Às 8h de uma segunda-feira, na
Delegacia de Plantão de Atendimento à Mulher, no centro de Belo Horizonte, quem
já estava lá era a bebê Brenda*, de 8 meses, miudinha como os seus cachos. O
sorriso inocente e os olhos cinza brilhantes ignoravam a aflição da mãe,
Aline*, 21, que, ao contrário, tinha os olhos inchados e não parava de chorar.
Ela havia fugido de casa de madrugada – pela janela, contou – com medo de que o
namorado, pai de Brenda, a matasse. “Ele me mordeu e jogou uma televisão de 40
polegadas em cima de mim, acredita?”.
Todos que estavam na unidade
policial acreditavam. Eram investigadores e delegada habituados a episódios do
tipo. Só quem não podia entender era a pequena Brenda. Naquele dia, em que,
durante nove horas, 30 mulheres procuraram a delegacia para denunciar casos de
violência, aquela bebê passou a representar a esperança de que, quando ela
crescer, uma nova realidade se apresente. Diferente da que hoje mata 47
mulheres por mês em Minas Gerais, segundo dados da Secretaria de Estado de
Defesa Social.
A morte, para muitas, é o fim de
uma trajetória marcada por tentativas de afastamento e perdão. A busca de ajuda
na polícia, muitas vezes, é um desses capítulos. Apenas na capital, desde 2009
há uma delegacia de plantão disponível 24 horas exclusivamente para isso. A
média diária é de 40 atendimentos, mas, na segunda-feira em que a reportagem
esteve lá, o plantão não tinha chegado à metade e já registrava 30 vítimas, 12
com marcas de agressão. As demais queriam denunciar as ameaças do atual ou do
ex-companheiro e recorrer às medidas de proteção.
Além de Aline, duas mulheres
chegaram com bebês no colo. Uma delas também chorava muito. Após quatro anos de
brigas, ela disse que, agora, queria tirar o marido de casa. “Ele tentou me
enforcar”.
A cada relato, havia uma relação
doentia como pano de fundo e uma pergunta que se impunha:
“Que amor é esse?”. Em busca de
resposta, O TEMPO conversou com diversas vítimas e faz, desta segunda até
sexta-feira, uma série de reportagens sobre a violência sofrida por mulheres –
casos que, quando não resultaram em mortes, são motivo de muito sofrimento em
vida.
Fuga. A mala vazia que Aline
carregava na delegacia de plantão, que ela conseguiu emprestada, era para
buscar roupas e objetos pessoais na casa da sogra, de onde saiu fugida após morar
lá por cerca de três anos com Joaquim*, 30. Ele foi preso em flagrante enquanto
batia nela e, por isso, aguardava em uma cela provisória no andar de baixo da
unidade. A maior preocupação de Aline era saber quando Joaquim seria solto.
“Será que ele sai hoje mesmo? Ele disse que mataria a minha família assim que
saísse. Preciso ir embora da cidade”, disse. Em seguida, saiu da delegacia com
a filha e acompanhada de policiais para entrar na casa da sogra, que também
havia lhe agredido.
Uma semana depois, a reportagem
entrou em contato com Aline, que contou sobre a soltura do namorado e que ele
estava sendo monitorado por tornozeleira, mas a medida protetiva que daria a
ela um equipamento semelhante para sinalizar a proximidade de Joaquim ainda não
havia sido concedida. Por telefone, Aline demonstrava o mesmo desespero do dia
em que estava na delegacia. “Ele continua me ameaçando. Não tive como viajar.
Estou morando de favor, longe dele”.
Na semana seguinte, só
conseguimos contato com a mãe de Aline. Ela informou que a filha havia voltado
para a sua casa e teria retornado ao trabalho. Porém, a residência fica perto
de onde mora Joaquim. “Ela ainda não recebeu o tal relógio (equipamento) da
Justiça, parece que vai ter que ter uma audiência primeiro, mas acho que ela
desanimou. Minha filha é muito boba, já tá falando que vai deixar a bebê com o
pai, vai acabar voltando pra ele. Não confio nessa Maria da Penha (lei), depois
que a mulher morre é que vêm as medidas. Tô preocupada”, disse Antônia*.
Fim do relacionamento amoroso reforça sentimento doentio de posse
“Você não quer nada comigo mais,
não? Então, beleza, se prepara pro velório”, dizia a mensagem de voz deixada
pelo ex-namorado da manicure Mirele*, 22. Na delegacia, enquanto mostrava as
costas machucadas, ela contava que aquela tinha sido a primeira e única vez que
ele a agrediu. A raiva do companheiro aumentou quando ele viu fotos dela de
minissaia no Facebook.
Entre os diversos casos que
chegam à delegacia, muitos são do ex que não aceita o fim do relacionamento ou
do atual que jura que a mulher o trai e faz disso uma paranoia. “Vivi 18 anos
com ele e sempre apanhei (o casal teve três filhas). Separamos há três anos,
mas não tive sossego. Ele me ameaçou com faca agora. Acha que é meu dono”,
desabafa Viviane*, 38. Perto dela, Luana*, outra vítima, disse: “Eles são todos
iguais. A sociedade é machista. Ele já namora, é livre, mas eu não posso. Dessa
vez, ele me bateu na frente da nossa filha”. Luana está separada há oito meses,
sendo que há seis entrou com medida protetiva para garantir a distância do
ex-marido e não adiantou.
