“Quanto aos homens trabalhadores, é evidente que a presença
destes sujeitos inflaciona a demanda pelo mercado ilegal do sexo em Altamira,
que envolve a exploração sexual comercial de crianças, adolescentes e mulheres
numa articulação muito próxima com o tráfico de drogas, pessoas e armas”.
Entrevista especial com Assis Oliveira
Os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes
em Altamira-PA nos últimos três anos superam o número de crimes cometidos em
toda a década passada. A informação é de Assis Oliveira, professor da
Universidade Federal do Pará – UFPA, e um dos autores da pesquisa intitulada
Diagnóstico Rápido Participativo: Enfrentamento da Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes no Município de Altamira. “A análise histórica nos
permitiu apontar que temos um crescimento dos casos de violência sexual neste
município. Tal fato é dimensionado em torno de algumas ‘ondas de crescimento’,
que significam períodos históricos que concentraram uma maior incidência de
casos judicializados, sendo eles os períodos de 1992-1994, 2004-2006 e
2010-2012”, aponta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line,
o pesquisador ressalta que o aumento da violência sexual deve ser compreendido
na conjuntura atual de crescimento populacional. “É preciso entender que este
município – e a região como um todo – passa por um processo de crescimento
populacional decorrente da migração de pessoas que, em sua maioria, é
constituída de homens solteiros ou de famílias que já saem de seus locais de
origem em situação de vulnerabilização socioeconômica na esperança de
conseguirem trabalho e melhores condições de vida com a grande obra. Ao chegar
a Altamira, encontram uma situação já saturada, ao mesmo tempo em que a
reforçam, extrapolando sua capacidade de atendimentos pelos serviços públicos
básicos”, lamenta.
Graduado em Ciências Jurídicas e mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFPA, Assis Oliveira (foto abaixo) é professor na
mesma universidade e membro fundador do Núcleo de Assessoria Jurídica
Universitária Popular “Aldeia Kayapó” – NAJUPAK.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi realizada a pesquisa intitulada
“Diagnóstico Rápido Participativo: Enfrentamento da Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes no Município de Altamira” e quais as principais
constatações?
Assis Oliveira – A pesquisa é uma das ações do projeto Rodas
de Direito, organizado pela Universidade Federal do Pará – UFPA em parceria com
a Fundação Tocaia e financiado pela Secretaria de Direitos Humanos. A pesquisa
teve por base a metodologia PAIR, utilizada em todo o território nacional e que
garante suportes teórico-metodológicos para podermos estruturar todas as etapas
do processo de coleta, sistematização e análise dos dados. Evidentemente,
devido ao fato de ser o município de Altamira o segundo maior do mundo, tivemos
que dar prioridade, nesta primeira pesquisa, às situações que pudessem ser
coletadas junto às instituições e com moradores de bairro da cidade de
Altamira. Ao todo, obtivemos dados sobre a situação da rede de proteção e sobre
a quantidade de casos que chegam às instituições, além de promover pesquisa
pelo método de história de vida com duas vítimas de abuso sexual e obter
informações em 15 dos 32 bairros da cidade de Altamira a respeito das condições
de vida e da presença de violência sexual contra crianças e adolescentes.
As principais constatações foram:
(1) houve crescimento acelerado dos casos de violência
sexual contra crianças e adolescentes nos últimos três anos (2010-2012). Para
se ter ideia desse aumento, só os últimos três anos e três meses (contados de
2010 até março de 2013) já superaram a quantidade de casos de violência sexual
contra crianças e adolescentes que chegaram ao Fórum de Justiça, Comarca de
Altamira, em toda a década passada (1ª década do século XXI), resultando um
total de 101 processos judiciais existentes na somatória da última década
contra os atuais 110 processos judiciais (de 2010 para cá). Sendo que a média
da década passada era de 10 processos/ano e a média destes últimos três anos é
de cerca de 30 processos/ano, estes dados são corroborados por outros obtidos
nos bairros (via Centro de Referência Especializada da Assistência Social –
Creas e Conselho Tutelar), dados que reforçam a constatação deste crescimento
acelerado; e
(2) houve a precarização dos serviços públicos de
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, o que
envolveu a diminuição do quantitativo de profissionais, sobretudo nas áreas de
atendimento, defesa e responsabilização. No caso das instituições municipais, a
concorrência desigual entre o salário pago pelo município e aquele que consegue
receber trabalhando numa das empresas terceirizadas da Norte Energia S.A.,
soma-se a isso tudo a própria rotatividade de alguns setores, como o judicial,
e a pouca quantidade de escolas públicas que declararam trabalhar a temática
“violência sexual contra crianças e adolescentes, direitos das crianças e dos
adolescentes e/ou sexualidade”.
IHU On-Line – Qual é o perfil das vítimas de violência
sexual? Confirma-se a estatística de que os casos de abuso acontecem no âmbito
familiar?
