Mesmo reconhecendo que as narrativas bíblicas desconhecem as
formas contemporâneas da experiência de amor e de romance, é possível
identificar núcleos narrativos que se constroem a partir das relações
homem-mulher marcadas pela contemplação, pelo desejo e sexualidade. A narrativa
do amor de Jacó por Raquel que motiva o trabalho dobrado (Gênesis 29,20), a
narrativa trágica do amor de Siquém por Diná em Gênesis 34 e os acontecimentos
violentos que se seguem, a história de Noemi, Rute e Boaz, os muitos amores e
desejos de Davi (1 Samuel 18, 19 e 20 ; 2 Samuel 11) a relação incestuosa de
Amnom e Tamar (2 Samuel 13) tematizam estas relações sempre articuladas com
questões de poder, propriedade ou legitimidade.
De modo especial na profecia o tema da relação homem-mulher
vai deixar de ser tema para se configurar como discurso, como metáfora
construída a partir de motivações teológicas ou políticas.
Profetas mal-amados
Imaginar uma conversa entre Oséias, Jeremias e Ezequiel
tendo como motivação o poema de João Cabral sobre o amor masculino ou a fala
masculina sobre as mulheres e o amor seria também uma aproximação ao processo
de configuração de atitudes mitológicas.
As poucas informações biográficas sobre estes profetas não
autorizam especulações sobre suas relações de amor ou mal-amor com mulheres.
Entretanto, nos fragmentos biográficos a citação explícita de situações de
mal-estar ou de evitação dessa relação, se pode perceber eixos de interpretação
significativos que podem ser explorados.
Oséias: um mal-amado
Sobre Oséias o texto de Tânia Mara Movimentos do Corpo
Prostituído da Mulher já apresentou o processo de fabricação das metáforas
sobre prostituição como sinônimo de idolatria e pecado. Alguns destaques
merecem ser feitos em especial sobre o uso e a recepção consensual e patriarcal
desta metáfora.
Oséias é mal-amado porque Gômer não é fiel. O amor de Oséias
não é reconhecido nem retribuído de modo exclusivo. Ela é aquela que tem
“adultérios entre os seios” (Oséias 2,2). Corre atrás dos amantes e não sabe
reconhecer no marido a fonte dos bens que procura (pão, água, lã, linho, óleo,
bebidas – Oséias 2,5). O amor não retribuído de Oséias justifica a atitude de
reprovação, condenação e ameaça.
A partir destes elementos introdutórios a profecia de Oséias
vai desenvolver todo um arsenal crítico contra Israel e suas lideranças
(sacerdotes, casa de Israel, casa do rei: Oséias 5,1). A mulher infiel vai ser
igualada ao povo que se deixa seduzir por lideranças corrompidas e o marido
raivoso mas disposto ao perdão e a uma nova aliança (Oséias 3) vai ser
identificado com a divindade Iahweh que reclama exclusividade.
Legitima-se assim a partir da fala mal-amada masculina um
discurso sobre Deus que compartilha com os homens dessa experiência de ausência
na relação amorosa com as mulheres/povo.
Jeremias: o não-amado
Em Jeremias a perspectiva é a da ausência da relação com a
mulher que define a experiência do profeta: Não tomarás mulher (Jeremias 16,2).
Tal precaução responde a avaliação feita nos capítulos iniciais: de novo a
história do povo vai ser contada a partir de um romance mal-sucedido entre Deus
e o povo:
“Lembro-me de ti, da tua afeição quando eras jovem, e do teu
amor quando noiva, e de como me seguias no deserto, numa terra em que se não
semeia.” (Jeremias 2,2)
O romance e a relação idílica vai ser rompida e a culpa vai
recair sobre a mulher que se recusa a manter a relação de exclusividade. Uma
outra imagem usada no capítulo 2 é a da mulher como videira excelente, da
semente mais pura, que se torna planta degenerada, vide brava (v.21). A partir
da degeneração da imagem feminina idealizada, o texto de Jeremias assume uma
violência verbal fulminante contra a mulher/povo:
“Como podes dizer: Não estou maculada, não andei após os
baalins? Vê o teu rastro no vale, reconhece o que fizeste, dromedária nova de ligeiros
pés, que andas ziguezagueando pelo caminho; jumenta selvagem, acostumada ao
deserto e que, no ardor do cio, sorve o vento. Quem a impediria de satisfazer
ao seu desejo?” (vv. 23 e 24).
A instrução para que Jeremias não tome mulher constitui o discurso
da feminização da idolatria e do pecado. Existe um movimento emancipatório na
jovem que a torna degenerada, que faz com que ela não corresponda mais aos
desejos do amante/Deus. Esta não correspondência instaura o mal-estar e o
estranhamento. Vide brava. Dromedária. Jumenta selvagem. O discurso profético
se alimenta do mal-estar masculino para fabricar sua crítica. A variedade de
imagens associadas enriquece o vocabulário da profecia.
O Jeremias que evita a mulher se protege da destruição que
se abaterá sobre grandes e pequenos (Jeremias 16,6). A experiência do mal-amado
disponibiliza a fala do castigo: “Eis que farei cessar neste lugar perante vós,
e em vossos dias, a voz de regozijo e a voz de alegria, o canto do noivo e o da
noiva.” (Jeremias 16,9).
Ezequiel – do amor arrancado
A profecia de Ezequiel talvez seja a mais misógina, a que
mais explora de modo virulento as metáforas negativas associadas às mulheres em
suas relações com os homens.
