"Na nossa sociedade, a beleza não é mais uma questão pessoal, porque já faz parte plenamente da economia capitalista: através do design, do gosto, da publicidade, dos consumos em geral. Mas ela atua segundo modalidades complexas, que implicam grande atenção pelas nuances.
Teórico da hipermodernidade e do hiperindividualismo, Gilles
Lipovetsky se autodefine como um "tocquevilliano" interessado em
todas aquelas mudanças sociais que permeiam o regime democrático: incluindo a
moda, o luxo e a beleza feminina. Um tríptico ideal para a nossa exploração.
A reportagem é de Franco Marcoaldi, publicada no jornal La
Repubblica, 11-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"No Renascimento, a beleza do rosto feminino respondia
a cânones muito rígidos, e hoje certamente não. Na corte do rei, o luxo tinha
que responder a critérios precisos: não havia dúvidas sobre o que era belo e o
que era feio, o que era bom e o que era mau. Mas agora quem detém uma
autoridade capaz de estabelecer regras reconhecidas por todos? Existem no
máximo muitas, diversas autoridades capazes de influenciar grandes segmentos do
gosto: jornais, estrelas, cantores, televisões, marcas. Tomemos a moda: até
Dior ou Coco Chanel, sabíamos como devíamos nos vestir. Agora não. E é uma
mudança que ocorreu em apenas 60 anos de história, que produziu, ao mesmo
tempo, mais liberdade e mais confusão".
Eis a entrevista.
Sem dinheiro, no entanto, é difícil alimentá-la.
Obviamente, é impossível pensar em uma casa nova e mais
bonita se, enquanto isso, se perde o trabalho. Mas também existem muitos
âmbitos em que a novidade se oferece sem dinheiro: é assim com a música no
YouTube e, em certa medida, também com a moda, cada vez mais democrática.
Graças ao vintage, hoje podemos estar na moda com apenas uma camiseta e um par
de jeans rasgados. É um fato novo e importante, que não humilha mais as classes
mais baixas.
Comecemos dizendo que o luxo, assim como a moda, não é uma
característica eterna das sociedades humanas. E, desde o início, ele não tinha
a ver nem com a arte nem com a beleza. Ele pertencia apenas ao universo
masculino e remetia a festas, presentes, trocas rituais que representavam
outras modalidades do poder. Tanto os gregos quanto os romanos defendiam com
grande convicção o luxo público, enquanto condenavam o privado. Depois,
lentamente, impôs-se o processo exatamente oposto.
E, há cerca de 30 anos, se imprimiu mais uma novidade: ao
lado do luxo como indicador da posição social, foi se afirmando uma imagem
principalmente emocional e privada, que ocasionalmente também pode se referir à
classe média. Na corte do rei, o luxo era teatral: absolutamente era preciso
ser visto pelos outros. Hoje, assiste-se ao caso extremo de um bilionário
norte-americano que gasta 20 milhões de dólares para ir uma semana ao espaço.
Em condições difíceis e sem ser visto por ninguém. Apenas para coroar um sonho
infantil: é um fato puramente emocional, ligado à fantasia, à imagem de uma
experiência extraordinária, como a perda de gravidade.
E chegamos, por fim, à beleza feminina. Esta também, o
senhor escreve, não é um dado eterno. Há um momento histórico específico em que
o “beau sexe” é "inventado".
Nas pinturas pré-históricas, as mulheres são retratadas com
enormes seios e nádegas, símbolo de fecundidade e não de beleza. Na cultura
grega, obcecada pela definição da da beleza absoluta e marcada por uma cultura
homossexual, Apolo certamente é mais importante do que Vênus. Por fim, na
cultura cristã, a beleza da mulher é considerada perigosa, "a porta do
diabo". Um traço que conotará a cultura popular até o século XX: até
Marlene Dietrich, a mulher vamp, filiação direta do vampiro. Hoje, no entanto,
desaparecida de cena.
Ao contrário, o Renascimento impõe uma imagem radicalmente
oposta.
Marsilio Ficino fala da beleza feminina como sinal de Deus.
No Renascimento, toda parte do corpo é investigada com extrema precisão.
