Aqueles que exercem o poder na Igreja fizeram escolhas que
contrastam com a liberdade e a dignidade das mulheres, na vida privada. Agora,
não acabou somente o tempo das ambiguidades teológicas e devocionais; mais
radicalmente, acabou o tempo de alianças instrumentais. É preciso redefinir a
relação desde o início, colocando no centro a fé em Deus.
Carlo Molari, sacerdote, teólogo e
ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma.
O estímulo concreto foi muito secundário: a escrita Ave Mary
traçada de modo claro no início de um caminho que conduz do espaço do
estacionamento ao novo santuário. Eu pensei naquele momento que fosse uma
saudação a Maria escrito por algum/a devoto/a. Depois, os pensamentos se
cruzaram. Aquelas duas palavras escritas com precisão em cursivo me levaram
longe. Ao livro de Michela Murgia (Ave Mary. E la chiesa inventò la donna, Ed.
Einaudi, 2011), que no ano passado tivera resenhas positivas, e ao recente
livro de Armando Matteo (La Fuga delle quarantenni. Il difficile rapporto delle
donne con la chiesa, Ed. Rubbettino, 2012), que, no segundo capítulo ("Por
que as mulheres de 40 anos não vão à Igreja", pp. 33-53), inicia a
reflexão com uma detalhada referência ao livro de Murgia ("Tudo culpa de
Mary", pp. 33-37). Ele o considera "um texto vigoroso, teso,
nítido" (p. 33) e, no seu título Ave Mary, acredita poder ler não somente
uma saudação, mas talvez também "uma despedida".
Michela Murgia (nascida em 1972, exatamente há 40 anos) foi
catequista e estudou teologia. Mas tomou consciência das incongruências da
posição da mulher na Igreja e, com a sua crítica, ofereceu indicações para
analisar as razões do atual mal-estar, não só seu, mas das suas coetâneas e de
todas as mulheres. "Como cristã dentro da Igreja, eu havia sofrido muitas
vezes representações limitadas e enganadoras sobre mim como mulher, na maioria
das vezes contrabandeadas através de interpretações igualmente pobres da
complexa figura de Maria de Nazaré. Eu sofri quando eu as reconheci no
magistério dos papas, mas ainda mais quando eu as vi passar sub-repticiamente
na pastoral comum" (Ave Mary, p. 7). Nas entrelinhas da aventura de Maria
como ainda é narrada na Igreja, Murgia lê a própria história e a das mulheres
"com a consciência de que ninguém sai dessa história falsa se não
decidimos sair juntos" (Ibid., p. 8).
Ambiguidades na exaltação da mulher
A encíclica de João Paulo II Mulieris dignitatem (15 de
agosto de 1988, Dignidade e Vocação da Mulher) foi saudada como uma reviravolta
do magistério católico. Armando Matteo observa: "Deve-se reconhecer a esse
documento o porte inovador que objetivamente possui ao indicar os pontos de não
retorno do ensinamento oficial da Igreja sobre a mulher. O ponto de maior força
da Carta está precisamente no desenvolvimento do primeiro capítulo
("Mulher-Mãe de Deus"), em que João Paulo II reflete sobre o papel
central desempenhado por Maria na obra de salvação realizada por Jesus. No seu
"sim" à maternidade, "Maria alcança assim uma união com Deus que
supera todas as expectativas do espírito humano" (La fuga delle
quarantenni, p. 48).
Mas, na opinião de Murgia, a encíclica Mulieris Dignitatem
ratificou um modelo muito ambíguo: o do duplo princípio mariano-petrino na
Igreja, proposto pelo renomado teólogo Hans Urs von Balthasar no livro Il
complesso antiromano ("Como integrar o papado na Igreja universal",
Ed. Queriniana, 1974). Assim Murgia resume o argumento do teólogo suíço:
"Ao princípio masculino, cabe o poder e a administração das coisas eclesiais;
ao feminino, a custódia e o cuidado das coisas íntimas". Para explicar a
essência do princípio mariano, von Balthasar se serve da mesma similitude que
20 anos depois Madre Teresa de Calcutá pronunciaria: "O elemento mariano
governa a Igreja às escondidas, como a mulher no lar doméstico" (p. 73).
