‘À primeira vista, você pode confundir esse
material com arte urbana. Mas pesquisa um pouco e descobre que se trata de
tráfico de mulheres e está enraizado na cidade desde a sua formação’, diz Julio
Falagán.
Os álbuns de figurinhas são o
pesadelo de qualquer pai. Começar uma coleção envolve a obrigação de comprar
envelopes de figurinhas a preços exorbitantes, descobrir que apenas contêm
cinco ou seis figurinhas, sofrer por que a metade sai repetida, mudar os
repetidos pelos novos e, quando você está a ponto de completar o álbum, o tema
fica fora de moda, retiram das bancas as que sobram, e é impossível completar o
álbum. Consciente das ansiedades dos pais, o artista Julio Falagán criou uma
coleção que, além de acabar com essas dores de cabeça, chamava a atenção sobre
um escabroso tema: o tráfico de mulheres e sua aceitação na sociedade.
Tudo começou em Buenos Aires,
cidade onde Falagán se encontrava para desenvolver o projeto de pesquisa sobre
a cultura popular do país com uma bolsa de estudos do Ranchito de Matadero
Madri y Panal 361.
“Foi só chegar e passear pelo
centro para dar de cara com esses folhetos colados pelas ruas, em outdoors,
semáforos, containers de lixo, lixeiras ou nos pontos de ônibus. É algo
imperceptível para o buenairense, porém para um turista que busca a estética da
cidade, isso explode nos seus olhos”, explica.
“À primeira vista, você pode
confundir esse material com arte urbana, porém quando você se aproxima e lê um
folheto, você percebe que tudo é muito mais obscuro. Depois pesquisa um pouco o
motivo de tudo isso e descobre que se trata de tráfico de mulheres e está
enraizado na cidade desde a sua formação, com o monopólio de diferentes máfias
judaica do Oeste da Rússia e Europa Oriental, como a ZwiMigDal”, afirma o
fotógrafo.
Não levou muito tempo para que
Falagán começasse a recompilar esses folhetos que graficamente se encontram
entre arte de ruptura e a arte bruta e cujos textos discorrem entre o engenhoso
jogo de palavras e a obscenidade mais embaraçosa.
“Eu fiz sem saber muito bem o por
quê, porém um belo dia surgiu o ‘Minas de Buenos Aires’ como método para
colocar o problema em cima da mesa, um problema do qual ninguém quer saber
nada”, indica.
Mina equivale em lunfardo, a
gíria portenha, a “mulher”, porque elas são uma fonte de riqueza para os
cafetões e proxenetas, na mesma gíria. Uma realidade que está mais arraigada do
que parece na cultura argentina, como acabou descobrindo Falagán.
“Há inúmeros tangos que fazem
referência a este problema. Eu gosto muito de ‘Escravas brancas’ de Horacio
Pettorossi, que era cantada por Gardel. Além disso, há toda uma estrutura
dedicada a colocar essa publicidade e inclusive outra dedicada a limpá-la, o
que de novo nos leva ao paralelismo com o mundo do grafite”, relata o artista.
“Para colocá-lo, usa-se uma cola
escolar em bastão muito comum em Buenos Aires que se chama ‘boli goma’.
Marca-se uma linha com a cola bastão na superfície e são colocados um seguido
dos outros em fila. Para contra-atacar, há grupos de mulheres na vizinhança que
fazem batidas voluntárias para limpar o bairro. Inclusive eu fiz uma tentativa
de replicar a experiência e coloquei folhetos com um código gráfico semelhante,
ainda que aparecesse neles o endereço do meu estúdio e o telefone do escritório
da minha residência. Não tenho nenhum registro de que alguém tenha me
telefonado alguma vez. A arte não interessa tanto”, conta Falagán.
De um tempo pra cá, nas ruas de
cidades como Madri e Barcelona, esses folhetos começaram a ser vistos, embora
de forma mais embrionária e discreta, com estratégias semelhantes às portenhas
na hora de promover serviços de prostituição. Um fato que, somado à intervenção
do FMI [Fundo Monetário Internacional] na economia europeia, o corralito grego
e a ascensão de partidos qualificados como populistas parece indicar uma
“latino-americanização” do continente.
“Ao voltar de Buenos Aires,
percebi justamente isso. Os limpadores de para-brisas dos carros estavam cheios
de folhetos semelhantes. Além disso, a maior parte das pessoas promovidas eram
mulheres latinas. É como se a técnica tivesse sido exportada. Também há muitas
orientais, mas os folhetos são mais sofisticados com melhor qualidade, em
quatro cores, e, novamente, vê-se onde existe mais possibilidade de exploração
pelo tipo de publicidade. Aqui também estou recompilando este tipo de
propaganda, porém não tem nada que ver com a presença que há em Buenos Aires,
nem a organização, nem nada. Isso é algo que, por outro lado, me deixa
contente”.
Álbum
O álbum “Minas de Buenos Aires”
está organizado por bairros, detalhe que, além de ser uma ferramenta para
conhecer aqueles lugares típicos que não aparecem no Guia Trotamundos e Trip
Advisor, também permite realizar um estúdo sociológico da cidade. Pode
aquisitivo, preferências sexuais, tabus... e, como acontece em todas as
coleções, há também figurinhas impossíveis de conseguir que falam muito sobre a
idiossincrasia da cidade e de seus habitantes. Por exemplo, a figurinha de
serviços sexuais oferecidos por homens para homens.
“Você pode saber perfeitamente em
que bairro ou rua está simplesmente vendo este tipo de publicidade. Cada
negócio é vendido unicamente nas proximidades do local, e há uma espécie de lei
de respeito mútuo por onde os folhetos são distribuídos nas ruas”, conta
Falagán. “Existe tanta oferta que é preciso regulamentar para que não haja
problemas. No entanto, e apesar de toda essa variedade, em todo o tempo que
estive lá não vi nenhum folheto que promovesse homens. Sim eu vi algum que
vendia serviços de lésbicas, porém eram lésbicas para homens. A mulher e os
gays não eram um público objetivo, porém havia uma estranha fixação pelo mundo
do tênis como propaganda sexy. Com imagens na minha cabeça de Arantxa Sánchez
Vicario, eu não entendia muito bem esse desvio sexual”, complementa.
O mercado de arte não foi nada
receptivo com “Minas de Buenos Aires”. Depois de apresentá-lo na exposição
Pasen y vean, em Panal 361, as livrarias especializadas se recusaram a vender o
álbum porque diziam que era um material que causava constrangimento. Recusavam
dessa forma ativar o que tal vez sejam as facetas mais interessantes de toda
ação artística: o debate e a crítica de realidades sociais com as quais
convivemos e que são difíceis de abordar a partir de outras frentes.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
Texto publicado originalmente
pelo site Yorokobu com o título Una colección de cromos para denunciar la
explotación sexual
Fonte: Opera mundi
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