“Tenho medo que eles abafem o
caso”. A frase é da estudante do quarto ano do curso de Veterinária da
Universidade de São Paulo (USP) Bianca Cestaro de Almeida, vítima de um estupro
ocorrido em julho de 2013, em um alojamento em Pirassununga, no interior de São
Paulo. A sindicância interna concluiu que o agressor dela é culpado, mas a
aluna e um professor disseram ao Brasil Post temer que nada aconteça.
A reportagem teve acesso a
documentos do caso. Iniciada em 3 de março deste ano, a sindicância a respeito
da denúncia de estupro terminou no dia 14 de maio e, após vítima, suspeito e
testemunhas terem sido ouvidas, a comissão montada para investigar internamente
o caso na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP concluiu
que o agressor é culpado e deveria ser expulso da instituição.
“Sugerimos a punição após ouvir
todas as partes”, disse ao Brasil Post o presidente da comissão sindicante,
professor Sérgio Salomão Shecaira.
Procurada pela reportagem para
comentar o resultado, Bianca se disse “aliviada” pelo resultado da
investigação, mas não deixou de relatar alguns problemas. O primeiro é que,
passados mais de dois meses da conclusão da sindicância, ela não teve mais
informações do caso.
“Não ouvimos mais nada da
faculdade. Tenho medo que eles abafem o caso”, disse a jovem, que prestou
depoimento à CPI dos Trotes da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em
janeiro deste ano.
Aos deputados, Bianca descreveu
os horrores que viveu. “Acordei com a dor dele me penetrando por trás. Quando
vi que ele não ia desistir, disse que concordaria em fazer sexo com ele, mas
pedi para ir ao banheiro. Ele deixou, mas disse que se eu não voltasse, iria
atrás de mim”, disse.
A estudante comentou ainda,
também à CPI, que um segurança da faculdade a orientou a não fazer nada por
"estar bêbada". A falta de auxílio da FMVZ fez a comissão sindicante,
em sua conclusão, sugerir a punição da assistente social Tânia Bartholo
Andreotti. Segundo Shecaira, ficou claro que ela “rompeu as normas éticas das
assistentes sociais” durante o atendimento à Bianca. A vítima assim descreve o
atendimento prestado por Tânia na época do estupro:
“Ela me disse logo de cara que já
havia conversado com ele [agressor], que estava tudo bem e que era para eu
esquecer aquilo. Como pode isso? Ela deveria me ajudar, mas não fez isso. Não
sei se tem a ver com o fato de ser uma senhora já, do interior, que ainda vê
uma coisa dessas [estupro] como algo que possa ser esquecido, como algum tabu.”
Operação Abafa
É justamente o envolvimento de
uma assistente social da FMVZ que estaria motivando uma ação para ‘abafar’ o
caso, segundo um envolvido nas investigações do caso de estupro em
Pirassununga. Em parecer assinado no dia 18 de junho – ao qual o Brasil Post teve
acesso –, o advogado e procurador da USP Arthur Souza Rodrigues questiona o
resultado da sindicância.
Segundo ele, a comissão não
respeitou o prazo de 60 dias para concluir as investigações e solicitou
informações adicionais, como o apontamento sobre eventuais responsabilidades de
outros funcionários do campus da faculdade na época do crime, e a argumentação
mais clara e objetiva sobre como a assistente social “faltou com o seu dever”.
Talvez o trecho mais controverso
envolva o seguinte pedido: “Obter cópia das imagens do circuito interno do
alojamento para verificar se o discente realmente foi ao quarto da denunciante
no meio da noite, se a denunciante encontrava-se no alojamento no dia”. De
acordo com Bianca, a busca pelas imagens já foi feita e, “misteriosamente”, a
fita do circuito de segurança naquele dia desapareceu.
Um professor envolvido com as
investigações, que não quis se identificar, criticou o parecer do procurador da
USP. “Esse mesmo procurador era suspeito de uma operação para abafar outros
casos na USP, algo que não foi comprovado. Os superiores dele (o
procurador-chefe Marcelo Buczek Bittar e a procuradora-geral Márcia Walquiria
Batista dos Santos) referendaram esse parecer. Creio que há um movimento para
defender essa assistente social”, comentou.
Outros procuradores acolheram
pedido de explicações (Reprodução)
A comissão sindicante já se
posicionou contra o parecer do procurador Arthur Souza Rodrigues. Em conversa
com o Brasil Post, ele preferiu não se pronunciar, repassando a
responsabilidade de um posicionamento aos seus superiores.
A reportagem procurou o
procurador-chefe Marcelo Buczek Bittar, mas não obteve retorno até a publicação
desta matéria.
