Segundo levantamento do American Journal of Public Health,
divulgado em 2011, 48 mulheres do Congo são estupradas a cada hora, 1,1 mil a
cada dia e 400 mil por ano. Kivu do Norte é uma das regiões mais afetadas pela
violência sexual. 67 mulheres a cada mil foram estupradas pelo menos uma vez na
província do país atingido por duas guerras civis e com conflitos em curso. Num
cenário onde parece não haver mais esperança, a congolesa Maman Marie Nzoli
trabalha duro para encorajar e provar o contrário à comunidade por meio da COPERMA,
ONG fundada por ela junto a um grupo de 17 mulheres em 1983.
Nestes quase 30 anos, foram criados 12 centros de apoio aos
moradores locais. Quando fundada, a organização tinha como principal objetivo
unir a comunidade para, juntos, pensarem numa alternativa para o cultivo de
alimentos para a própria sobrevivência. No fim da década de 1990, os problemas
dos habitantes da cidade de Butembo e região, atendidos pela COPERMA, pioraram.
Além da luta pela sobrevivência por meio do cultivo, a instituição passou a
atender casos urgentes provocadas pela 1ª Guerra do Congo, onde mulheres e
meninas passaram a ser estupradas e garotos serem levados por grupos armados.
Com a explosão da segunda guerra no país, também no fim da
década de 1990, foi agravada a situação. Com isso, a ONG passou a focar mais em
assistência médica e psicossocial, a fim de ajudar as vítimas da guerra a
superar o trauma emocional e viver sem medo. O ensino primário e secundário
também é oferecido, além do ensino de corte e costura, panificação, fabricação
de sabão, uma alternativa para o sustento da população de Kivu do Norte.
Maman Marie conta em entrevista ao portal The Women’s Eye
que cresceu no meio rural com seus pais professores e irmãos e, apesar da
oportunidade de se formar na escola, não cresceu em volta de grandes
privilégios. Para comer, por exemplo, precisava trabalhar. Para comprar
cadernos para o estudo, arrecadava dinheiro vendendo quitutes.
Ela relata uma vida sem paz completa no Congo, mas com casos
raros de violência sexual e assassinatos. Chegou a casar-se e ter três filhos
com um soldado do exército governamental. Nunca mais o encontrou depois que ele
foi para a capital do Congo. Quando casada, mudou-se para Bukavu, capital da
província de Kivu Sul, onde se formou técnica de desenvolvimento rural. Foi em
seu retorno à região de Kivu do Norte que se juntou a outras mulheres para
formar a ONG que dirige.
A ativista revela que os problemas na região e no país
continuam a crescer. Pessoas passam fome mesmo com uma terra fértil para
cultivo e rica em minério e outras riquezas exploradas por outros países.
Meninas engravidam cada vez mais jovens. Há relatos de que, além dos rebeldes,
soldados governamentais e civis abusam das garotas. Para completar, nem sempre
as pessoas revelam que sofreram violência, o que dificulta que recebam
atendimento médico adequado.
Apesar da violência contínua, a motivação de Maman Marie
permanece. Ela continua encorajando e reintegrando à sociedade as
"meninas-mães" e outras vítimas de violência sexual, os “garotos
soldados”, além de buscar soluções mais eficazes para colaborar com as
populações rurais e povos das aldeias, esquecidos pelo governo de seu país. A
ONG COPERMA vive de doações, mas não tem financiamento estável.
Fonte:
Todo dia é dia de estupro - Eliane Brum-
Ela deixou o coração das trevas para contar sua história. A
travessia de Marie Nzoli – do Congo a um hotel de luxo de São Paulo
“Por que a água é azul?”, pergunta Marie Nzoli, apontando
para a piscina. Em um mundo com infernos demais, ela acabara de chegar do pior
deles. Pela primeira vez em 48 anos de vida, deixara a República Democrática do
Congo e, depois de uma saga de três dias, desembarcara no Gran Hyatt, um
luxuoso hotel de São Paulo, com vista para a Ponte Estaiada. Na mala, trazia
lençóis.Como nunca havia pegado um avião, ela pensava que seria necessário
forrar a poltrona com eles. Ao olhar para a piscina e constatar que “a água é
azul”, talvez estivesse tão ou mais encantada que o astronauta Iuri Gagarin ao
ver pela primeira vez a Terra do espaço. Marie Nzoli atravessara vários mundos
–fora e dentro de si – para contar sua história ao Brasil.
