Maria José de Oliveira Araújo,
especialista em saúde da mulher pela Sorbonne participa do encontro de
entidades da saúde de Canoas que discute nova abordagem para a saúde mental das
mulheres. | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
“O casamento é um risco para a
vida das mulheres”, diz médica especialista em saúde mental feminina.
Por Débora Fogliatto Do Sul21
A cidade de Canoas, na região
metropolitana de Porto Alegre, recebeu uma série de formações em gênero e saúde
mental promovidas pelo projeto Girassóis. Os cursos foram iniciados em março de
2014 e divididos em três datas, que capacitaram profissionais da saúde, da rede
de enfrentamento à violência contra a mulher e lideranças comunitárias. Uma das
pessoas que tornou essa medida possível foi a médica baiana Maria José Araújo,
que esteve na cidade na última terça-feira (7) para participar do Seminário
Gênero, componente essencial na atenção à saúde mental das mulheres. Ela
trabalhou como consultora para o projeto, desenvolvido pelo Coletivo Feminino
Plural.
Maria José formou-se inicialmente
em Pediatria, carreira que ela logo abandonou para fazer mestrado em Saúde
Mental Materna e Infantil na França, seguido de uma formação em Ginecologia de
Atenção Primária na Suíça. Paralelamente, é ativista pelos direitos das
mulheres e uma das fundadoras da Rede Feminista de Saúde, além de coordenadora
da área técnica de Saúde da Mulher no Ministério da Saúde, no primeiro mandato
do presidente Lula, e coordenadora, no Brasil, da instituição internacional
“Médicos pelo direito a decidir”. Em 2005, Maria José foi uma das 52
brasileiras indicadas pelo projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. A
iniciativa selecionou mil mulheres ao redor do mundo todo indicadas para o
prêmio como forma de criticar o fato de apenas 11 mulheres o terem recebido durante
seus 113 anos.
Nesta entrevista ao Sul21, ela
analisa as questões que relacionam gênero e saúde mental, defendendo que as
mulheres têm mais problemas psiquiátricos (elas são 74% da população que toma
remédios para estas doenças) devido às desigualdades, violências e pressões
sociais sofridas. As políticas públicas voltadas à saúde mental, porém, não
fazem esse recorte, critica ela. “Não tem nenhuma base no sentido de mudar um
pouco a autoestima das mulheres, de tentar interferir na questão da violência,
no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as mulheres
sofrem”, aponta.
Essa violência que as mulheres
sofrem na sociedade pode ser tanto física quanto psicológica. “É real a
violência psicológica. Tanto é real que está categorizada na lei Maria da
Penha, mas as mulheres às vezes nem percebem que estão sofrendo com essa
violência que não deixa marca física, mas deixa marca emocional”, avalia a
médica. Isso passa por questões de autoestima, determinada sempre pelo “olhar
masculino”, segundo ela, que faz com que as mulheres tenham cada vez mais
problemas de saúde. Confira a entrevista completa:
Sul21 – Como começou o seu
envolvimento com o Projeto Girassóis?
Maria José – A gente [ela e o
Coletivo Feminino Plural] faz parte da mesma rede, a Rede Feminista de Saúde,
Direitos Sexuais e Reprodutivos, já trabalho com o coletivo há muitos anos. E
com o começo desse projeto, elas precisavam de uma pessoa que tivesse uma visão
de saúde mental distinta, que contemplasse as questões de direitos humanos,
gênero e vulnerabilidade, com outro olhar sobre a saúde mental das mulheres. E
eu venho trabalhando com isso há bastante tempo, por isso me convidaram para
ser consultora do projeto e fiquei muito feliz.
Sul21 – Muitos profissionais da
área parecem ainda não ter formação nesse sentido, nem a percepção da relação
entre gênero e saúde mental. Como a senhora percebe essa questão?
Maria José – É, na verdade as
políticas públicas homogenizam todo mundo. Fora as políticas de pré-natal,
parto e aborto, as políticas públicas de saúde são políticas globais, que não
contemplam essa questão. Não são elaboradas a partir de uma percepção de que as
mulheres têm determinantes da saúde diferentes dos homens. Têm questões
relacionadas à biologia e à socialização que exigem políticas diferentes, com
outros olhares, outras abordagens, outras percepções. Quando sai uma política
de saúde mental, ela sai para todo mundo. Não tem nenhuma base no sentido de
mudar um pouco a autoestima das mulheres, tentar interferir na questão da
violência, no auto-conhecimento, na tripla jornada, na discriminação que as
mulheres sofrem. [Essas políticas] homogenizam o que é desigual, Muitas vezes
são inadequadas, a visão e a abordagem.
Então a mulher com sofrimento
psíquico vai permanentemente no serviço de saúde e não consegue ter suas
questões resolvidas justamente por isso. Enquanto as políticas públicas não
conseguirem ter essa abordagem, mulheres vão continuar sem ter suas questões
resolvidas.
Sul21 – Isso tem também a ver com
toda a questão da autoimagem da mulher, da pressão da mídia e da sociedade
sobre os corpos das mulheres?
Maria José – Exatamente. O Brasil
é um dos países do mundo em que mulheres mais fazem cirurgias plásticas. A
autoestima das mulheres é sempre baseada no olhar masculino, são os homens que
determinam o valor das mulheres e dão status. Não é por acaso que é um dos
países onde elas mais são considerada como objetos. Pelo comportamento, tipo de
roupa, por essa questão da cirurgia plástica. Eu estava em um debate onde uma
das debatedoras disse que fizeram uma pesquisa com as meninas de 15 anos e o
presente que elas pedem nos aniversários é botar silicone nos seios. Com 15
anos! É tão complicado isso, essa questão da mulher como objeto. Eu achava até
que isso tinha melhorado, mas nos últimos dois anos acho que regrediu.
