No país do arco-íris, uma menina tem mais chances de ser
estuprada do que aprender a ler; a Sida é epidemia nacional.
A cada 27 segundos uma mulher é abusada sexualmente na
África do Sul. Uma em cada três sul-africanas será violentada pelo menos uma
vez na vida. Um em cada três sul-africanos irá estuprar uma mulher.
Estes dados
são da Rape Crisis, uma organização sem fins lucrativos (ONG) que combate a
violência contra a mulher, localizada na Cidade do Cabo. A associação aponta ainda que, na maioria do
casos, a violência sexual é realizada por um homem que participa no quotidiano
da vítima.
Este é o caso da Eliane, 30 anos. “Conheci o meu primeiro
namorado numa casa de dança, foi amor à primeira vista. Cerca de oito meses
depois de casarmos ele começou a usar drogas, beber e consequentemente a
tartar-me mal”. Ela conta que a violência aumentou gradativamente. “Um dia ele
levou uma prostituta para casa. Eles deitaram-se na minha cama para ter
relações sexuais e fui obrigada a participar em tudo. Depois, ele esfaqueou-me e disse-me que tinha
de fazer isso porque era inferior. E assim continuou por muitas noites. Hoje
estamos separados”.
A África do Sul é a capital do estupro no mundo. Uma menina
nascida no país tem mais chances de ser estuprada do que aprender a ler. Um
quarto delas é abusada sexualmente antes de completar 16 anos. Este problema
tem muitas raízes, segundo a Rape Crisis: machismo (62% dos meninos com mais de
11 anos acreditam que forçar alguém a fazer sexo não é um acto de violência),
pobreza, desemprego, homens marginalizados, indiferença da comunidade, e mais
do que tudo, a impunidade: os poucos
casos que são denunciados às autoridades perdem-se no desinteresse da polícia e
acabam impunes. Nos últimos 10 anos, dos 25 homens acusados de estupro no país,
24 saem livres da punição, segundo os levantamentos da entidade.
De acordo com Marieta de Vos, directora-executiva da Mosaic
Training, Service and Healing Centre for Woman, uma organização que fornece
suporte às vítimas de violência doméstica e estupro, a África do Sul regista 50
mil estupros por ano e as ONG’s existentes na Cidade do Cabo protegem
actualmente cerca de 25 mil pessoas, desde bebés, passando por adolescentes até
idosas.
O trabalho das organizações não-governamentais é fundamental
para se ter uma noção do tamanho da crise de estupros na África do Sul.
Procurado pela reportagem, o órgão do governo responsável pelo tema alegou não
ter dados actualizados sobre a violência sexual. Segundo as estatísticas da
polícia de 2007, os incidentes de estupro notificados decresceram 4,2 pontos
percentuais nos seis anos anteriores. No entanto, num ano foram registados
52.617 estupros. Também foram registados 9.327 casos de “atentado ao pudor” –
incluindo violação anal e outros tipos de ataque sexual que não se enquadravam
na definição de estupro. Em dezembro, novas estatísticas criminais referentes
ao período de abril a setembro de 2007 incluíam o registo de 22.887 estupros.
Barreira cultural
Ida Jacobs, 37 anos é colaboradora da associação Labour
Rights Programme Officer – Women on Farms Project, uma ONG que protege mulheres
que sofrem qualquer tipo de abuso nas fazendas da África do Sul. Ela também foi
vitima de violência doméstica e estupro, que muitas vezes estão
relacionados. Ela conta que várias
mulheres não denunciam os agressores porque geralmente existe uma dependência
emocional e financeira e também por conta da
falta de aceitação da família em relação ao divórcio.
“Conheci o meu marido aos 17 anos e durante o namoro ele era
perfeito, mas depois do casamento começou a falar alto, mas minha mãe me dizia
que isso era normal, pois ele era homem e eu precisava obedecer. Até que ele
começou a bater-me e obrigar-me a ter relações sexuais com ele. Depois de tudo
ele pedia-me desculpas e dizia que iria mudar, mas as cenas se repetiam. O meu
corpo está todo marcado”. Ida conta ainda que após 13 anos de casados ela pediu
o divórcio, porém, não foi fácil, pois não tinha emprego, casa e muito menos
apoio da família. Para superar tudo isso, ela contou com a ajuda da entidade
Women on Farms.
“Há sete anos estou divorciada e sem contacto com a minha
família, mas consegui refazer a minha vida. Hoje tenho casa, carro, trabalho e,
por meio dele, oriento outras mulheres a saírem dessa condição miserável”. Mas,
afirma que o abuso está cada vez pior no país, pois, infelizmente, o machismo
ainda supera as leis. “A situação das mulheres que trabalham nas fazendas na
África do Sul é muito parecida com a maneira com que viviam os escravos
antigamente. Essas mulheres sofrem diariamente abusos físicos, psicológicos e
sexuais e quando reclamam, o dono da fazenda diz que a fazenda não tem nada a
ver com isso”, explica.
Segundo outra entidade sem fins lucrativos chamada
Reach, as mulheres brancas que são
vítimas de estupro também têm mais dificuldade em efectuar a denúncia. “Elas
acreditam que isso só acontece com as negras e se sentem envergonhadas. No caso
de violência doméstica o pensamento é o mesmo”, disse a presidente da entidade,
Claudia Lopes.
Ela ainda comenta que, recentemente na África do Sul, uma mulher tentou separar-se do marido, após ter sofrido violência doméstica e
sexual, porém, ele não aceitou e a chamou para conversar. “Neste dia, ele levou
mais alguns colegas para violentar sexualmente a mulher na frente dele e depois
chamou o filho para ver também. O marido ainda introduziu uma chave de fenda na
vagina da esposa, após tudo isso ele matou a esposa e o filho”, conta Claudia.