De onde Marie vem, o estupro é um instrumento de guerra. E
as mulheres contaminadas pelo HIV são armas biológicas. O Congo é devastado por
conflitos armados antes e depois da independência da Bélgica, em 1960. No final
do século 19, quando a África já tinha sido canibalizada pelos europeus, a
terra de Marie inspirou Joseph Conrad a escrever o perturbador “O coração das
trevas” – livro que no século 20 inspiraria Francis Ford Coppola ao
filmar“Apocalipse Now”, transportando o horror para o Vietnã. Hoje, o Congo
continua habitado pela insanidade. Além das guerras, é arrasado também pela
fome, pela falta de água potável e por doenças como Aids, sarampo e malária.
Tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.
Para compreender o espanto de Marie é preciso apalpar as
dimensões de sua travessia.Marie deixara uma casa de madeira, tijolo e barro,
com uma plantação de batata e feijão e uma criação de cabras, porcos e coelhos,
na pequena cidade de Butembo, no Kivu do Norte, uma das regiões mais perigosas
do Congo.E, quando algo é muito perigoso no Congo, pense no inimaginável.
Encravado no leste do país, a província de Kivu do Norte faz fronteira com
Uganda e Ruanda. E, para além de todos os tormentos, vive uma disputa étnica
entre tutsis e hutus. O genocídio que matou cerca de 1 milhão de tutsis na
vizinha Ruanda, em 1994, se estendeu para dentro da fronteira leste do Congo,
para onde hutus fugiram em massa depois da recomposição do país. (Se você não
conhece essa história, pegue na locadora um filme chamado “Hotel Ruanda”.)
Militares e guerrilheiros igualam-se na capacidade de
cometer atrocidades em massa, deixando a população desamparada, sem ter para
quem pedir proteção. Quase 2 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivem hoje
longe de suas aldeias – em fuga, mas sem conseguir escapar.“O povo do meu país
está sempre fugindo”, diz Marie. “Foge de tudo, porque sabe que está sendo
exterminado.” Foge em círculos.
Mulheres como Marie vivem a demência de ter seus filhos
recrutados à força pelas milícias, quando ainda são crianças, e suas filhas,
assim como mães e irmãs, estupradas muitas vezes, por muitos homens
alternando-se sobre os seus corpos. É prática comum, além de violentar,
arrancar os mamilos e o clitóris à faca, e furar os pés para que não possam
fugir e sangrem até a morte. É uma guerra sem fim, alimentada pelo mercado
internacional de diamantes, e talvez o Congo seja, há mais tempo, o pior lugar
do planeta para uma mulher nascer.
A única saída para Marie é inventar vida no território da
morte. Com outras 17 mulheres, ela criou, em 1983, uma organização chamada
Coperma para reagir à violência contra seus filhos. Hoje, somam quase oito mil
pessoas. Marie trabalha com vítimas de estupro. Mulheres de todas as idades
que, além de serem estupradas, muitas vezes ficam com fístulas porque a
violência transformou o canal do ânus e da vagina, ou da bexiga e da vagina, em
uma coisa só. O rasgo é produzido pela quantidade de homens que se alternam
sobre cada mulher, mas também é feito à faca ou com revólver ou fuzil. E, por
terem sido estupradas, elas são discriminadas na comunidade.
No Congo, Marie é uma mulher de classe média. Perguntei o
que isso significa. Ela explicou: “Eu como todo dia”. Marie nunca ouvira falar
do Brasil. Nem mesmo do clássico futebol, favela e carnaval. Ela chegou aqui ao
aceitar o convite da jornalista Ana Paula Padrão para participar de um fórum de
debates chamado “Mulheres reais que inspiram”, promovido pelo site “Tempo de
Mulher”, em 2 de julho. Quando recebeu o convite, foi correndo procurar o
Brasil no mapa. Marie estava feliz, porque há muito sonhava em vencer as
fronteiras do Congo para pedir socorro ao mundo.
Nos quatro dias em que permaneceu na capital paulista, Marie
repetia: “Como o Brasil é rico, como as casas são bonitas, como a população
vive bem aqui!”. Sua tradutora, Ilka Camarotti, retrucava: “Não é todo o Brasil
que é assim”. Quando perguntei a Marie do que sentiria saudades, quando
voltasse ao Congo, ela disse algo impensável para qualquer brasileiro: “Da
limpeza do aeroporto”.
