"O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral,
bem-vindo como indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na
própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido
democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São
frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao dono
desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia", escreve José
de Souza Martins, sociólogo. Segundo ele, "o homem que achou o dinheiro declarou que
gostaria que sua mãe o visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão.
Lançado para a margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que
é, o antimoderno sentido da honra".
Quando a honestidade surpreende e dela se desconfia é porque
alguma coisa essencial está mudando na sociedade. É o que incita à compreensão
sociológica dessa reação, suas ocultações e seus significados no recente caso
da devolução, ao dono de um restaurante, dos R$ 20 mil que lhe foram roubados.
O dinheiro fora achado por um casal de moradores de rua de São Paulo, o
maranhense Rejaniel e a paranaense Sandra.
Já há um debate em relação ao suposto sentido do gesto dos
dois moradores dos baixos de um viaduto do Tatuapé. Uns veem nele vontade de
aparecer. Outros consideram trouxa o casal, pois "o achado não é
roubado". Não poucos no gesto reconhecem a simples e velha honestidade, um
valor de referência. Aliás, é por meio dela que a sociedade se reproduz e se
preserva, regula e organiza a vida de todos, dos bem-intencionados e dos
mal-intencionados, dos íntegros e também daqueles para os quais a honestidade
já não é senão uma anomalia.
Vontade de aparecer é pouco provável, pois essa vontade é
circunscrita a determinadas categorias sociais e depende de socialização
específica. É própria da classe média, cuja cultura valoriza o parecer muito
mais do que o propriamente ser. Quem procura parecer o que não é e mais do que
é quase sempre se denuncia nos gestos impróprios e na inabilidade para
manipular apropriadamente o código gestual que corresponde à aparência que
pretende ostentar. Pessoas pobres sabem disso, mesmo quando imitam aquilo que
não são. Os ricos também o sabem porque com facilidade identificam quem não
pertence à categoria social dos que podem ostentar. As pessoas se traem nos
desajustes da conduta.
Parecer traz identidade visual e o prestígio superficial da
aparência, o que é característico da sociedade de consumo. Os dois moradores de
rua, que são catadores de lixo reciclável, estão muito longe das fantasias
consumistas da maioria e suas possibilidades de ostentação. São culturalmente
incapazes de manipular os significados da aparência porque não têm como dela
beneficiar-se.
Quanto a ser trouxas porque deixaram de apoderar-se do que
não era seu, e do que claramente careciam, é algo improvável. Alguém que se
apodere de uma quantia de dinheiro muito superior à sua capacidade de
utilizá-la, mesmo dinheiro achado na rua ou no lixo, dificilmente poderá
utilizar esse dinheiro na escala de suas carências acumuladas sem ser
denunciado. A teia de regras e cautelas do mundo do consumo é vigilante e
repressiva para que um pobre não se meta a ser o que não é. Não é improvável
que o casal tenha levado isso em conta.
Mesmo que fosse a um restaurante para uma lauta refeição e
matar a fome de uma vida, correria o risco de não ser servido e de despertar
suspeitas. E, se pretensioso, mas prudente, pedisse uma garrafa de modesto
vinho da terra, maior seria a suspeita. Pobre que é pobre toma água ou suco,
dizem os vigilantes da conduta alheia. O que bem indica o que são as suspeitas
que regulam as relações sociais. Todos somos devidamente observados todo o
tempo por todos. O político que foi visto com amigos num restaurante com dois
Romanée Conti, um vinho de US$ 6 mil a garrafa, já despertou suspeitas.
Imagine-se o morador de rua servindo-se de modestíssimo vinho local. Para
entrar no restaurante, teria antes que comprar os trajes apropriados à
transitória escala de ascensão social que R$ 20 mil permitem. Em condições
assim, dinheiro achado é inútil.
O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral,
bem-vindo como indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na
própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido
democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São
frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao dono
desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia.
O homem que achou o dinheiro declarou que gostaria que sua
mãe o visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão. Lançado para a
margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que é, o
antimoderno sentido da honra. Por incrível que pareça, a maioria das pessoas é
honrada e faz parte dessa imensa massa invisível dos não notados. Um
trabalhador dedicado ao seu trabalho, ou um professor devotado ao ensino e à
formação de seus alunos, terá pouquíssima chance de ser aplaudido, mesmo por
quem de seu trabalho se beneficia. No entanto, eles têm o que lhes basta como
nutrição moral: o sentido da honra e a honestidade. Já não se fala disso, mas
os sociólogos sabem que uma das carências humanas destes tempos de liquefação
dos valores é a da honradez e da honestidade, o alimento que sacia os que não
foram vencidos, os que se mantiveram antiquadamente honestos.
Fonte: Estado de São Paulo
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