Bloco Didá sai às ruas de
Salvador somente com mulheres
Relatos mostram que o assédio
moral e físico está latente nos dias de festa.
Em uma enquete sobre assédio
realizada em dois momentos (pré e pós feriado) pelo EL PAÍS em sua página no
Facebook, essa é uma história clássica, que se repete nos testemunhos
compartilhados por leitoras (na maioria dos casos) em comentários abertos ou mensagens
privadas. É também um relato facilmente reconhecível por qualquer brasileiro
que tenha participado de blocos e desfiles carnavalescos de sul a norte do país
nas últimas décadas ou mais. No Carnaval, ao menos no Brasil, tudo começa com
uma piada, mas nem sempre termina da mesma maneira. O assédio moral e físico,
do qual muitas brasileiras são vítimas todos os dias, se intensifica nessa
época do ano em que folia facilmente se confunde com falta de respeito e
violência. Não é regra de ouro, porém as estatísticas comprovam: o jogo de
forças pende sempre para o lado masculino, e a mulher se torna sua vítima.
Em uma pesquisa recente do
Instituto Data Popular, 61% dos homens afirmaram que uma mulher solteira que
vai pular carnaval não pode reclamar de ser cantada, e 49% disseram que bloco
de Carnaval não é lugar para mulher “direita”. Isso porque 70% deles acham que
as mulheres se sentem felizes quando ouvem um assobio, 59% acreditam que elas
gostam de ser cantadas e 49%, de ser chamadas de gostosa. Na sondagem,
realizada em janeiro deste ano para o site Catraca Livre para apoiar a campanha
Carnaval Sem Assédio, foram entrevistadas 3.500 pessoas com idade igual ou
superior a 16 anos, em 146 municípios.
No entanto, na enquete do EL PAÍS
– que lançou a pergunta “neste Carnaval, você presenciou ou foi vítima de algum
desrespeito?” –, o discurso delas é diferente. De Aracaju, Yasmin Barreto diz
que sofre assédios no Carnaval todos os anos. Este ano, “fui para a rua com meu
namorado e minha irmã, e precisamos atravessar a multidão para chegar perto de
um palco. O caminho inteiro foi de comentários abusivos e de passadas de mão.
Me sentia abusada a cada gostosa que escutei e respondi cada assédio com um
‘vou chamar a polícia, seu nojento’”, relembra, acrescentando que a luta
feminista se espalhou pelo país em 2015 serviu para que ela não se calasse mais
diante dos abusos.
Do Rio de Janeiro, Janaína
Fernandes relata: “Peguei o metrô para voltar para a casa do meu namorado
depois de ir a um bloco infantil em Botafogo. Estava vestida de palhaço. Quando
desci, um grupo de jovens visivelmente bêbados começou a gritar coisas do tipo
‘Aí, palhaça, vem montar meu circo, vem descabelar meu palhaço’, e por aí
vai... Pedi ajuda ao segurança da estação do Maracanã, e o que ele me disse
foi: “Relaxa, menina, é Carnaval. Eles estão do outro lado da plataforma, é só
brincadeira...”. Subi as escadas do metrô chorando e correndo, com medo de eles
cruzarem para o meu lado da plataforma e o pior acontecer...”.
Licença para beijar
“No Carnaval, existe essa cultura
de roubar beijo, algo visto como parte da festa. Mas isso é violência. Meu
corpo é meu, e tem acesso a ele quem eu deixar”, resume a ativista e ouvidora
geral da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis. Para ela, “existe uma fronteira
até onde a paquera pode ir, e essa fronteira é a violência”.
Em Salvador, essa cultura de
naturalização do abuso foi combatida pelo segundo ano consecutivo com a
campanha Vá na moral ou vai se dar mal, organizada pela Secretaria de Políticas
para Mulheres (SPM) do Governo da Bahia para conscientizar o público de blocos
como o tradicional Filhas de Gandhy. Na capital baiana, onde o Carnaval é
considerado a maior festa popular a céu aberto do mundo, são oito dias de
eventos e, segundo Vilma, os casos de violência contra a mulher disparam. Um
episódio que ganhou destaque na imprensa este ano foi o de uma nutricionista,
Ludmylla Valverde, agredida por defender a irmã de assédio em Irará, a cerca de
100 quilômetros da capital.
Ludmylla Valverde, agredida por dois homens em
Irará.
De fato, na enquete lançada pelo
EL PAÍS, alguns descreveram o Carnaval com a carga de desrespeito que costuma
terminar em violência. “No Carnaval, o assédio está liberado”, disse um leitor
do sexo masculino. Uma leitora concordou: “Se você não quer que passem a mão em
você, melhor procurar outra festa. Carnaval é putaria”. Em outro comentário,
este jornal foi criticado por “essas pautas esquerdistas, de respeito aos
direitos humanos”. As reações a essas opiniões foram contundentes (“não está
[liberado] não”), e houve também comentários sobre uma melhora no Carnaval:
“Achei que os homens estão menos invasivos. Alguns agarram, mas não insistem
tanto como antes”, escreveu Júlio Diógenes.
Será possível mudar hábitos tão
enraizados? Vilma Reis tem certeza que sim. Para ela, uma grande aliada na luta
das mulheres é a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica, que há 10
anos “vem mexendo com esse imaginário coletivo no cotidiano brasileiro” e com a
qual 72% dos brasileiros está familiarizado, segundo relatórios da SPM da
Bahia. “Parece que a sociedade não está sendo impactada, mas está. Quando nós,
mulheres, ficamos de pé, nos afirmamos e dizemos não à violência, os homens têm
vários tipos de reação. Uma delas é banalizar a Lei Maria da Penha, como se
fosse ‘mais uma lei brasileira que não pegou’”, afirma a ativista. “Mas, no
fundo, eles sabem que ela ajudou e ajuda a descortinar esse mundo das sombras,
essa cultura de privilégios que mancha e machuca que é o machismo e a
misoginia”.
Fonte: El Pais
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