quinta-feira, 19 de julho de 2012

Os mal-amados na Bíblia, por Nancy Cardoso Pereira


Mesmo reconhecendo que as narrativas bíblicas desconhecem as formas contemporâneas da experiência de amor e de romance, é possível identificar núcleos narrativos que se constroem a partir das relações homem-mulher marcadas pela contemplação, pelo desejo e sexualidade. A narrativa do amor de Jacó por Raquel que motiva o trabalho dobrado (Gênesis 29,20), a narrativa trágica do amor de Siquém por Diná em Gênesis 34 e os acontecimentos violentos que se seguem, a história de Noemi, Rute e Boaz, os muitos amores e desejos de Davi (1 Samuel 18, 19 e 20 ; 2 Samuel 11) a relação incestuosa de Amnom e Tamar (2 Samuel 13) tematizam estas relações sempre articuladas com questões de poder, propriedade ou legitimidade.

 
De modo especial na profecia o tema da relação homem-mulher vai deixar de ser tema para se configurar como discurso, como metáfora construída a partir de motivações teológicas ou políticas.
Profetas mal-amados
Imaginar uma conversa entre Oséias, Jeremias e Ezequiel tendo como motivação o poema de João Cabral sobre o amor masculino ou a fala masculina sobre as mulheres e o amor seria também uma aproximação ao processo de configuração de atitudes mitológicas.
As poucas informações biográficas sobre estes profetas não autorizam especulações sobre suas relações de amor ou mal-amor com mulheres. Entretanto, nos fragmentos biográficos a citação explícita de situações de mal-estar ou de evitação dessa relação, se pode perceber eixos de interpretação significativos que podem ser explorados.
 
Oséias: um mal-amado
Sobre Oséias o texto de Tânia Mara Movimentos do Corpo Prostituído da Mulher já apresentou o processo de fabricação das metáforas sobre prostituição como sinônimo de idolatria e pecado. Alguns destaques merecem ser feitos em especial sobre o uso e a recepção consensual e patriarcal desta metáfora.
Oséias é mal-amado porque Gômer não é fiel. O amor de Oséias não é reconhecido nem retribuído de modo exclusivo. Ela é aquela que tem “adultérios entre os seios” (Oséias 2,2). Corre atrás dos amantes e não sabe reconhecer no marido a fonte dos bens que procura (pão, água, lã, linho, óleo, bebidas – Oséias 2,5). O amor não retribuído de Oséias justifica a atitude de reprovação, condenação e ameaça.
A partir destes elementos introdutórios a profecia de Oséias vai desenvolver todo um arsenal crítico contra Israel e suas lideranças (sacerdotes, casa de Israel, casa do rei: Oséias 5,1). A mulher infiel vai ser igualada ao povo que se deixa seduzir por lideranças corrompidas e o marido raivoso mas disposto ao perdão e a uma nova aliança (Oséias 3) vai ser identificado com a divindade Iahweh que reclama exclusividade.
Legitima-se assim a partir da fala mal-amada masculina um discurso sobre Deus que compartilha com os homens dessa experiência de ausência na relação amorosa com as mulheres/povo.
Jeremias: o não-amado
Em Jeremias a perspectiva é a da ausência da relação com a mulher que define a experiência do profeta: Não tomarás mulher (Jeremias 16,2). Tal precaução responde a avaliação feita nos capítulos iniciais: de novo a história do povo vai ser contada a partir de um romance mal-sucedido entre Deus e o povo:
“Lembro-me de ti, da tua afeição quando eras jovem, e do teu amor quando noiva, e de como me seguias no deserto, numa terra em que se não semeia.” (Jeremias 2,2)
O romance e a relação idílica vai ser rompida e a culpa vai recair sobre a mulher que se recusa a manter a relação de exclusividade. Uma outra imagem usada no capítulo 2 é a da mulher como videira excelente, da semente mais pura, que se torna planta degenerada, vide brava (v.21). A partir da degeneração da imagem feminina idealizada, o texto de Jeremias assume uma violência verbal fulminante contra a mulher/povo:
“Como podes dizer: Não estou maculada, não andei após os baalins? Vê o teu rastro no vale, reconhece o que fizeste, dromedária nova de ligeiros pés, que andas ziguezagueando pelo caminho; jumenta selvagem, acostumada ao deserto e que, no ardor do cio, sorve o vento. Quem a impediria de satisfazer ao seu desejo?” (vv. 23 e 24).
A instrução para que Jeremias não tome mulher constitui o discurso da feminização da idolatria e do pecado. Existe um movimento emancipatório na jovem que a torna degenerada, que faz com que ela não corresponda mais aos desejos do amante/Deus. Esta não correspondência instaura o mal-estar e o estranhamento. Vide brava. Dromedária. Jumenta selvagem. O discurso profético se alimenta do mal-estar masculino para fabricar sua crítica. A variedade de imagens associadas enriquece o vocabulário da profecia.
O Jeremias que evita a mulher se protege da destruição que se abaterá sobre grandes e pequenos (Jeremias 16,6). A experiência do mal-amado disponibiliza a fala do castigo: “Eis que farei cessar neste lugar perante vós, e em vossos dias, a voz de regozijo e a voz de alegria, o canto do noivo e o da noiva.” (Jeremias 16,9).
 
