A erradicação do tráfico não implica apenas a libertação de
pessoas escravizadas, mas se fazem necessárias complexas e profundas mudanças
de práticas e cosmovisões culturais, bem como uma redefinição da racionalidade
econômica.
Por Roberto Marinucci
Pesquisador do Centro
Scalabriniano de Estudos Migratórios – CSEM
O enfrentamento ao tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual e trabalho escravo tornou-se uma das prioridades da pauta de
numerosos governos, organismos internacionais e organizações
não-governamentais. No mundo contemporâneo é inadmissível que continue esta
prática hedionda de mercantilização de seres humanos. No entanto, os números
oficiais da Organização Internacional do Trabalho falam em 20,9 milhões de
vítimas encontradas no mundo inteiro, sendo que o número efetivo deve ser muito
superior.
A região da Ásia-Pacífico apresenta o maior número de
pessoas reduzidas à condição análoga à escravidão, com cerca de 11,7 milhões
(56% do total), seguido pela África (18%), América Latina (9%) e o Leste
europeu (7%). Mas não é apenas um problema dos países em desenvolvimento. Nos
EUA, Japão, Canadá, Austrália, Noruega e Países da União Europeia, o número de
vítimas chega a 1,5 milhão, cerca de 7% do total.
As vítimas são pessoas sujeitas a empregos impostos através
de coação ou de fraude, dos quais elas não podem sair. Conforme um recente
relatório da União Europeia, "mulheres e homens, meninas e meninos em
situação de vulnerabilidade são vítimas de exploração sexual ou de trabalho,
remoção de órgãos, mendicância forçada, servidão doméstica, casamentos forçados,
adoções ilegais ou outras formas”. O crime mais comum é a exploração sexual
(76%, em 2010), seguido pela exploração do trabalho (14%). No entanto,
sobretudo no continente asiático, cresce muito também o tráfico de crianças
para fins de mendicância (3%) e de mulheres para servidão doméstica (1%).
Apesar dos discursos oficiais, dos numerosos relatórios
elaborados e das políticas públicas implantadas para o enfrentamento, tem-se a
impressão de que as sociedades contemporâneas tenham certa tolerância ou
omissão sobre a questão do tráfico. Por vezes questões culturais e econômicas
acabam legitimando práticas consideradas injustas, mas que, no fundo,
"sempre existiram e sempre continuarão existindo”. Em outros termos, a
erradicação do tráfico não implica apenas a libertação de pessoas escravizadas,
mas se fazem necessárias complexas e profundas mudanças de práticas e
cosmovisões culturais, bem como uma redefinição da racionalidade econômica.
Por outro lado, há também um complexo debate acerca das
definições teóricas de "trabalho análogo à escravidão” ou acerca da
distinção entre "tráfico de pessoas para fins de exploração sexual” e
"livre prostituição”. Essas indefinições semânticas, por vezes, acabam
dificultando a elaboração de políticas de enfrentamento e, principalmente, a
identificação das vítimas.
Outro fator que prejudica o enfrentamento é a
instrumentalização da luta contra o tráfico de pessoas com vistas a outras
finalidades: às vezes, em nome da proteção das vítimas ou da luta contra o
crime organizado legitimam-se a implantação de políticas imigratórias
restritivas, confundido, propositalmente, traffickinge smuggling; outras vezes,
utiliza-se o tráfico para desacreditar outros países, apresentando-os como
origem ou meta de ingentes fluxos de pessoas traficadas ou como países
indiferentes à problemática.
A impunidade também é frequentemente considerada como um
fator que alimenta a prática do tráfico e, inclusive, a tolerância ou
indiferença social em relação a este crime. Não é por acaso que nos últimos
anos, no Brasil, várias empresas de ampla difusão nacional e internacional
tenham sido acusadas de utilizar trabalhadores em condições análogas à
escravidão.
Finalmente, diante deste cenário muito pouco promissor,
torna-se prioritário trabalhar na redução da vulnerabilidade das possíveis
vítimas, tanto através da educação e da informação, quanto mediante a oferta de
oportunidades para uma vida digna. Esta é também a opinião de irmã Estrella
Castalone, da Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, que há anos luta
contra o tráfico: "Trata-se de propor não apenas de ‘sair’ do tráfico, mas
de dar oportunidades para que melhorem as condições de vida nas aldeias e nas
cidades, para que os pais e as famílias possam ‘proteger’ seus filhos”.
Fonte: Adital
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