Na delegacia, as mulheres dividem
suas histórias enquanto aguardam cerca de três horas para completar todo o
procedimento – do registro da queixa ao exame de corpo de delito e o pedido de
medida protetiva. Cinco investigadores, por turno de 12 horas, coletam os
depoimentos.
Estrutura
Especializadas. Em Minas, existem
66 Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), sendo quatro na capital e as
demais em cidades-polo. Nos municípios onde não há, o atendimento é feito na
delegacia comum.
47 Mulheres são mortas a cada mês
em Minas Gerais, vítimas de violência doméstica, de acordo com a média
registrada no primeiro semestre deste ano.
Mês passado
Enquanto a série era produzida,
um empresário, de 53 anos, enforcou e matou a mulher, também de 53, durante uma
discussão no apartamento do casal, no Lourdes, na região Centro-Sul da capital.
Em 24 de setembro, ele se entregou à polícia e confessou o crime, ocorrido no
dia anterior. Ele contou aos policiais que pediu à mulher que baixasse o tom de
voz e tapou a boca dela. Irritado com as provocações, o empresário disse que a
agarrou pelo pescoço, e ela desmaiou. O caso está sendo investigado.
Números
40 Atendimentos a vítimas são
feitos, em média, todos os dias em BH
74 Policiais civis trabalham em
quatro delegacias de mulher da capital
22.522 Medidas protetivas foram
concedidas em 2014 no Estado
1.442 Mandados de prisão foram
expedidos contra agressores em MG em 2014
*Nomes fictícios
Mulheres devem procurar Casa de Direitos Humanos
Assim que chega ao endereço da
delegacia de plantão – rua São Paulo, 679, perto da praça Sete –, a mulher
vítima de violência passa por triagem com assistentes sociais e psicólogas. No
prédio, chamado Casa de Direitos Humanos, também funcionam a Defensoria
Especializada e o Centro Risoleta Neves de Atendimento à Mulher (Cerna), para
consultas psicológicas, que devem ser agendadas. Se quiser prestar queixa de
agressão ou ameaça e requerer a medida protetiva, a vítima é encaminhada ao
investigador, à escrivã e à delegada.
Só a polícia atua 24 horas.
Depois do horário comercial, todas seguem direto para o andar da delegacia.
“Apesar de nos sugar emocionalmente, é compensador, porque você oferece justiça
naquele momento para mulheres que nos têm como referência”, diz a delegada
Águeda Bueno.
Boa parte das vítimas recua e desiste de manter queixa
As medidas são instrumentos da
Maria da Penha e trazem uma resposta imediata às ameaças e às primeiras
agressões
“Plantão da delegacia de mulheres, boa
tarde!”. Uma pessoa fala do outro lado da linha. “A senhora quer retirar a
queixa? Que dia foi feita?”. E a investigadora de polícia, que trabalha no
setor há seis anos, reage como quem já está acostumada com tais pedidos. “Mas a
senhora foi agredida, teve alguma lesão? Se foi só ameaça, pode retirar direto
no fórum”. No início daquele dia, outras duas vítimas de violência foram à
unidade com a mesma solicitação.
A investigadora, que prefere não
falar o nome, se arrisca a dizer que 90% das mulheres voltam para os homens que
elas denunciam. “Algumas até visitam o cara na cadeia e engravidam deles lá”.
De fato, muitas se arrependem de levar o caso à polícia, até mesmo quando é
tentativa de homicídio, ou porque fazem as pazes, ou porque, quando a raiva
passa, pensam nos filhos. Mas, após a Lei Maria da Penha – que desde 2006 criou
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher –, a
queixa de agressão, uma vez feita, não pode ser retirada. O objetivo é evitar
que as mulheres sejam forçadas pelos agressores a recuarem da decisão de
processá-los. Somente em casos de ameaças, a denúncia pode ser arquivada. Nos
outros, um inquérito criminal tem que ser aberto.
Muitas mulheres, porém, morrem
sem nem chegar à delegacia. Quando são agredidas, algumas costumam fazer só o
boletim de ocorrência na Polícia Militar e não oficializam a queixa na
delegacia, mesmo sendo orientadas para isso. Assim, o homem não é intimado a
prestar esclarecimentos nem sofrerá as sanções previstas em lei. Na delegacia
especializada, elas são orientadas a requerer a medida protetiva, em um
processo paralelo à investigação e teoricamente mais rápido – o prazo é de 48
horas, mas nem sempre é cumprido à risca.
As medidas são instrumentos da
Maria da Penha e trazem uma resposta imediata às ameaças e às primeiras
agressões. O companheiro recebe a ordem judicial de afastamento e, muitas
vezes, se intimida. Quando ele desrespeita, a mulher volta à delegacia e informa
o que ocorreu. Era o caso de muitas no dia em que a reportagem esteve na
unidade. Segundo a delegada de plantão Larissa Maia Campos, quando há
agravamento do caso, é solicitado o uso de tornozeleira eletrônica para que o
agressor seja monitorado. Existe ainda a possibilidade de prisão, e essa é uma
das primeiras perguntas que o investigador faz à vítima: se ela o quer detido.
“Eu pensei no meu filho, não
quero que ele seja preso. Mas pedi a medida protetiva, pra ele não chegar mais
perto de mim. Ele já está com outra, o que tá querendo comigo?”, disse Ana*,
23, com o olho roxo.
Fonte: O Tempo
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