Já Sharon Kouta, directora do UNODC VEP (United Nations
Office on Drugs and Crime Victim Empowerment Programme, na sigla em inglês) –
um programa do governo em parceria com a ONU para o fortalecimento dos Direitos
Humanos, na província oeste da Cidade do Cabo, afirma que a razão do estupro é
cultural. “As pessoas costumam dizer que a razão do estupro é droga ou álcool,
mas na realidade não importa a condicão social, econômica, cor da pele, o
problema é a cultura, o estupro é um mecanismo usado para controlar e
manipular”, revela.
Presidente acusado
O actual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, foi
acusado em 2005 (na época ele era vice-presidente de Thabo Mbeki) pelo tribunal
supremo, em Johanesburgo, de estuprar uma mulher de 31 anos, amiga da família.
Zuma alegou, durante o julgamento em 2006, que praticou sexo com a mulher, mas
de forma consensual. Além disso, ele sabia que a vítima era portadora do vírus
HIV e não usou nenhum tipo de protecção. Zuma declarou também que tomou banho
depois da relação sexual para evitar a contaminação. O caso chocou também
activistas da Sida, que desenvolvem um árduo trabalho educativo e de prevencão
no país, e ainda mais porque a sua esposa é médica e era Ministra da Saúde.
Entretanto, Zuma foi absolvido do caso.
A representante do sector Acting Head, do Departamento de
Desenvolvimento Social da província oeste da Cidade do Cabo, Sharon Follentine,
descreve como a violência contra a mulher é difícil de ser combatida quando a
vítima passa também a acreditar que o estupro é natural e, por isso, não
procura auxílio ou demora muito tempo, quando já há traumas profundos.
“A vítima, após danos psicológicos e emocionais, passa a
acreditar que tudo isso acontece porque é destino ou porque ela fez algo
errado. Ela começa a interiorizar que os seus pais estavam sempre a discutir,
que ele sempre tinha argumentos para bater na sua mãe ou estuprá-la e a vítima
começa a transmitir esse pensamento para os filhos. Se por acaso os filhos
vivenciarem a mesma situação da mãe ou avó começarão a achar tudo natural e o
ciclo se repetirá”, comenta Follentine, que aposta nos programas educacionais e
informativos em comunidades com maior índice de violência doméstica e estupro
para combater as práticas.
A ONG Philisa Abafazi Bethu, que actua com a prevenção dos
abusos sexuais por meio de orientação nas escolas, igrejas das periferias e
bairros pobres, concorda que a mulher precisa de mais informação e saber que
existem outros meios de recomeçar a vida. “O nosso foco é mostrar para as
mulheres e crianças vítimas de abuso sexual e violência doméstica que isso é
errado. Elas, na maioria das vezes, nem
sabem que isso não é correcto, apenas tem noção que é mau. Depois de reconhecer
que o estupro é crime, a dificuldade das mães é sair da casa com os filhos,
aprender inglês porque muitas vezes falam outros dialectos, procurar uma casa, um ofício e isso demora, mas é possível”,
acrescenta Mabel Martn, representante da entidade.
Meta
Segundo dados mais optimistas da entidade All Africa House,
ligada à Universidade de Cidade do Cabo, a África do Sul espera acabar com a
violência contra a mulher em 2015 por meio de programas sociais que o país
desenvolve neste momento. Entretanto, a representante da entidade Reach
acredita que a situação ainda deve piorar.
“Os incidentes vão ficar mais graves. Temos um grande número de drogas e
álcool relacionados com estupro”, explica Claudia.
Quem concorda com Claudia é a professora da Universidade da
Cidade do Cabo, Lilian Artz. “Hoje é muito complicado transformar esta meta em
realidade, principalmente, quando nos deparamos com a falta dos equipamentos ou
procedimentos mais simples nos hospitais públicos da África do Sul.
Actualmente, a vítima de estupro espera muitas horas para fazer o exame
pericial e comprovar a violência. Após isso, muitas vezes ela sai do hospital
sem o kit com a medicação para prevencão do HIV”, detalha.
Ela conta ainda que quatro mulheres são assasssinadas todos
os dias na África do Sul vítimas de algum tipo de violência. “O governo possui
metas, porém, não propõe soluções suficientes para amenizar o problema que
cresce na mesma medida que aumenta o número de mulheres que contraem HIV/AIDS
nestes casos”, acrescenta.
As sul-africanas vítimas de violência doméstica e estupro
contam com órgãos públicos de protecção, a Comissão de Direitos Humanos, outra comissão que promove a igualdade entre
sexos e até mesmo várias organizações sem fins lucrativos existentes no país. É
comum encontrar anúncios, folhetos e
campanhas em lugares públicos ou em comerciais na televisão e rádio que
reforçam o compromisso das entidades em oferecer o suporte necessário.
A lei que combate a violência doméstica e estupro existe na
África do Sul desde 1998, mas a dificuldade das vítimas consiste na junção de
provas e dados necessários para incriminar o agressor. De acordo com o
Departamento de Polícia sul-africana, a mulher precisa, no caso de estupro,
realizar o exame de DNA entre quatro e seis horas após o incidente, manter as
roupas e não tomar banho, preservar a cena do crime com o maior número de
detalhes possíveis, passar por um exame médico pericial, fazer uma denúncia na
polícia para fornecer o máximo de informações. Existe um banco de dados de DNA,
mas a polícia só consegue provas quando há quantidade suficiente de material
genético (sangue, esperma e saliva, por exemplo) para análise após o estupro.
“Pela lei o estupro é considerado um acto grave e quem
comete pode ficar preso até 20 anos, mas na prática isso raramente acontece e
tudo aqui vira papel arquivado na gaveta”, lamenta Claudia Lopes.
Fonte: operamundi
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