Impõe-se um cânone mais do que nunca específico, e da poesia à pintura se
assiste a uma verdadeira divinização da beleza da mulher. Mas, chegando até
hoje, qual é o paradoxo? Vivemos em uma sociedade democrática que, ao menos em
teoria, vê se afirmar um ideal igualitário entre homens e mulheres, porém, a
ideia de beau sexe não desapareceu, de fato; ao contrário, se reforçou.
Portanto, a igualdade democrática convive com a desigualdade
estética: as revistas femininas se concentraram na beleza, as dietas dizem
respeito principalmente às mulheres, e o mesmo se pode dizer para a indústria
cosmética, a lipoaspiração, a talassoterapia, a cirurgia estética. É verdade,
há algum tempo, os homens também se assomaram a esses universos, mas em
percentuais largamente minoritários. As mulheres trabalham, ocupam cada vez
mais frequentemente posições de grande responsabilidade, se afirmaram na
política, mas querem marcar a sua diferença. E um dos campos ideais é
justamente o da beleza. A existência humana não é só política, não se esgota na
igualdade dos direitos. O ser humano é também um ser sexual. E a diferenciação
volta a ser decisiva.
Naturalmente, se poderia objetar que a tirania da beleza à
qual as mulheres estão sujeitas é apenas o fruto milenar da dominação
masculina.
Uma leitura justa, mas parcial. É uma tirania, concordo. Mas
é preciso acrescentar que, embora antigamente o ideal da beleza feminina era
acompanhada pela total submissão e relegação da mulher, agora já não é mais
assim. Irene Saez, antes de ser prefeita de Caracas, foi Miss Universo.
Basta contrapor o exemplo de Merkel, e estamos todos de
acordo. Que fique claro: eu não estou dizendo que nós vivemos no paraíso
terrestre, e muito menos, escrevendo os meus ensaios, pretendo realizar um ato
militante. Simplesmente observo a realidade. E nessa realidade, eu vejo que as
mulheres, em primeiro lugar, redescobriram a centralidade do beau sexe.
Pense-se no novo culto da magreza, que muitas feministas atribuem
exclusivamente ao poder da moda e da publicidade.
Eu não acredito que seja assim. Ao contrário, eu penso que
há uma forte ligação entre esse culto e o ideal prometeico da dominação do
mundo. É uma espécie de continuação da cultura demiúrgica sobre o plano do
corpo. No passado, a beleza era considerada um dom de Deus. Hoje cabe a nós ser
bonitos. Zsa Zsa Gabor dizia: não existem mulheres feias, existem apenas
mulheres preguiçosas. Trabalhem, façam ginástica, comam pouco, vão à academia e
vocês serão bonitas, sedutoras. Não, não é apenas uma imposição publicitária.
Senão, não se entenderia por que a moda, caprichosa e volúvel por natureza, é
tão tirânica e firme sobre a ideia do corpo, que não muda há décadas.
A verdade é que um corpo magro e ágil se une perfeitamente
àquele ideal prometeico ideal do qual eu falava antes: é o espelho de uma vida
salutar, dinâmica, voluntarista. E, de fato, a pessoa gorda se deprime não
tanto e não somente porque está acima do peso, mas porque perdeu o controle de
si mesma. Naturalmente, o que eu digo também pode valer para os homens, mas os
homens – e agora sou eu que puxo a história – sempre tiveram milhares de outras
maneiras para exercer a sua capacidade se sedução. A partir da poder, o eterno retorno
da masculinidade.
A mulher, enfim, ainda seria depositária natural da
supremacia estética.
Eu ainda não sei por quanto tempo, mas hoje é assim. A
ideologia do unissex não triunfou: nem na escola, nem na moda. Jean Paul
Gaultier inventou as saias para os homens, mas são vistas apenas nas
passarelas, e certamente não nas ruas. E se um homem se maquia, logo pensamento
que ele é um transexual. Os sinais da diferença entre os dois sexos permanecem,
e a distância com relação ao papel de beleza é inquestionável. Dos desfiles de
moda às revistas profissionais, da lingerie à maquiagem, não há igualdade nem
reversibilidade entre o mundo masculino e feminino. Como duvidar do fato que,
para as mulheres, a beleza é mais crucial, identitária e ansiogênica do que
para os homens?
Fonte: Ihu
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