Sul21 – Tem a questão da
violência que é perpetuada em casa, não apenas física, mas também psicológica.
Maria José – E a violência
psicológica não é nunca relatada. A física e sexual, embora muitas mulheres não
denunciem, outras o fazem. Enquanto a [violência]psicológica, às vezes, a
mulher nem percebe, são as micro violências cotidianas: “Você é feia, burra,
tem o peito caído, está gorda, não entende nada, você é incapaz, não presta
para nada”. Esse tipo de violência, que é sutil, vai minando a autoestima das
pessoas o tempo inteiro. Toda mulher que sofre violência tem muito baixa
autoestima, ou porque sofre violência há muito tempo, ou porque a mãe já sofria
violência e cresceu vendo aquilo. É real a violência, tanto é real que está categorizada
na lei Maria da Penha, mas as mulheres, às vezes, nem percebem que estão
sofrendo com essa violência que não deixa marca física, mas deixa marca
emocional.
Sul21 – Em comparação com outros
países, se a sociedade for menos machista, percebe-se uma diferença na saúde
mental das mulheres?
Maria José – Eu acho que sim.
Quanto mais as mulheres têm autoestima, são menos discriminadas, se valem por
elas mesmas, a saúde mental melhora demais. As mulheres casadas que têm mais de
três filhos, isso é um risco para a saúde mental. Porque são elas que fazem
tudo, cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, são elas que abortam, elas
que gerenciam a casa. Quando chegam do trabalho, se forem pobres, vão ter que
fazer de novo tudo que fizeram na casa da patroa; se não forem pobres, de
qualquer forma têm que cuidar das crianças, ajudar nos deveres da escola. É uma
sobrecarga que não termina nunca. Então, o casamento é um risco para a vida das
mulheres. Infelizmente, essa é a realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga
de trabalho.
Eu tenho uma reflexão, acho que
no Brasil a maioria das mulheres de classe média e alta só está junto com os
homens porque têm empregada doméstica. É um amortecedor da falta de apoio, da
falta de divisão sexual do trabalho, porque os homens e os filhos não fazem
nada. Tem um círculo vicioso que as mulheres não conseguem sair, e aí é uma
sobrecarga de saúde mental. Por isso que elas são 74% dos consumidores de
remédios psiquiátricos, porque tem que ter alguma válvula de escape.
Sul21 – E ao mesmo tempo, parece
que muitas vezes os problemas das mulheres não são levados a sério, e elas
mesmas não percebem.
Maria José – Elas muitas vezes
não percebem o círculo vicioso em que entrem. Sabem que se sentem mal, mas não
sabem o porquê. Não tem uma reflexão de que é a vida dela que provoca aquele
mal estar: a infelicidade, sobrecarga de trabalho, violência. Há muitas
mulheres hoje que conseguem perceber, mas é lento o processo.
Sul21 – Atualmente, os cuidados
de saúde mental são muito voltados para a medicalização. Quais os efeitos
disso?
Maria José – Olha, eu sou médica,
acho que alguns casos precisam de medicamento. Uma depressão grave, severa,
provavelmente tanto homens quanto mulheres precisam de medicamentos, além de
apoio de uma terapia, de um profissional. Mas só pelo número já dá para ver que
existe um abuso de medicação. Todas as queixas das mulheres para
ginecologistas, obstetras e psiquiatras, são imediatamente medicalizadas. Uma
pessoa que perdeu a mãe, por exemplo, tanto homens quanto mulheres, é normal
que a pessoa chore, sinta tristeza, sinta seu luto. Mas o próprio manual de
Doenças Mentais, o DSM, traz que 15 dias de luto já é uma doença mental. Ou
seja, transformam o que é do cotidiano do ser humano em doença, e assim o
primeiro passo é a medicalização. Nessa sociedade capitalista, pós-moderna, individualista,
as pessoas não podem mais fazer seu luto, de todos os tipos. Como é uma
sociedade de supérfluos, de consumismo, que tudo é temporário e descartável, os
afetos também viraram descartáveis. Se seu pai, mãe, companheiro ou companheira
morre, você tem que, 15 dias depois, já estar numa boa. É todo um conjunto de
sintomas da sociedade atual, da contemporaneidade.
Sul21 – E essas questões de saúde
mental afetam de forma diferente em função da raça ou da classe social?
Maria José – Que eu saiba, não
tem nenhum estudo no Brasil por exemplo que digam se as mulheres negras tomam
mais medicamentos psiquiátricos ou não. Na minha cidade, Salvador, 70% das
mulheres são negras, então… eu não tenho dados científicos, mas pode ser que
sejam mais medicalizadas, porque têm acesso a serviços de saúde que não são de
boa qualidade, estão nas camadas mais pobres, são mais discriminadas. É só ver
o que aconteceu com a Maju, a mulher do tempo no Jornal Nacional, que foi alvo
de piadas discriminatórias*. Tinha um comentário que dizia: “onde eu posso
comprar essa escrava?”, ou seja, estamos num país totalmente machista e
racista. Então, isso acontece com uma mulher que está no Jornal Nacional, que é
uma mulher culta, que todo mundo elogia o trabalho dela, e mesmo assim os
comentários nas redes sociais são terríveis. Eu fiquei chocada, eu imagino que
podemos inferir que as mulheres negras tomam mais medicamentos psiquiátricos,
até porque as mulheres brancas são discriminadas por serem mulheres, mas não
por sua cor.
*A apresentadora da Rede Globo Maria Júlia
Coutinho foi alvo de diversos comentários racistas pela internet, na semana
passada. As mensagens foram enviadas após a emissora publicar no Facebook uma
foto da apresentadora.
Fonte: Geledes
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