Além do aeroporto, o hotel foi todo o Brasil que Marie
conheceu. Nele, ela teve várias primeiras vezes: o banho de chuveiro, vinho
branco argentino (ela nunca tinha provado nenhuma bebida alcoólica), algumas
frutas, como coco, a escada rolante, o cartão para abrir o quarto, a TV (ela
nunca tinha visto) e o controle remoto. Um arrepio de prazer ao receber nas
axilas o jato de desodorante do patrocinador do evento.
Mas nada impressionou Marie mais do que o elevador. No
último dia, ela já apertava os botões sozinha, com um dedo trêmulo, como se
estivesse prestes a acessar algum tipo de magia. E nunca sabia qual era a hora
de dar o passo para fora, o momento em que o chão, sem sair do seus pés,
chegava ao chão de fato.
Várias vezes, ao longo desta entrevista, Marie divagou.
Enquanto a tradutora passava as respostas do francês para o português, ela
espiava um prédio em construção, onde um elevador subia e descia. Alto, mas
para si mesma, Marie espantava-se com o mundo: “La technologie...” E ria sozinha,
em abissal perplexidade. Depois, voltava a contar sobre os estupros.
Perguntei a Marie o que gostaria de dizer aos brasileiros.
Ela disse: “Agora que eu vim e dividi a minha história, esse combate não pode
ser apenas meu. Essa luta tem de ser também do Brasil. Vocês precisam ajudar as
mulheres do Congo.”Marie acredita que o que faltava para que os brasileiros se
importassem era que alguém conseguisse chegar até aqui para contar o que está
acontecendo lá. Para ela, é difícil compreender que alguém saiba – e nada faça.
Esta é a história de Marie Nzoli – cujo último nome
significa “sonho”.
O pai expulsou a mãe porque ela só paria meninas
“Meu pai era professor na escola da prefeitura. E minha mãe,
agricultora e dona de casa. Minha mãe teve quatro meninas. E porque minha mãe
só tinha meninas, meu pai a escorraçou de casa junto com as filhas. Minha mãe
fugiu para a casa do sogro. Eu tinha 8 anos.
Meu avô fez a reaproximação: por um lado, tentou convencer
meu pai a aceitar minha mãe de volta, por outro, precisou convencer minha mãe a
voltar para casa. Ela voltou. E então fez oito meninos, e meu pai ficou feliz.
Mas, nós, meninas, continuamos sem existir.
Era meu pai quem dava dinheiro para a minha mãe. Mas o
dinheiro era só para a escola dos meninos. Meu pai achava que menina não
precisava estudar. Então, minha mãe roubou dinheiro dele. Eu não tenho o
direito de dizer ‘roubar’, mas, na realidade, foi isso o que aconteceu. Minha
mãe roubava dinheiro do meu pai para pagar o estudo das filhas.”
Marie “só” foi estuprada pelo marido
“Eu fui estuprada pelo meu marido. Muitas vezes. Eu estava
fazendo comida e não queria. Mas, ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele
dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava mesmo diante
dos meus três filhos. E, se eu me recusasse, ele me batia na frente das
crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de
‘papai’.”(A tradutora diz: “é um monstro”. E Marie repete: “É um monstro”.)
“Em 1997, depois de seis anos de casamento, meu marido
deixou um bilhete, dizendo que partiria para libertar o Congo.”(Neste ano,o
guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila depôs o ditador Mobutu, no poder desde
1965). “Nunca mais vi meu marido. Eu tenho medo de que ele volte. Se ele
voltar, vou dizer para ele que, como ficou muito tempo fora, só posso aceitá-lo
se ele fizer um exame de HIV. Como nenhum homem quer fazer o exame de HIV, ele
vai recusar. Porque os homens dizem: ‘Eu não vou fazer o teste, você tem de me
aceitar como eu sou’.
Como ele vai se recusar a fazer o teste, eu posso dizer que
então não posso aceitá-lo. Vou dizer a mesma coisa à família dele. Mas, talvez,
eles exijam que eu devolva o dote de 10 cabras. Agora, não sou apenas eu que
tenho de devolver, mas também os meus filhos. Sinceramente, eu não sei se eles
vão querer.”
(Pergunto a Marie se ela já teve prazer sexual alguma vez.)
“Vários homens quiseram fazer sexo comigo depois que meu
marido foi embora, mas eu não quis. Eu não quero mais pensar nisso. Eu não
quero isso pra mim.”