“Fiquei depressiva”
A assistente social Tânia
Bartholo Andreotti conversou por telefone com o Brasil Post. Ela disse não ter
tido o devido direito de defesa e deu uma versão diferente para todo o caso. A
servidora contou que fica nervosa sempre que fala do caso e que entrou em uma
depressão muito grande na época da denúncia e das investigações. Segundo Tânia,
ela conversou com a vítima do estupro uma única vez.
“Ela (Bianca) foi à minha sala
uma única vez, junto com o chefe de segurança. Ela queria que eu fizesse alguma
coisa, que expulsasse o aluno. Como eu poderia fazer isso? Quando ela veio, fui
em quem a orientou a fazer o boletim de ocorrência na polícia, jamais a tratei
com qualquer desrespeito. Agora falam na sindicância que eu acobertei
estuprador. Pense, quem faz algo assim em sã consciência?”.
A assistente social confirmou que
foi procurada pelo agressor antes de falar com a vítima. Tânia disse que o
jovem foi acompanhado de um amigo – este jamais ouvido pela sindicância,
segundo ela. A servidora comentou que as versões apresentadas pelo rapaz “são
conflitantes” e “já mudaram”, mas criticou o que ela acredita ser um resultado
já pronto da investigação.
“Em todo o processo eles falam
que o jovem mentiu. Ele veio falar comigo antes dela, me contou que estava
preocupado porque ela (Bianca) havia postado o estupro no Facebook. Quando um
aluno vem à minha sala, eu o ouço seja quem for. Depois a Bianca veio e não foi
respeitosa, ela me cobrou uma postura, querendo que eu expulsasse o rapaz. Mas
eu sou só uma assistente social, deu o encaminhamento ao prefeito do campus, ao
diretor, mas não posso abrir sindicância. É um absurdo dizer que acobertei
alguém. Não sou polícia”, disse.
Tânia disse ainda ter temido pela
vida do agressor (“achei que ele podia ser linchado”), o que pode ter
conspirado para o que ela considerou “uma tentativa de incriminá-la” na
sindicância – a qual, para ela, não esclareceu o caso. A assistente social
ainda se queixou de não ter recebido qualquer apoio ou respaldo da faculdade no
caso. Ciente das críticas da vítima ao atendimento dela, Tânia desabafou.
“Eu fico com muita pena dela.
Veja que, se aconteceu tudo o que ela disse, existe um desespero em provar.
Outro dia fui chamada na delegacia para depor no processo que corre lá. Tudo o
que eu fiz é o que eu poderia fazer: orientar. Não vi o que aconteceu e não
protegi ninguém. Lido com problemas muito graves todos os dias, me desculpe em dizer
isso mas não estou bem até hoje”, completou.
“Ele é inocente”
Responsável pela defesa do
agressor na sindicância, o advogado Carlos Rodrigo Kazu Tagamori disse não ser
mais o defensor do rapaz, mas criticou o resultado da sindicância e garantiu
que o seu agora ex-cliente é inocente. “A sindicância não pode expulsar
ninguém. Foi ignorado o fato de que não há laudo que comprove a materialidade
(do estupro). Sem isso, não pode haver essa conclusão. Nem o Ministério Público
foi acionado”, disse.
O advogado do agressor comentou
ainda que “apenas depoimentos” embasaram a decisão da comissão sindicante e que
a tendência natural é que seja impetrado um recurso na FMVZ quanto à decisão de
pedir a sua expulsão. Para que isso ocorra, é preciso ainda que seja dada uma
decisão final da Procuradoria da USP, que dá ciência e indica o caminho a ser
tomado pelo diretor da faculdade, Enrico Ortolani.
De acordo com fontes ouvidas pelo
Brasil Post, o diretor da FMVZ recebeu “com satisfação” o resultado da
sindicância, mas pelo regimento interno da USP, é preciso respeitar o trâmite e
as avaliações dos procuradores antes de que qualquer atitude administrativa
seja tomada. A reportagem procurou Ortolani por meio da assessoria de imprensa
da faculdade, mas não obteve retorno.
Para a vítima, a expectativa
ainda é para que justiça seja feita. Bianca promete não desistir de ver o seu
agressor punido:
“Falar sobre tudo isso me fez
melhor, me ajudou mais do que os antidepressivos. Recebi muito apoio de amigos,
da minha família, vi que não fui a única a sofrer com isso. Ouvi outras
histórias parecidas de meninas sobre o meu agressor, vi que acontece em outras
faculdades. É importante que a gente fale sobre isso, não é normal e não
podemos esquecer. Temos de ter coragem para mudar essa situação.”
Embora a sindicância tenha sido
tornada pública, o Brasil Post optou por omitir o nome do agressor, uma vez que
a punição sugerida se dá apenas em âmbito administrativo, e não criminal —
alçada que depende da atuação da polícia (cujo inquérito ainda não foi
concluído) e do Ministério Público. A reportagem não conseguiu contato com ele.
Fonte: Brasil Post
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