Assis Oliveira – O perfil majoritário das vítimas é de
crianças/adolescentes mulheres entre 11 e 15 anos, residentes de bairros da
periferia e do centro da cidade, com escolaridade de primeiro grau incompleto,
ainda que este dado da escolaridade – assim como o de raça/cor – esteja quase
ausente dos dados institucionais apurados. Deve-se levar em conta que a ampla
maioria dos casos apurados é de abuso sexual e, nestes, os principais
agressores são pessoas que possuem alguma relação de parentesco, amizade ou
confiança com as vítimas, sendo que as relações familiares constituem o
principal foco de vulnerabilização às vítimas, sobretudo
companheiros/namorados, pais e padrastos.
IHU On-Line – A pesquisa faz uma análise da resolução dos
casos de violência denunciados nos últimos 50 anos. O que foi possível
constatar em relação a isso? É possível observar alguma mudança de postura no
tratamento desses casos ao longo desse período?
Assis Oliveira – A análise histórica permitiu apontar que
temos um crescimento dos casos de violência sexual neste município. Tal fato é
dimensionado em torno de algumas ondas de crescimento, que significam períodos
históricos nos quais se concentrou uma maior incidência de casos
judicializados, sendo eles os períodos de 1992-1994, 2004-2006 e 2010-2012. Em
cada um deles há aumento considerável em relação ao período anterior, mas o
último é, sem dúvida, o que possui uma margem maior de crescimento. Também
verificamos que a maior parte dos casos, com sentença de condenação, é a dos
últimos três anos, ou seja, do período em que se criou a 5ª Vara do Tribunal de
Justiça da Comarca de Altamira, que é competente para os crimes de violência
doméstica, violência contra a criança e o adolescente, e crimes contra a vida,
além da execução penal.
Igualmente, a pesquisa revela que, em termos históricos,
houve mais casos em que os réus foram absolvidos ou tiveram o processo
arquivado em comparação àqueles em que foram punidos. Aliás, muito dessa
absolvição ou desse arquivamento está ligado ao fato de vários réus conseguirem
ficar numa situação de “foragido da Justiça”, passando três, cinco, até dez
anos sem serem encontrados, e quando retornam os crimes estão prescritos ou a
possibilidade de gerar provas está comprometida. Este é o principal gargalo do
Judiciário verificado na pesquisa histórica: esta “tática” dos agressores de se
evadirem da cidade/município e a existência de muitos processos em que não há
mínima caracterização dos agressores quanto ao local de moradia, nome e
filiação familiar, elementos que dificultam sua localização e possibilitam,
supõe-se, a continuidade das ações de violência sexual pelos agressores, agora
com outras vítimas.
IHU On-Line – Como o poder público tem atuado junto às
vítimas de abuso?
Assis Oliveira – As vítimas de abuso sexual são acompanhadas
no Centro de Referência Especializada da Assistência Social – Creas e, quando
necessário, também colocadas no Espaço de Convivência de Meninos e Meninas –
Ecom, esta última sendo uma casa de passagem que, na verdade, atua como casa de
acolhimento municipal, porém com capacidade para apenas 15 pessoas. No entanto,
a casa acolhe em muitas situações de 30 a 40 crianças e adolescentes em
diferentes condições de violação de direitos ou de vulnerabilidade social:
desde dependentes químicos e crianças abusadas sexualmente até adolescentes que
cometeram atos infracionais ou que foram retirados da rua. Enfim, isso é algo
muito preocupante devido ao fato de o município não possuir uma capacidade de
acolhimento da demanda municipal e ainda ter que atender aos demais municípios
da região, porque funciona como município-polo.
Há uma preocupação muito grande também com relação ao Creas,
pois a equipe foi reduzida e alguns profissionais, como psicólogos, foram
alocados pela gestão municipal para dividir o tempo de trabalho entre o Creas e
o Ecom, dificultando uma atuação mais qualificada e permanente com as vítimas
atendidas. Espera-se o início de operacionalização do Propaz, uma política do
governo estadual para atendimento de crianças e adolescentes vítimas de
violência sexual.
IHU On-Line – Quais são os aspectos que favorecem o aumento
desse tipo de violência?
Assis Oliveira – Muitos são os aspectos que favorecem este
tipo de violência e nem todos são apenas de cunho negativo. A pesquisa
identificou pelo menos três fatores que estão diretamente relacionados com este
fenômeno. Um primeiro é o da estruturação, nos últimos anos, de algumas
instituições importantes para a garantia do acesso à justiça e à rede de
atendimento, como a criação da 5ª Vara e da Vara da Infância e da Juventude, em
2010; também a criação do Núcleo de Atendimento Especializado da Criança e do
Adolescente – Naeca da Defensoria Pública do Estado, além do deslocamento do
Ministério Público do Estado para uma sede própria. Somam-se a isso a
existência de um Creas e de um Conselho Tutelar bastante atuantes no enfrentamento
destas violências. Tal conjunto de instituições permitiu o fortalecimento da
rede e das possibilidades de intervenção sobre os problemas, mesmo com as
dificuldades existentes e já mencionadas acima.
