“Valente”, uma espécie de viagem de iniciação, trata da
relação mãe-filha, ao abordar temas como a transformação, a aceitação do outro
e o preço a ser pago pela maturidade. A
protagonista se revolta contra os
padrões de educação da rainha-mãe, e busca aventuras fora do castelo. É uma
heroína feminista.
Tudo se passa em algum momento dos tempos medievais da
Escócia, na época dos reinos, batalhas e casamentos planejados (não que
tenhamos mudado tanto com esses hábitos). Merida é a primogênita do rei Fergus
e da rainha Elinor e, ao contrário daquilo que se pressupõe para uma princesa
herdeira do trono, ela não tem problemas em comer, correr, cavalgar e praticar
o arco e flecha “como se menino fosse”.
Mas as aspas da divisão de tarefas não cabem em sua cabeça e
os rótulos do gênero não funcionam com ela. A coisa se complica quando é
chegado o momento da filha mais velha escolher algum pretendente e se tornar
uma esposa obediente e “asseada”, como diz a rainha. Cria-se então um conflito
central entre mãe e filha, ou entre diferentes perspectivas de gerações sobre
esse tal papel da mulher na sociedade.
A selvagem natureza
humana
De Bruno Carmelo
Um dos principais contos de Machado de Assis, Pai contra
mãe, girava em torno de uma fatalidade. Estas duas figuras familiares de igual
importância entravam em conflito, e por questões de ideal, de classe social e
mesmo de sexo, a sobrevivência de uma delas implicava a morte da outra. De
certo modo, este é o mesmo conflito que se encontra em Valente.
A jovem princesa Merida sempre se identificou mais com o
espírito selvagem do pai, com quem tem maior afinidade e de quem herdou os
cabelos ruivos e selvagens. Já a mãe tem os cabelos presos, escuros,
impecavelmente arrumados, e acredita na etiqueta como obrigação social, além do
casamento como finalidade para uma mulher. Logo após brigar com sua mãe e
chamá-la de monstro, Merida encontra uma bruxa que acaba por transformar sua
mãe justamente nisso: em um monstro ou, no caso, em um urso selvagem.
Este conflito, o principal de Valente, é um potente motor
para o roteiro, riquíssimo em significados. Não só a mãe tenta civilizar sua
nova natureza animal – a maioria do humor nasce deste urso comendo com
talheres, limpando a boca com guardanapos -, mas também a filha precisa
esconder a nova transformação materna do próprio pai, que detesta ursos. Merida
deve impedir que seus pais matem um ao outro, mas acima de tudo ela deve
impedir que o confronto entre a liberdade (pai) e a tradição (mãe) destrua a
noção de família.
Esta é provavelmente a primeira vez em que a Pixar escolhe
um mediador como protagonista. Merida é a coadjuvante de sua própria história,
ela é a prova de que a diplomacia como forma de valor moral também pode chegar
aos contos infantis. A garota tem grande talento no arco e flecha, mas não mata
mais que alguns peixes (e por questão de sobrevivência). Ela não tem conflito
nenhum para si, algo realmente novo e quase revolucionário em um filme
infantil, que sempre força na transformação do protagonista pelos valores da
amizade (Toy Story, Up - Altas Aventuras, Monstros S.A.) ou do amor romântico
(Wall-E). A família neste caso não aparece mais como uma instituição
essencialmente boa, como em Procurando Nemo e Os Incríveis, e sim como uma
forma heterogênea e conflituosa a ser moldada.
Mesmo assim, alguns críticos afirmaram, de maneira
depreciativa, que esta obra se parecia mais com os antigos filmes da Disney,
pela presença gritante da família como tema central. De fato, há pouco em jogo
além das relações de filiação e casamento, mas este é um dos raros roteiros que
não se limita a ensinar as crianças a amarem os pais, apostando em uma
adaptação mútua entre ambas as partes. Esta é uma primeira surpresa: não é
sempre que os pais também são vistos como seres tão perfectíveis quanto seus
filhos. Contra o argumento do "filme à moda antiga", as escolhas da
direção mostram uma técnica moderníssima, enquanto alguns toques do roteiro
revelam a preocupação da Pixar em ser competitiva no mercado – como a inclusão
dos trigêmeos, por exemplo, uma provável resposta da empresa aos populares
pinguins de Madagascar.
Além disso, ao invés da mensagem católica dos filmes tradicionais
da Disney, Valente adota um lema mais contemporâneo, mais protestante. Nada de
um destino pré-determinado por forças divinas, e sim a moral muito americana do
"faça você mesmo", "você pode ser o que quiser, contanto que se
esforce". Talvez por isso o filme tenha sido chamado de pró-feminista,
apoiando a independência da mulher - vide a bela cena em que Merida disputa a
sua própria mão em casamento. A narrativa, inclusive, estabelece uma
"passação de poder" dos homens às mulheres, iniciando-se com o título
inscrito na tela após um ato de bravura do pai, e terminando com um ato de
bravura das duas mulheres da família. Destaque, aliás, para esta cena bem
erótica da mãe-selvagem, com os cabelos finalmente soltos, despenteados, nua e
cercada por diversos homens brutos. Quando seu próprio marido a vê, ele
manifesta primeiro o desejo sexual, antes do desejo de protegê-la. Poucas cenas
da Pixar foram tão sensuais quanto esta.
Por fim, Valente surpreende não apenas por escolher uma
mulher como protagonista, muito menos por se passar na Escócia medieval. Este
filme ousa abordar a família sem glorificá-la, sem maniqueísmos, sem ceder à
obrigação moral e mercadológica de atribuir um amor romântico à protagonista.
Esta garotinha de cabelos despenteados, que rasga as roupas justas para revelar
suas formas e melhor praticar o arco e flecha (outro momento erótico), consegue
associar a ideia de liberdade não mais à conquista do território e do poder,
mas à conquista social e individual. Isto sim, é um avanço considerável nos
roteiros infantis, e uma forma de modernidade mais que bem-vinda ao cinema de
animação.
Fonte: Adoro Cinema
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