Imaculada é o nome da irmã violada
“Minha irmã mais nova, de 14 anos, estava saindo da escola.
E encontrou uma milícia. Eles viraram a cabeça da minha irmã para trás. Giraram
tanto a cabeça que ela passou dois anos sem se mexer. Ficou também com os olhos
doentes. Minha irmã ficava de olhos fechados, sem conseguir caminhar ou comer.
Ela não se movia. Eu dava banho nela e também lhe dava comida. Naquele dia,
minha irmã se debateu, mas dois deles a estupraram. Minha irmã se chama
Immaculé.”
Mulheres contaminadas: a nova arma biológica
“Há estupros todo dia. Meninas e também mulheres mais velhas
estão plantando. Os militares passam e as estupram na frente de todo mundo. Vi
meninas de 10, as mais velhas com 15 anos, serem estupradas. Os mais pobres precisam
andar até 30 quilômetros para encontrar água para beber. As meninas vão buscar
água e, quando voltam, os militares as violentam. Depois, elas geram bebês.
Pouco importa se é milícia ou exército.Guerrilheiros e
militares são todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e
o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de Aids na
nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para
cuidar das mulheres infectadas.
Os ruandeses e também os ugandenses, mas mais os ruandeses,
querem exterminar a população do Kivu do Norte, onde eu vivo, para ocupar o
nosso território. Antes, a guerra era com faca, com fuzil. Mas, hoje, além da
faca e do fuzil, existe a doença. Eles estupram as mulheres, transmitem a Aids
e assim vão nos matando. É um genocídio. E é um genocídio há muito tempo.”
Marie fez o parto nua, com dinheiro escondido no ânus e na
mira de fuzis: se fosse menino, seria poupada; se fosse menina, fuzilada
“Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma
(capital da província de Kivu do Norte, na fronteira com Ruanda) para vender
batatas, nosso ônibus foi parado por militares de Ruanda.Esses militares têm
autorização para trabalhar e para matar. Nesta estrada, a cada dia dez pessoas
são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro,
tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos. Eu precisava vender
batatas e levei dinheiro comigo para a viagem.”(Marie não lembra se eram 10, 15
ou 20 dólares.)
“Quando esses militares de Ruanda pararam nosso ônibus,
mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores
evangélicos no nosso ônibus, e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei
o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.
Eu sentia medo e raiva. Quando nos mandam tirar a roupa, a
gente precisa dizer ‘obrigada’. Eles ordenam: ‘Agora, digam obrigada porque a
gente ainda não matou vocês’. Mas, desta vez, não nos mataram. Como eu fazia
acompanhamento psicológico na Coperma, um pastor disse aos militares que eu era
enfermeira. A mulher de um deles estava grávida, e eles precisavam que alguém
ajudasse no parto. Me deram um pano para cobrir o sexo, e eu fui ajudar a
mulher. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados. Mas, se
fosse uma menina, estaríamos mortos.
Eu tremia muito. Pensei que estava no final da minha vida.
Mas, quando nasceu o menino, os militares ficaram numa felicidade enorme.
Saíram para comprar cerveja e comemorar. E, quando voltaram, celebraram
fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso. E depois
botaram fogo no ônibus e nas pessoas. Dezoito mortos.
Então, nos mandaram sumir. E voltamos para o nosso ônibus
nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na
feira, para todo mundo se cobrir.”
(É comum as mulheres congolesas esconderem dinheiro no ânus
e também na vagina, na tentativa de salvar o pouco que têm, caso sobrevivam à
violência. Quando são estupradas, o dinheiro é de tal forma introjetado no
corpo que é preciso uma cirurgia para retirá-lo.)
Só a mãe faz Marie chorar
(Pergunto a Marie se este foi o pior momento da vida dela.
Ela me diz que não. Parece surpresa por eu cogitar que seja.)
“O pior momento da minha vida foi a morte da minha mãe, um
ano atrás. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus
braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação, que destruiu o fígado. Era
como se ela dormisse. Minha mãe, que me fez estudar. Que se esqueceu dela
mesma.Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor da minha mãe. Fiz tudo para
curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.”
(Então Marie, que narrou todas as violências com os olhos
secos, como se contasse o seu cotidiano – e é o seu cotidiano – começa a
chorar. E chora por um longo tempo. A mulher violentada de várias maneiras, que
já testemunhou todas as formas de violência, chora apenas de saudades da mãe.)
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