A impunidade contribui para a
normalização da violência contra a mulher. “O machismo não é uma ação isolada é
uma forma de organização da sociedade em que se estabeleceu que o ser masculino
tem poder sobre o corpo da mulher. Essa forma de organização se coloca em
diferentes âmbitos, inclusive dentro do ônibus”.
Aos sábados, como em todos os
dias da semana, a empregada doméstica Adelaide Aires de Oliveira, de 42 anos,
sai de casa às 6 horas para trabalhar. De ônibus, ela percorre um longo trajeto
até o Bairro Monte Líbano. Se não fosse pela sorte de encontrar um assento vago
no ônibus sempre lotado, o sábado (3) seria mais um dia comum de trabalho. Mas
não foi.
Depois de sentada e acomodada,
Adelaide recorreu ao celular para se distrair durante a viagem. Acompanhando o
solavanco do ônibus, ela percebeu alguns toques em seu joelho, coisa comum em
horário de pico. “Percebi mais um toque e decidi olhar. Quando vi não
acreditei, ele estava com o pênis para fora, apalpando e olhando para mim”.
Tomada por um misto de “ódio e
nojo”, Adelaide iniciou uma sessão de xingamentos contra o rapaz de 20 anos que
também seguia para o trabalho, relatou à polícia mais tarde. Tentando fugir, o
jovem desceu do ônibus no Terminal Morenão, mas foi levado à força por Adelaide
até os guardas municipais. “Eu tive vontade de bater nele. Me senti
desrespeitada, humilhada. Como o desejo dele é mais importante que a minha paz?
Eu não consigo entender”, conta.
Os dois foram encaminhados para
uma Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário onde foi registrado o boletim
de ocorrência por atentado ao pudor. “Antes de sair de lá eu vi que ele foi
solto. Não ficou preso nenhum dia. Se em um ônibus lotado ele teve coragem de
fazer isso, o que não faria se estivéssemos sozinhos?”, questiona.
Desde o episódio – que está longe
de ser o único de sua história – Adelaide sente dores pelo corpo e um medo
muito grande de voltar à linha de ônibus. “É a minha rotina. Faço isso todos os
dias e tenho medo dele aparecer outra vez. Eu optei por denunciar, gritar. Não
me arrependo, mas sinto medo do que vai acontecer”, diz.
De acordo com Andréa Cirineu,
integrante da Marcha Mundial das Mulheres de Mato Grosso do Sul, é justamente
esse medo que faz com que muitas mulheres deixem de denunciar os assédios
sexuais sofridos no transporte coletivo de Campo Grande. Para ela, além da
precarização do transporte e da superlotação, falta uma rede de proteção à
mulher. “Nós não temos cartazes com o número que a vítima pode ligar. Não temos
profissionais treinados para entender que a culpa nunca é da vítima. É algo
muito sério”.
Mesmo sem essa rede de proteção
eficaz, muitas mulheres têm denunciado o assédio e muitas delas chegaram à
Marcha em 2015. “São muitas queixas nesse sentido e já percebemos alguns
comportamentos comuns aos assediadores. Um deles é o olhar raivoso sobre a
vítima que é tida como uma caça”, explica.
Para a assistente social Estela
Márcia Rondina Scandola, da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul e da
Rede Feminista de Saúde, o assédio no transporte coletivo e em qualquer outro
lugar não é um ato isolado.
“O machismo não é uma ação
isolada é uma forma de organização da sociedade em que se estabeleceu que o ser
masculino tem poder sobre o corpo da mulher. Essa forma de organização se
coloca em diferentes âmbitos, inclusive dentro do ônibus”, explica. Por trás de cada apalpada “marota”, cantada
de rua ou qualquer outra forma de assédio e violência está lá o machismo
cristalizado e incutido. “Essa forma de organização social é perpetuado por
muitos anos e as igrejas são parte fundamental nesse contexto à medida que
afirmam e reproduzem a ideia de que o homem é dotado de um papel importante,
superior e a mulher não.”
Segundo pesquisa divulgada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em abril de 2014, 26% dos
brasileiros concordam com a afirmação de
que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Uma
clara demonstração de que o problema está longe de ser “só uma teoria”.
Impunidade e relativização
Além da falta de uma rede de
proteção e do escárnio sobre seus corpos, a impunidade é um fator determinante
para a relativização da violência sexual contra mulher.
“A impunidade é algo pedagógico
da normalidade. À medida que os casos públicos não são punidos eles legitimam
todos os outros”, diz ao citar o caso do deputado federal Jair Bolsonaro (PP)
que foi condecorado com uma medalha em Mato Grosso do Sul mesmo depois de
afirmar que não estupraria a deputada federal Maria do Rosário (PT) porque ela
“não merece”. “É uma impunidade aplaudida”, completa.
Ainda segundo Estela, a mídia e
outras instituições contribuem para essa normalização da violência contra a
mulher. “Quando publicamos uma matéria culpando a vítima pela violência ou
quando reproduzimos uma música com conteúdo sexista, isso é colaborar para a
manutenção dessa organização social.”
Vagão Rosa
Após inúmeros casos de assédio
vividos em veículos de transporte público, algumas cidades brasileiras, como
São Paulo, cogitaram a criação de um vagão exclusivo para mulheres.
A medida foi amplamente criticada
por estudiosos que a consideraram paliativa. Para Estela, a criação do vagão
rosa não é uma saída aceitável. “É um absurdo. Significa a segregação da mulher
em um ambiente restrito por conta da incapacidade de lidar com a violência
praticada contra elas”, critica.
Políticas Públicas
Tanto para Estela, quanto para
Andréa, a melhor saída é a criação de campanhas e programas de conscientização
no transporte público. Além disso, é preciso ampliar a rede de apoio às vitimas
e fortalecer enfrentamento à violência contra a mulher – inclusive com penas
mais duras para os agressores e desenvolvimento de políticas públicas mais
específicas.
A integrante da Marcha Mundial
das Mulheres afirma que o machismo incutido nas instituições de poder impedem
que políticas públicas sejam voltadas para as mulheres. “A mulher não é
prioridade. A proteção da mulher dificilmente sai do papel. Por isso nós da
Marcha estamos elaborando um documento que cobra do poder público medidas
contra o assédio às mulheres em ônibus e em qualquer lugar”
Em fevereiro deste ano a Semmu
(Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres) anunciou a implantação do
Programa Busão sem Abuso, que seria lançado em maio. Passados vários meses
nenhuma medida prática foi adotada.
A intenção era coibir o assédio
dentro dos veículos e incentivar as mulheres a denunciar. “Queremos saber por
que esse programa nunca foi implantado”, diz Andréa.
“A mulher se sente muito violentada
em seus direitos. Mas é preciso não cair em um estado de desesperança. Por isso
a importância da solidariedade e da união das mulheres para fortalecer essa
luta diária”, lembra Estela.
O assédio sexual dentro do
transporte coletivo pode ser caracterizado como contravenção ou estupro. O
enquadramento é feito pela autoridade policial, por isso a necessidade de
buscar orientação mesmo diante dos casos considerados “mais simples”.
Denúncias podem ser feitas
através do número 153, da Guarda Civil Municipal, na Deam (Delegacia de
Atendimento a Mulher), na Casa da Mulher Brasileira ou pelo número 180.
Fonte: MidiaMax
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