Uma segunda questão é a mobilização social originária desde
o período do caso dos meninos emasculados de Altamira, ou seja, há mais de 20
anos. Ela possui um conjunto de movimentos sociais e instituições públicas
reunidas, nos últimos anos, em torno da Comissão Municipal de Enfrentamento da
Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes de Altamira-PA. Eles sempre
mantêm no debate público a problematização desse tipo de violência, promovendo
campanhas, cursos, divulgação nos meios de comunicação, entre outras ações,
como forma de sensibilização da sociedade para a importância da identificação e
denúncia destes tipos de violência. Isso tudo apesar de elas ocorrerem mais em
relação ao abuso sexual do que à exploração sexual comercial. Daí haver outra
linha de conclusão da pesquisa, que diz serem partes deste aumento de
ocorrência a visibilidade e a denúncia dos casos, sem desconsiderar a hipótese
de aumento real. A terceira é em relação à construção da hidrelétrica de Belo
Monte.
IHU On-Line – A pesquisa aponta o aumento populacional
decorrente da construção da hidrelétrica de Belo Monte como um dos fatores para
o aumento da violência sexual. Quais as razões? Em que medida há relação entre
Belo Monte e os abusos sexuais?
Assis Oliveira – É preciso entender que este município – e a
região como um todo – passa por um processo de crescimento populacional
decorrente da migração de pessoas que, em sua maioria, se constitui de homens
solteiros ou de famílias que já saem de seus locais de origem em situação de
vulnerabilização socioeconômica na esperança de conseguirem trabalho e melhores
condições de vida com a grande obra. Ao chegar a Altamira, encontram uma
situação já saturada, ao mesmo tempo em que a reforçam, extrapolando sua
capacidade de atendimentos pelos serviços públicos básicos. Para se ter uma ideia,
semana passada o Ministério Público Estadual ia entrar com uma ação civil
pública por não haver mais vagas nas escolas públicas municipais. Essa situação
acaba impactando toda a população residente em Altamira e faz com que a
situação de vida destas pessoas se torne ainda mais precária, estando mais
vulneráveis às variadas formas de violência, das quais a sexual é uma delas.
Quanto aos homens trabalhadores, é evidente que a presença destes sujeitos
inflaciona a demanda pelo mercado ilegal do sexo em Altamira, que envolve a
exploração sexual comercial de crianças, adolescentes e mulheres numa
articulação muito próxima com o tráfico de drogas, pessoas e armas, assim como
da poluição sonora – pois é nas festas e bares que se encontram alguns dos
principais focos de aliciamento para a exploração sexual ou de estupro de
adolescentes/mulheres.
IHU On-Line – Em que consiste o Pacto de Compromisso
elaborado pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e
qual deve ser a participação do Consórcio Construtor Belo Monte – CCBM nesse
pacto?
Assis Oliveira – Uma das estratégias definidas pela Comissão
Municipal e o CMDCA/Altamira para o enfrentamento da violência sexual contra
crianças e adolescentes é a de responsabilização das empresas que atuam diretamente
na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, de modo a fazê-las assumir o
compromisso de promover ou financiar ações voltadas para a qualificação deste
enfrentamento. O Pacto de Compromisso é um documento elaborado pela Comissão
Municipal em parceira com o CMDCA/Altamira e negociado com o CCBM para que
houvesse a assinatura de ambas as partes. Ele contém oito medidas de caráter
educativo, investigativo e repressivo que visariam uma atuação específica na
região em que se localizam os canteiros de obra da usina hidrelétrica. Essa
localidade é onde temos comunidades e alojamentos em situação de potencial
vulnerabilidade para as crianças e os adolescentes, a exemplo do que se
verificou recentemente com o resgate de mulheres, travestis e adolescentes da
boate Xingu, nas proximidades do sítio Canais e Diques da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte.
Este pacto nunca foi assinado pelo CCBM. Ele seria um
importante instrumento de responsabilização da empresa para que pudesse assumir
uma parte do dever de enfrentamento do problema agudizado justamente pela obra
que ela, a empresa, está construindo. Outra linha estratégica local é de
alinhamento do Plano Básico Ambiental – PBA, que é o conjunto de políticas
compensatórias a ser implantadas na região, com o Plano de Ação do
CMDCA/Altamira. Esta é uma ação provocada pelo juiz da Vara da Infância e da
Juventude, que gerou a formação de um grupo de trabalho em que a Norte Energia
S.A. foi demandada a definir como o PBA poderia acolher as propostas de
políticas inseridas no Plano de Ação sem esquecer que isto não esvazia o
responsável prioritário de atendimento destas políticas, que é o Estado
brasileiro em seus níveis federal, estadual e municipal. Esta última estratégia
teve uma duração de reuniões, mas acabou não produzindo uma adaptação do PBA a
partir das demandas do Plano de Ação, algo que precisa ser feito também com
urgência.
Fonte: Ihu
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