"Penso que nos é imposto o
mesmo desafio até que consigamos superá-lo. Logo, significa que esse desafio de
acolher o diferente, o ser que emigra em nossa direção, ainda é algo não
superado por nós. Sim, precisamos de ações humanitárias e piedosas para com os
que emigram. Mas o que quero propor é pensar o que, de fato, podemos deixar que
eles façam conosco. Eles já passaram suas fronteiras e desafiaram buscar as
migalhas. E nós? Somos capazes de lhes dar fatias do pão e não apenas as
migalhas?".
O texto é do jornalista e mestre
em Comunicação João Vitor Santos,
produzido como exercício do curso Jesus e o Reino no Evangelho de
Marcos. Eis o artigo.
Primeiro, proponho um mergulho no
texto de Marcos.
Marcos 7:24-30
A mulher cananeia
24 E, levantando-se dali, foi
para os territórios de Tiro e de Sidom. E, entrando numa casa, queria que
ninguém o soubesse, mas não pôde esconder-se, 25 porque uma mulher cuja filha
tinha um espírito imundo, ouvindo falar dele, foi e lançou-se aos seus pés. 26
E a mulher era grega, siro-fenícia de nação, e rogava-lhe que expulsasse de sua
filha o demônio. 27 Mas Jesus disse-lhe: Deixa primeiro saciar os filhos,
porque não convém tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. 28 Ela,
porém, respondeu e disse-lhe: Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos comem,
debaixo da mesa, as migalhas dos filhos. 29 Então, ele disse-lhe: Por essa
palavra, vai; o demônio já saiu de tua filha. 30 E, indo ela para sua casa,
achou a filha deitada sobre a cama, pois o demônio já tinha saído.
Agora, pense comigo.
A leitura do texto de Marcos me
fez pensar diretamente na situação dos refugiados. Na atualidade, são a
mulheres que correm ao ocidente atrás de ralas e parcas migalhas. O drama
desses imigrantes choca e emociona qualquer um, sem lá grandes esforços. Mas o
que eles representam? Voltando a Marcos, são as mulheres que rompem suas
fronteiras físicas e vão em busca de uma vida melhor. Se a mulher foi atendida
por Jesus, podemos imaginar que essas pessoas possam também ter sucesso e uma
vida melhor. Entretanto, há um outro fator envolvido.
Por que Marcos também faz
referência, de certa forma, à altivez da casa que recebe Jesus? Essa, creio eu,
é uma provocação para que nós também rompamos com fronteiras. Essa fronteira muito
particular, muito individual. O drama dos refugiados é uma atualização das
nossas relações com o outro. É como se, pelos olhos dos refugiados
desesperados, fosse possível ver o negro escravizado, o gay rejeitado, o
cristão e o judeu perseguidos. É viver mais do mesmo e numa atualização cruel e
contemporânea.
Por concepção própria, penso que
nos é imposto o mesmo desafio até que consigamos superá-lo. Logo, significa que
esse desafio de acolher o diferente, o ser que emigra em nossa direção, ainda é
algo não superado por nós. Sim, precisamos de ações humanitárias e piedosas
para com os que emigram. Mas o que quero propor é pensar o que, de fato,
podemos deixar que eles façam conosco. Eles já passaram suas fronteiras e
desafiaram buscar as migalhas. E nós? Somos capazes de lhes dar fatias do pão e
não apenas as migalhas? Ora, repito, isso é importante, mas no que podemos ser
melhor a partir dessa história de dor, sendo verdadeiramente afetados? Como
aceitar o outro como igual e não como a mulher de origem distinta da minha a
qual “deixo” buscar debaixo da mesa o que não me interessa?
Outro dia, conheci a história do
imigrante negro que trabalha numa fábrica, mas que é enfermeiro. E isso só se
revelou depois de atender uma mulher que passava mal no trem. Ora, demos a ele
a migalha de ser funcionário de fábrica. O acolhemos? Sim, acolhemos. O
aceitamos? Não. Ele não pode ser enfermeiro. Só vamos lhe dar o que não nos
serve mais, o excesso. Como disse Angela Merkel, o país não pode receber todos
os imigrantes porque vai tirar de seus nativos alguns lugares. Ou seja, somos
diferentes. Uns merecem mais e outros menos.
Ultrapassar a fronteira pessoal é
aceitar o outro. É olhar para o imigrante como alguém como eu, mas que vive uma
história diferente. Merece e precisa sentar à mesa. Merece não as migalhas, o
que não me serve mais, o excesso de minha refeição. Merece dividir a refeição
comigo. Seus hábitos podem me incomodar, posturas me revoltar e posso até não
aceitar o que crê e em quem crê. Mas é humano permitir que professe o que é ao
meu lado, em igualdade de direitos e sem olhares meramente piedosos ou de
repulsa e reprovação. Eis o desafio. Eis a fronteira da igualdade que ainda não
aprendemos a transpor.
Fonte: Ihu
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