Murgia explica em detalhes: "A necessidade do governo
papal na Igreja universal deve ser fundamentada, para von Balthasar, na
necessidade de uma hierarquia entre o masculino e o feminino, o visível e o
invisível da Igreja, representada pelas figuras de Pedro e de Maria. O
expediente de coexistência de um 'governo sombra' de matriz mariana,
contraposto ao governo efetivo de marca petrina, segundo von Balthasar, teria
que convencer as outras Igrejas da fundamentação teológica de um sistema ao
mesmo tempo hierárquico e colegial. No entanto, Von Balthasar preparou, de
fato, novas bases simbólicas para o papel que, na Igreja, desde sempre se
pretende atribuir às mulheres: vocação especial de governantas escondidas,
silentes detentoras de um poder mudo que representa, porém, o pivô sobre o qual
se fundamenta o poder dotado de voz e que determina todo um sistema familiar,
social e eclesial solidamente patriarcal" (pp. 73-74).
Murgia conclui: "Sobre o fato de que o silêncio/consentimento
da mulher seja a condição fundamental para que esse modelo de mundo continue de
pé não há a menor dúvida, mas o fato de que esse silêncio seja a natureza
imutável da mulher, ao invés, deve ser totalmente demonstrado" (p. 74).
Depois de ter ilustrado a posição real de Maria segundo as
Escrituras e a imagem de Deus que o Evangelho propõe, ela conclui: "Com um
pai desses não é de se admirar que Cristo, durante toda a sua vida pública,
usou para com as mulheres uma atenção igualmente anticonformista com relação ao
contexto em que ele viveu. Não há nada como a Escritura para nos revelar como é
falsa a ideia de Maria que querem nos dar de beber como dócil e mansa, molde
perfeito de todas as donzelas de bem" (p. 118). E, consequentemente, da estrutura
eclesial assim como foi se configurando ao longo dos séculos de modo ambíguo.
Portanto, legitima-se a conclusão: "Enquanto o divino
paterno continuar a ser associado à autoridade, à doutrina, ao vigor e à
justiça, e o divino materno ao cuidado, à acolhida e ao sacrifício, a questão
do Deus Mãe corre o risco até de ser útil para justificar o estado de
marginalização feminina, dentro e fora da Igreja" (p. 137).
Armando Matteo lê a reflexão de Murgia no sentido de que
"é preciso dar uma saudação de despedida para Maria, já que o nó
problemático da relação entre mulher e Igreja (...) se situaria exatamente em
uma infeliz mistura de um pensamento machista desde sempre dominante na cultura
ocidental e uma apresentação do culto e da devoção dirigidos a Maria, que leva
por direto a uma invenção da mulher. Àquele tipo de mulher que obteria a sua
verdade do seu ser 'a serviço de', do seu puro e desinteressado pôr-se 'ao
cuidado do outro'. Teríamos, portanto, ter uma mulher sem consistência em si
mesma, sem nenhuma titularidade subjetiva, mas que receberia o seu direito de
existir da existência do outro: do homem, dos filhos, da comunidade, do Estado,
da própria Igreja. E, obviamente, receberia também dessa colocação as suas
virtudes próprias: a condescendência, a obediência, a disponibilidade ao
sacrifício, o escondimento. Até se chegar à resignação e à submissão. Dito de
modo mais direto: 'Se a Igreja não inventou a subordinação entre os sexos,
optou por legitimá-la espiritualmente'" (La fuga..., p. 33, citação do
livro de Murgia: p. 158).
Consequentemente, ele explica a fuga das "quarentonas"
como "um protesto silencioso ao silêncio ao qual a própria Igreja lhes
forçou, por natureza. A Igreja dos homens, entenda-se. Um lento êxodo com
relação a um mundo de poderes que não poderia de modo algum contar com uma
possível mudança da situação" (p. 36).
Não se trata, em primeiro lugar, para as mulheres, de ter
acesso aos diversos âmbitos de poder dos quais são excluídas, mas
principalmente do fato de que aqueles que exercem o poder na Igreja fizeram
escolhas que contrastam com a liberdade e a dignidade das mulheres, na vida
privada, em relação aos métodos não naturais para o controle de natalidade, em
ordem à vida sacramental para os divorciados etc.
A fuga das mulheres tem outro reflexo. Até agora, a Igreja
Católica combateu alguns aspectos da secularização machista e, por isso,
encontrou-se como uma aliada das mulheres. "Ela não leu nem viveu a
modernidade como uma crise de fé, mas sim como um conflito acerca da questão da
direção da sociedade. Em suma, como uma questão de poder. Na aliança com as mulheres,
foi mantida como prioritária a questão do seu confronto com a modernidade
masculina". Agora "não acabou somente o tempo das ambiguidades
teológicas e devocionais; mais radicalmente, acabou o tempo de alianças
instrumentais" (p. 51). É preciso redefinir a relação desde o início,
colocando no centro a fé em Deus.
Fonte: Ihu
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