A informação biográfica sobre Ezequiel é a de que ele seria
casado e que sua mulher seria a delícia de seus olhos (Ezequiel 24,16). A
palavra de Deus para Ezequiel é de que às súbitas tirarei a delícia dos teus
olhos. Este anúncio se faz acompanhar pela recomendação: não lamentarás, nem
chorarás, nem te correrão as lágrimas. Geme em silêncio…
A mulher de Ezequiel é tão sem mistério e sem profundeza que
sua cotidianeidade pode ser subordinada por conteúdos mais sólidos e exatos. É
uma delícia, uma beleza presente, pressentida, presumida e precisa. Uma mulher
sem cantos, sem detalhes desconhecidos. Óbvia demais: necessária como metáfora
mas não como realidade.
Quando o povo pergunta pelo significado deste acontecimento,
Ezequiel explica:
“Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu profanarei o meu
santuário, objeto do vosso mais alto orgulho, delícia dos vossos olhos e anelo
da vossa alma…” (v.21).
A mulher de Ezequiel vai ser comparada ao santuário. Delícia
dos olhos, anelo da alma, mas também objeto do castigo de Deus. A vida do
profeta e sua ação profética se misturam: a vida pessoal vira metáfora da ação
julgadora e da punição de Deus. A supressão súbita de uma relação de delícia
funda a legitimidade da fala do profeta:
“Nesse dia abrir-se-á a tua boca para com aquele que
escapar; falarás e já não ficarás mudo. Assim lhes servirá de sinal, e saberão
que eu sou o Senhor” (v.27).
O sinal que legitima a fala do profeta é a delícia negada.
Mal-amado o profeta metaforiza sua vida. Subitamente tomada, a mulher que
protagonizava a delícia fica ausente e o campo semântico do feminino fica
liberado para os conteúdos de prostituição, pecado, luxúria e desejo
desenfreado.
A relação de Deus com o povo vai ser mais uma vez apresentada
dentro do léxico da relação de amor-desejo-sexo entre homem e mulher. No
capítulo 16 de Ezequiel a relação vai ser apresentada de forma romanceada:
“Passando eu por junto de ti, vi-te e eis que o teu tempo
era tempo de amores; estendi sobre ti as abas do meu manto, e cobri tua nudez;
dei-te juramento, e entrei em aliança contigo, diz o Senhor Deus; e passaste a
ser minha… Mas confiaste na tua formosura e te entregaste à lascívia, graças à
tua fama; e te ofereceste a todo o que passava, para seres dele” (Ezequiel 16,
8 e 15).
O feminino se desloca da relação pessoal e direta e assume
lugar na linguagem profética: a mulher – o santuário; a mulher – a terra. As
metáforas vão definindo a exclusividade do masculino na linguagem sobre Deus e
profecia e, ao mesmo tempo fabricando os valores e os conteúdos das identidades
de gênero.
“De maneira que os homens justos as julgarão como se julgam
as adúlteras e sanguinárias… A multidão as apedrejará e as golpeará com as suas
espadas; a seus filhos e filhas matarão, e as suas casa serão queimarão no
fogo. Assim farei cessar a luxúria da terra, para que se admoestem todas as
mulheres, e não façam segundo a luxúria delas…” (Ezequiel 23, 45 a 48).
Os homens justos julgarão as adúlteras. A luxúria da terra e
a luxúria das mulheres. A profecia vai compondo seu léxico na afirmação do amor
mal-amado do homens, do amor mal-amado de Deus.
… sem perder a ternura: jamais!
As mulheres ausentes, as mulheres óbvias, as mulheres
devoradoras: é tudo que se pode dizer do amor de homem na profecia.
As “atitudes mitológicas de uma comunidade lingüística” – no
caso, da profecia bíblica – se expressam num sexismo da linguagem que confunde
sexo e gênero que imobiliza o feminino e o masculino na consolidação de uma
teologia incapaz de suspeitar de seu léxico e incapaz de perceber sua
psicologia da composição.
Mal amada e feita por homens mal-amados, a teologia e o Deus
da profecia bíblica faz do amor-desejo-sexo uma metáfora sem unívoca
aprisionando as mulheres na ausência e constituindo os homens no amor
mal-amado.
Na poesia de João Cabral Os Três Mal-Amados a
responsabilidade do poeta está em ser rigoroso, em apresentar a variabilidade e
revelar o velamento da mulher no discurso do amor do homem. Mal-amada é a
sintaxe da linguagem sexista e sua incapacidade para o encontro com o amor da
Outra.
A hermenêutica bíblica na América Latina ainda não assumiu a
responsabilidade de colocar do avesso e criticar e superar o tanto de
antifeminismo presente e resistente no exercício de composição de seu léxico e
seus discursos. As palavras mal-amadas dos textos bíblicos resistem aos
tratamentos lingüísticos e sociológicos, num reforço da teologia misógina.
Deixar de dar importância ou restringir a tarefa aos textos e leituras das
mulheres, deixa o caminho livre para cumplicidades inconscientes.
O desafio é o de fazer teologia reinterpretando o valor que
se confere ao amor para homens e mulheres como compromisso amoroso capaz de
embelezar os horizontes e exercícios de justiça e felicidade que perseguimos
com paixão.
Deus conosco.
Fonte: www.bibliahoje.blog.br
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