A juíza Antonia Marina Faleiros:
quando criança, o maior desejo dela era ser vendedora em loja de
departamentos (Foto: Arquivo pessoal)
A mineira Antonia Marina Faleiros
passou no vestibular após recolher folhas de apostilas descartadas de um
cursinho e se tornou juíza criminal. Hoje, tenta mudar a perspectiva de vida de
crianças carentes no interior da Bahia.
“Nasci no Vale do Jequitinhonha,
região bastante pobre de Minas Gerais, há 52 anos. Naquela época, já era uma
área de muita carência, exportadora de mão-de-obra para trabalhos braçais nas
lavouras e, há quarenta anos, eu estava entre essas pessoas.
O trabalho infantil naquelas
condições não é escolha ou imposição dos adultos. Mesmo criança, eu tinha noção
das dificuldades pelas quais minha família passava e tentava contribuir com o
que aparecesse. Quando eu terminei a quarta série, com 14 anos, não havia como
continuar estudando em Serra Azul de Minas, minha cidade. Como não tínhamos
outro meio de sobrevivência, eu e mais dois irmãos, de 13 e 12 anos, fomos
trabalhar num canavial.
Minha mãe era dona de casa e meu
pai, trabalhador braçal do Departamento de Estradas e Rodagens. Não sei se
havia divulgação de métodos contraceptivos na zona rural, onde vivíamos. Minha
mãe teve quantos filhos a natureza mandou, mas uns dez abortos espontâneos ou
gravidezes que não foram a termo. Naquelas condições difíceis, vingaram seis
filhos, sendo eu a mais velha.
"O trabalho infantil
naquelas condições não é escolha ou imposição dos adultos. Mesmo criança, eu tinha
noção das dificuldades pelas quais minha família passava e tentava contribuir
com o que aparecesse"
Em 1976, consegui concluir o
primeiro grau e me mudei para uma cidade vizinha chamada Serro para fazer o
segundo. Só havia essa possibilidade num colégio particular e a mensalidade era
duas ou três vezes o salário todo da minha família. Dei aulas de reforço,
trabalhei como empregada doméstica e em serviços gerais no próprio colégio, um
internato, em troca de cama e comida. Com isso, consegui pagar a mensalidade e
ainda mandava um dinheirinho para meus pais e irmãos.
Terminado ensino médio, tentei um
emprego numa agência bancária na minha cidade, mas não consegui. Atualmente
exige mais pudor, mas naquela época as pessoas não eram nada sutis: não consegui
a vaga por causa da minha aparência. Era feia, tinha dentes estragados. Aos 17
anos, eu tinha acabado de ter acesso a luz elétrica e creme dental. Telefone,
então, demorou para eu conhecer.
Me reuni com meus irmãos mais
velhos e concluímos que estávamos sendo cada vez mais excluídos e que
precisávamos tentar a sorte fora. Meu pai disse que não tinha dinheiro para
manter todos, mas que rezaria por nós todas as noites. Até ele morrer, rezou um
terço antes de dormir.
Cada um de nós tomou um rumo. Eu
peguei uma carona com um tio e parei em Belo Horizonte, onde consegui durante
um tempo ficar na casa de parentes e arrumei um emprego como doméstica. Depois
de algum tempo, não foi possível mais ficar na casa desses parentes nem na da
patroa, que não queria saber de empregada dormindo em casa.
Dois momentos da infância da
juíza: ainda bebê (à dir), junto de uma das irmãs, no colo de um tia e
madrinha; e em Brasília, escolhida como uma das melhores estudantes do país
para assistir à posse do presidente João Figueiredo , em 1979 (Foto: Arquivo
pessoal)
Como não queria voltar para minha
cidade, contei para ela que continuava na casa desses parentes e, nas cartas
para minha mãe, dizia que estava na casa da patroa. Passei sete meses 'morando'
em um ponto de ônibus entre a ruas Tamoios e Rio de Janeiro, em frente à
agência da antiga Telemig. Dormir, eu não dormia. Colocava a mochila nas
costas, sentava e ficava. Se notava que alguém estava me olhando muito, dava
uma volta. Quando amanhecia, ia caminhando para a casa da patroa, cerca de
quatro quilômetros dali. Minha mãe morreu sem saber que vivi na rua.
Um dia uma senhora se aproximou,
conversou um pouco e me convidou para dormir na casa dela. Tomei um banho e ela
me ofereceu um jantar. Me lembro até hoje de, depois de tanto tempo, apagar a
luz, cobrir o corpo com uma coberta. Foi uma das melhores sensações da minha
vida! Anos depois, voltei no bairro onde ela morava para tentar localizá-la,
mas nunca mais tive contato.
Nos finais de semana, ia visitar
parentes que moravam mais distante. Continuava procurando emprego nos jornais.
Um dia, vi o anúncio de um cursinho preparatório para concursos chamado Vila
Rica. Fui lá para tentar me matricular e vi que não tinha dinheiro nem para o
curso nem para comprar as apostilas.
