Louise Ribeiro, morta pelo
ex-namorado Vinicius Neres
Louise Ribeiro morreu do jeito
que morrem as mulheres em casa ou pelos amores – ela foi assassinada por um
colega de curso que se apresenta como ex-namorado. Louise foi vítima de
feminicídio, uma palavra nova para representar práticas antigas e entranhadas
na cultura patriarcal brasileira: a explicação do matador confesso é que não
suportava o fim do relacionamento afetivo e um ímpeto feroz o assombrou ao
reencontrá-la.
Por Debora Diniz
A verdadeira explicação é que os
matadores de mulheres são homens que nos consideram como posse ou propriedade.
Eles matam suas companheiras, namoradas, esposas ou filhas. Arrependem-se em
seguida. Quase todos confessam o crime, uns poucos se suicidam. Não há enredo
amoroso nessa tragédia, mas brutalidade naturalizada pela desigualdade entre
homens e mulheres.
Louise era uma jovem mulher de 20
anos, estudante de biologia da Universidade de Brasília. Seu algoz, um
conhecido da vida cotidiana. O enredo trágico é descoberto pela confissão do
matador – ele teria pedido à Louise que acalmasse seu plano suicida. Ao fim de
um abraço de acolhimento, a golpeou e dopou com um lenço encharcado de
clorofórmio. Se a história da emboscada for verdadeira, a dor é miserável: a
moça foi ao seu encontro para cuidar do sofrimento. Ao vê-la, um gesto cruel o
moveu: peço desculpas por repetir a violência que escutei com a autoridade de
quem investiga – Louise foi asfixiada, seu rosto e genitália foram queimados. O
algoz cogitou estuprá-la, mesmo já estando morta. Se assim foi, o matador
queria mais do que assassiná-la, era preciso inscrever no cadáver o horror do
ódio.
O corpo de Louise foi largado em
um matagal próximo ao câmpus. A geografia da tragédia importa por, pelo menos,
duas razões. A primeira porque desconcerta as elites que imaginam ser a
violência contra a mulher um destempero de homens da periferia, os miseráveis
trabalhadores e sobreviventes da pobreza. É verdade que há maior concentração
da violência contra a mulher, e do feminicídio em particular, entre mulheres
negras e precarizadas. Mas a história de Louise nos provoca a entender como
esta é prática social disseminada de homens contra mulheres.
A segunda é que, falsamente, se
acredita que a entrada de um jovem homem no panteão da civilização, a
universidade pública, seria suficiente para alterar práticas abusivas de
masculinidade. A morte de Louise é como um pesadelo – nos exige acordar com
pressa, pois a universidade precisa assumir-se como parlatório público do horror que é a
violência contra a mulher. Diferentemente do já feito, precisamos nos estranhar
para além dos departamentos de estudos de gênero ou de mulheres. É preciso
enfrentar os homens abusadores nos cursos de medicina, engenharia ou física.
Eles são homenscomuns, professores, servidores, estudantes e familiares, ali
entre nós e ao nosso lado.
A violência contra a mulher faz
parte do mundo em que habitamos. O desamparo vivido por Louise ao se ver diante
de seu algoz – a imagino tão solitária na tortura da morte – deve nos mover
para a indignação. Há quase 30 anos faço parte da Universidade de Brasília. Fui
estudante, agora sou professora. Doutorei-me como feminista, entro e saio de
sala de aula com uma agenda ampla para a igualdade de gênero. Meus alunos se
incomodam mais com o feminino de minha voz do que com minhas interpelações
sobre as hierarquias sexuais entre eles e nós. Depois da morte de Louise, me
acanharei menos: o corpo torturado daquela jovem mulher mostrou-me que é
preciso mais, pois é pouco o que fazemos. Terei mais pressa, esquecerei as boas
maneiras de intelectual.
Louise nos obriga a viver o luto
pela perda e pela falência pedagógica da universidade. Por Louise, suspenderei
minha tranquilidade de conviver em uma instituição civilizada: reconheço a
barbárie do gênero como estando por ali, na sala de aula, nos corredores e
laboratórios, no encontro diário que terei com os estudantes homens. Com a
tragédia dessa jovem mulher, retorno à Universidade de Brasília como se me
encontrasse em comunidade desconhecida. Falarei do gênero, a palavra maldita
para as escolas, e não perderei tempo justificando-me sobre sua urgência.
Louise será corpo presente. Desdenharei dos homens conservadores que me
acusarem de ideóloga – serei o testemunho de que Louise morreu porque nos falta
sensibilidade feminista na universidade.
Debora Diniz é antropóloga,
professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
Fonte: Correio Braziliense
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