostitutas
organizado no Brasil é anterior à AIDS, ao próprio diagnóstico. Apesar disso,
quando surge a AIDS, ela se torna foco de intervenção. A partir daí, surgem
vários grupos, ONGs, financiamentos e ações focadas nas prostitutas, já que
elas eram vistas como grupo de risco. O movimento passa a se organizar muito em
torno do debate sobre a AIDS, o que acabou sendo visto como um problema. Até
hoje, quando se fala em prostituição se pensa em AIDS. Isso é um grave erro.”
Consolidação dos movimentos de prostitutas | 1990 – 2002
Ocorre a institucionalização dos
movimentos. Se antes tínhamos vários movimentos autônomos, agora estão
institucionalizados. Algumas associações se tornam ONGs e crescem os
financiamentos. Com isso, ocorrem muitas viagens de prostitutas pelo mundo,
como para ir a congressos sobre AIDS. São momentos em que elas vão se encontrar
para conversar. Então, os encontros de prostitutas começam a acontecer por
esses motivos.
Movimentos de prostitutas e autonomia | 2013-2015
Nesse período, os movimentos de
prostitutas, assim como outros movimentos feministas, vão se tornar cada vez
mais transnacionais. Não temos mais tão claramente aquele movimento fechado no
Brasil. Vamos ter a Rede Global de Trabalhadoras do Sexo, a Rede
latino-americana e várias outras redes que vão se fortalecendo. Esse fluxo fica
cada vez maior, e muitas vezes em virtude desses financiamentos ligados a DST e
AIDS.
Pontos analisados:
1- Tráfico de pessoas e relação
com grandes eventos: a partir da década de 2000, o discurso sobre a
prostituição ganha força com o tema tráfico de mulheres. Constantemente se
associa prostituição a tráfico de mulheres. Essa é uma questão complicada.
Primeiro porque as prostitutas são vistas, a priori, como traficadas; e isso
vai impedir que elas migrem e que tenham acesso a diversos direitos. Alguns
autores chamam isso de “danos colaterais” nessas redes de resgate ao tráfico de
pessoas. Então, muitas vezes, a prostituta que está migrando, acessando redes
familiares ou de amigos para conseguir esse processo migratório, vai ser vista
como uma traficada. No caso brasileiro, isso é fortalecido pelo fato de que na
legislação do Brasil o tráfico de pessoas é visto como tráfico para
prostituição. Além de ter efeitos muito negativos para as prostitutas, tem
efeito negativo também para outras pessoas traficadas.
Letícia fala de sua passagem
trabalhando no Programa de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Minas Gerais
e comenta que chamou a sua atenção o fato de ter muito mais casos ligados a
trabalho escravo. E esses casos aconteciam com a exploração dentro do próprio
Brasil. E apesar disso, os financiamentos e as ações de diversos grupos são
muito voltados para as mulheres que estão migrando para o exterior a fim de se
prostituir. Então, temos a invisibilidade de um contexto que está acontecendo e
um olhar sobre um contexto que ocorre sim, mas nem sempre acontece do modo como
é colocado.
Em 2004, o Brasil ratifica o
Protocolo de Palermo, que vai redefinir um pouco o conceito de tráfico de
pessoas, mas o protocolo não foi transformado em lei no Brasil. Então, para
legislação, segue sendo tráfico de pessoas o tráfico para fins de prostituição.
Outra questão que ganhou muito
destaque foi a Copa do Mundo e as Olimpíadas 2016. Além do contexto
internacional, muitos olhares se voltam para o Brasil e sobre o que poderia
acontecer na Copa do Mundo, especialmente com nossas mulheres e meninas. E
novamente a questão é focada nessas pessoas que são vistas como mais afetadas
pelo tráfico de pessoas. E durante a Copa, no tempo em que estive no programa
de enfrentamento, não tivemos nenhum
caso de tráfico de pessoas que a gente tenha acessado, No Brasil tivemos
grandes movimentos de preparação da polícia para identificar esses casos, mas
na verdade o que vimos foram casos de tráfico de pessoas e exploração laboral
dentro da construção dos estádios, por exemplo. Os crimes que tivemos foram
muito mais ligados a venda de ingressos, roubo, estupro e outros tipos de
violência.
Com relação a esse tráfico de
pessoas, conseguimos perceber que o próprio movimento de prostitutas ao estar
mais organizado começa a ter uma atuação mais clara nesses contextos. Se antes
tínhamos esse imaginário, começamos a ver vários aliados e os próprios
movimentos produzindo dados e não apenas aceitando essas políticas e esse
discurso alarmante. Quando se fala em tráfico de pessoas vemos números muito
altos, e na verdade, não se tem comprovação de muitos deles.
AIDS e Saúde
As mulheres prostitutas sempre
foram colocadas como questão de saúde, mas especificamente de saúde sexual. Nem
se fala de direitos reprodutivos, mas de DST e AIDS. Isso é um problema sério,
pois existem diversas outras questões importantes, como os direitos
trabalhistas. Com a AIDS definida como questão prioritária, os debates acabam
sendo esvaziados. Nesse período (2013-2015) , os movimentos vão se tornando
cada vez mais autônomos nesse debate.
Jornais "Na Vida" -
produzido pelo GAPA/MG - Fonte: http://www.severidade.com.br/prostituicao/#bf24
Em 2011, a Rede Brasileira de
Prostitutas, que é um dos movimentos mais organizados que temos em nível
nacional, vão definir que não vão mais mais aceitar financiamentos para
questões de AIDS. Claro que existem ainda muitas parcerias, inclusive em Belo
Horizonte, mas essa postura diz que elas não querem mais ser vistas apenas como
possíveis portadoras de HIV e AIDS. Elas querem ser vistas como trabalhadoras,
pessoas que têm direitos.
Levantamento dos projetos de Lei
Em um levantamento apresentado
pelos deputados desde 1975, observa-se uma mudança. Se antes os projetos não
dialogavam diretamente com as prostitutas, passamos a ver projetos que
dialogam, tais como o projeto do Fernando Gabeira e do deputado Jean
Wyllys. Os dois projetos foram
construídos em parceria com movimentos de prostitutas, o que gera um grande
avanço. Isso muda a forma como se fala da prostituição e se propõe o que deve
ser mudado. Apesar disso, esses projetos acabam sendo vistos ainda como se não
representassem as prostitutas. E, claro, existem algumas prostitutas que são
contra alguns pontos específicos do do recente projeto do Jean Wyllys, por
exemplo, mas o este foi construído em
parceria com o movimento.
Letícia fala sobre a importância
de legitimar a voz que vem do movimento, falando sobre o que querem e pretendem
para que se possa discutir a partir daí.
Outro ponto que tem relação com o
legislativo, é a candidatura de algumas prostitutas que também faz parte desse
processo de maior autonomia. Não vão apenas escolher um deputado para
apresentar um projeto por elas, mas também querem defender as próprias pautas.
Quer saber mais sobre os
movimentos de prostitutas? Acesse: http://www.severidade.com.br/prostituicao/
No próximo post, saiba mais sobre
Violação de direitos humanos e estigma na prostituição feminina, por Isabel
Brandão.
Fonte: http://dialogospelaliberdade.com/
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