"Passei sete meses 'morando'
em um ponto de ônibus. Dormir, eu não dormia. Colocava a mochila nas costas,
sentava e ficava. Se notava que alguém estava me olhando muito, dava uma
volta"
Comecei a recolher as folhas
borradas que uma secretária do cursinho descartava do mimeógrafo que imprimia
as novas apostilas. Com essas folhas, estudei para o meu primeiro concurso e
fui aprovada para o cargo de oficial de justiça do Tribunal de Justiça de
Minas, logo que atingi a maioridade, naquela época, os 21 anos.
No tribunal, acabei fazendo
contato com pessoas da área de direito e aquilo acabou me despertando para a
área jurídica –minha primeira opção de estudos sempre fora a área de exatas,
mas em 1986, em meio aos planos econômicos e a inflação absurda, fazer um curso
como engenharia seria suicídio! O Brasil estava parado e as perspectivas de
conseguir emprego em obras eram muito pequenas.
Fui morar num pensionato
dividindo o quarto com mais três mulheres assim que tomei posse como oficial de
justiça. Um colega do tribunal que estava iniciando um cursinho me chamou para
dar aulas de língua portuguesa, mesmo sem ter graduação. Para justificar minha
presença ali, passei a fazer um concurso por ano para gabaritar a prova de
português e usar isso como referência.
Como sempre gostei de dançar,
também passei a dar aulas de dança de salão e gafieira numa escola de dança.
Com todas essas atividades, comecei a ganhar um pouquinho melhor, deixei o
pensionato e consegui bancar uma reforma na casa dos meus pais, instalar luz
elétrica, comprar rádio, televisão.
Antonia Faleiros (de preto) em
família, ao lado do pai, da mãe e de duas irmãs, durante a formatura em
direito, em 1992 (Foto: Arquivo pessoal)
No final de 1986, fiz vestibular
e fui aprovada na UFMG, minha única alternativa, já que a outra única faculdade
de direito era particular. Minha festa de formatura foi em fevereiro de 1992 e
minha mãe morreu em abril, com a idade que tenho hoje, após sofrer um acidente
vascular cerebral. Entrei em depressão, fiquei muito revoltada. Tinha muita
vontade de dar a ela tudo o que ela desejava, coisas simples como conhecer
Aparecida do Norte ou ter uma máquina de costura. Meu pai morreu cinco anos
depois, de câncer de pulmão. A ele, já pude pelo menos dar um acompanhamento
médico melhor, levar para minha casa.
Formada, montei um escritório de
advocacia em BH, fui procuradora do município, assessora jurídica da Secretaria
de Planejamento e de um sindicato e ainda continuava dando aulas no cursinho.
Agarrava todas as oportunidades que surgiam com toda força.
O primeiro concurso que fiz para
o cargo de juíz, no entanto, preferi não assumir. Era para uma vaga de juíza
federal da Primeira Região e fui nomeada no Acre. Como minha irmã mais nova,
nascida em 1979, ainda morava comigo, temi que isso puder atrapalhar os estudos
dela, e acabei desistindo. Hoje, é a única dos meus irmãos que também concluiu
a faculdade, de farmácia.
"Quando eu passava por todas
aquelas dificuldades de trabalho braçal, meu maior desejo era ser vendedora em
uma loja de departamentos, porque trabalhava na sombra e com uma roupa
limpa"
Depois disso fui delegada,
procuradora do Banco Central, procuradora da Fazenda de Minas e fui transferida
para Uberlândia. Lá, conheci o advogado com quem estou casada há 20 anos. Ele
trabalhava na área de fiscalização da procuradoria da Fazenda e foi amor à
primeira vista. Os filhos do casamento anterior dele são meus filhos e a ex,
uma grande amiga. Gosto de brincar quando apresento ela a alguém: ‘Essa é a mãe
dos meus filhos’ e rio muito vendo a reação das pessoa achando que é uma
relação homoafetiva.
Há doze anos, fiz o concurso de
juíza para o Tribunal de Justiça da Bahia, onde vivemos desde 2003. Meu marido
e meus filhos acabaram vindo morar aqui também. Ele mantém escritórios em Lauro
de Freitas (BA), Uberlândia e BH. Meus filhos se formaram e uma vive ainda
comigo e outro se casou e se mudou para BH. Temos uma amor autêntico,
verdadeiro, cuidamos muito um com o outro. De Uberlândia, a ex do meu marido
tem acesso às câmeras de segurança de nossa casa.
Gosto de falar da minha história,
mas prefiro destacar os trabalhos que faço hoje fora do tribunal, alguns dos
quais foram premiados. Tenho um projeto com filhos de carvoeiros em Mucuri, a
primeira comarca que assumi na Bahia, e projetos com crianças nos lixões de
Itabuna e Lauro de Freitas. Gosto de estimular esses meninos a verem a vida
além do tráfico e da violência. Quero que outras pessoa também conheçam e
ajudem.
À medida que você vai descobrindo
o mundo, vai sonhando com mais. Quando eu passava por todas aquelas
dificuldades de trabalho braçal, meu maior desejo era ser vendedora em uma loja
de departamentos, porque trabalhava na sombra e com uma roupa limpa. Nunca
desisti de ir adiante mas, objetivamente, achava que isso já seria uma vitória
enorme.”
Revista Marie Claire
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