Ezequiel – do amor arrancado
A profecia de Ezequiel talvez seja a mais misógina, a que mais explora de modo virulento as metáforas negativas associadas às mulheres em suas relações com os homens.
A informação biográfica sobre Ezequiel é a de que ele seria casado e que sua mulher seria a delícia de seus olhos (Ezequiel 24,16). A palavra de Deus para Ezequiel é de que às súbitas tirarei a delícia dos teus olhos. Este anúncio se faz acompanhar pela recomendação: não lamentarás, nem chorarás, nem te correrão as lágrimas. Geme em silêncio…
A mulher de Ezequiel é tão sem mistério e sem profundeza que sua cotidianeidade pode ser subordinada por conteúdos mais sólidos e exatos. É uma delícia, uma beleza presente, pressentida, presumida e precisa. Uma mulher sem cantos, sem detalhes desconhecidos. Óbvia demais: necessária como metáfora mas não como realidade.
Quando o povo pergunta pelo significado deste acontecimento, Ezequiel explica:
“Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu profanarei o meu santuário, objeto do vosso mais alto orgulho, delícia dos vossos olhos e anelo da vossa alma…” (v.21).
A mulher de Ezequiel vai ser comparada ao santuário. Delícia dos olhos, anelo da alma, mas também objeto do castigo de Deus. A vida do profeta e sua ação profética se misturam: a vida pessoal vira metáfora da ação julgadora e da punição de Deus. A supressão súbita de uma relação de delícia funda a legitimidade da fala do profeta:
“Nesse dia abrir-se-á a tua boca para com aquele que escapar; falarás e já não ficarás mudo. Assim lhes servirá de sinal, e saberão que eu sou o Senhor” (v.27).
 O sinal que legitima a fala do profeta é a delícia negada. Mal-amado o profeta metaforiza sua vida. Subitamente tomada, a mulher que protagonizava a delícia fica ausente e o campo semântico do feminino fica liberado para os conteúdos de prostituição, pecado, luxúria e desejo desenfreado.
A relação de Deus com o povo vai ser mais uma vez apresentada dentro do léxico da relação de amor-desejo-sexo entre homem e mulher. No capítulo 16 de Ezequiel a relação vai ser apresentada de forma romanceada:
“Passando eu por junto de ti, vi-te e eis que o teu tempo era tempo de amores; estendi sobre ti as abas do meu manto, e cobri tua nudez; dei-te juramento, e entrei em aliança contigo, diz o Senhor Deus; e passaste a ser minha… Mas confiaste na tua formosura e te entregaste à lascívia, graças à tua fama; e te ofereceste a todo o que passava, para seres dele” (Ezequiel 16, 8 e 15).
O feminino se desloca da relação pessoal e direta e assume lugar na linguagem profética: a mulher – o santuário; a mulher – a terra. As metáforas vão definindo a exclusividade do masculino na linguagem sobre Deus e profecia e, ao mesmo tempo fabricando os valores e os conteúdos das identidades de gênero.
“De maneira que os homens justos as julgarão como se julgam as adúlteras e sanguinárias… A multidão as apedrejará e as golpeará com as suas espadas; a seus filhos e filhas matarão, e as suas casa serão queimarão no fogo. Assim farei cessar a luxúria da terra, para que se admoestem todas as mulheres, e não façam segundo a luxúria delas…” (Ezequiel 23, 45 a 48).
 Os homens justos julgarão as adúlteras. A luxúria da terra e a luxúria das mulheres. A profecia vai compondo seu léxico na afirmação do amor mal-amado do homens, do amor mal-amado de Deus.
… sem perder a ternura: jamais!
As mulheres ausentes, as mulheres óbvias, as mulheres devoradoras: é tudo que se pode dizer do amor de homem na profecia.
As “atitudes mitológicas de uma comunidade lingüística” – no caso, da profecia bíblica – se expressam num sexismo da linguagem que confunde sexo e gênero que imobiliza o feminino e o masculino na consolidação de uma teologia incapaz de suspeitar de seu léxico e incapaz de perceber sua psicologia da composição.
Mal amada e feita por homens mal-amados, a teologia e o Deus da profecia bíblica faz do amor-desejo-sexo uma metáfora sem unívoca aprisionando as mulheres na ausência e constituindo os homens no amor mal-amado.
Na poesia de João Cabral Os Três Mal-Amados a responsabilidade do poeta está em ser rigoroso, em apresentar a variabilidade e revelar o velamento da mulher no discurso do amor do homem. Mal-amada é a sintaxe da linguagem sexista e sua incapacidade para o encontro com o amor da Outra.
A hermenêutica bíblica na América Latina ainda não assumiu a responsabilidade de colocar do avesso e criticar e superar o tanto de antifeminismo presente e resistente no exercício de composição de seu léxico e seus discursos. As palavras mal-amadas dos textos bíblicos resistem aos tratamentos lingüísticos e sociológicos, num reforço da teologia misógina. Deixar de dar importância ou restringir a tarefa aos textos e leituras das mulheres, deixa o caminho livre para cumplicidades inconscientes.
O desafio é o de fazer teologia reinterpretando o valor que se confere ao amor para homens e mulheres como compromisso amoroso capaz de embelezar os horizontes e exercícios de justiça e felicidade que perseguimos com paixão.
Deus conosco.

Fonte: www.bibliahoje.blog.br

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