É difícil prever qual será o futuro do cristianismo da
libertação na América Latina. O seu enraizamento sociorreligioso lhe permitiu
se manter, apesar da oposição ativa dos dois últimos pontífices.
A opinião é do sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy,
pesquisador emérito do CNRS. Seus livros e artigos são dedicados à atualização
do pensamento marxista e à sua relação com o espírito da utopia e do
messianismo religioso. Entre suas obras: La Guerre des dieux. Religion et
politique en Amérique latine (Ed. du Felin, 1998); Rédemption et utopie. Le
judaïsme libertaire em Europe centrale. Une étude d'affinité élective (Ed. du Sandre, 2009); La Cage d'acier. Max
Weber et le marxiste wébérien (Ed. Stock).
O artigo foi publicado no jornal Le Monde, 31-03-2013. A
tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O primeiro papa latino-americano, Francisco, parece querer
se distinguir das ideias e das práticas do seu antecessor, referindo-se a São
Francisco de Assis e colocando a pobreza no centro do seu pontificado. Tendo a
mesma origem sul-americana, o Papa Francisco é próximo da teologia da
libertação? Podemos duvidar disso...
O que é normalmente designado como teologia da libertação –
um corpus de textos produzidos desde 1971 por figuras como Gustavo Gutiérrez,
Hugo Assmann, Frei Betto, Leonardo Boff, Pablo Richard, Enrique Dussel, Jon
Sobrino, Ignacio Ellacuría, para citar apenas os mais conhecidos – nada mais é
do que a expressão intelectual e espiritual de um vasto movimento social,
nascido ao menos uma década antes, que se manifesta através de uma estreita
rede de pastorais populares (da terra, operária, urbana, indígena, da mulher),
de comunidades eclesiais de base, de grupos de bairro, de comissões de justiça
e paz, de formações da Ação Católica, que assumiram de maneira ativa a opção
preferencial pelos pobres.
Não na forma tradicional da caridade, mas como solidariedade
concreta com a luta dos pobres pela sua libertação. Sem a prática desse
movimento social – que poderíamos chamar de cristianismo da libertação – não se
pode compreender fenômenos sociopolíticos importantes na história recente da
América Latina como o avanço da revolução na América Central – Nicarágua, El
Salvador –, o surgimento de um novo movimento operário e agrícola no Brasil, ou
a sublevação zapatista em Chiapas.
Uma religião
comunitária de salvação
O cristianismo da libertação e, em particular, as
comunidades eclesiais de base não se enquadram nem no paradigma de
"Igreja", nem no de "seita", mas, ao contrário, do que o
sociólogo Max Weber (1864-1920) chamava, em 1915, de uma religião comunitária
de salvação, isto é, uma forma de religiosidade fundamentada em uma ética
religiosa de fraternidade – cuja fonte é a antiga ética econômica de vizinhança
– e que pode desembocar, em certos casos, em certos casos, em um
"comunismo de amor fraterno".
Se fosse preciso resumir a ideia central do cristianismo da
libertação em uma única fórmula, se poderia referir à expressão consagrada pela
Conferência Episcopal Latino-Americana de Puebla (1979): "opção
preferencial pelos pobres". Qual é a novidade? A Igreja não esteve sempre
atenta caritativamente ao sofrimento dos pobres? A diferença – capital – é que,
para o cristianismo da libertação, os pobres não são mais percebidos como
simples objetos (de ajuda, de compaixão, de caridade), mas como os sujeitos da
sua história, os atores da sua libertação.
O papel dos cristãos socialmente engajados é de participar
nessa longa marcha dos oprimidos rumo à Terra prometida, a liberdade,
dando-lhes a sua contribuição à sua auto-organização e autoemancipação social.
A outra diferença com a posição caridosa e a tradição de assistência da Igreja
– bem representada pelo novo papa argentino – foi formulada há anos pelo
cardeal brasileiro Dom Helder Câmara: "Quando dou comida aos pobres, me
chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de
comunista...".
O principal
adversário da ditadura
Ao longo dos anos 1960 e 1970, regimes militares se
impuseram em muitos países da América Latina: Brasil, Chile, Argentina etc. Os
militantes do cristianismo da libertação participaram ativamente da resistência
a essas ditaduras e contribuíram muito com o seu declínio a partir dos anos
1980. Foram um fator importante, e às vezes até decisivo, da democratização
desses países. No Brasil, ao longo dos anos 1970, a Igreja dos pobres apareceu,
diante dos olhos da sociedade civil e dos próprios militares, como o principal
adversário da ditadura, um inimigo mais poderoso (e radical) do que a oposição
parlamentar tolerada (e dócil).
Ao contrário do caso brasileiro, na Argentina, a Igreja, historicamente
próxima do autoritarismo do Exército, apoiou majoritariamente a atroz ditadura
militar responsável, ao longo dos anos, de 1976 a 1983, por 30 mil mortos ou
"desaparecidos".
Muitos cristãos, membros do clero ou leigos, pagaram com a
vida pelo seu engajamento na resistência aos regimes autoritários na América
Latina, ou simplesmente pela sua denúncia das torturas, dos assassinatos e das
violações aos direitos humanos. Isso aconteceu em El Salvador com o arcebispo
Oscar Romero, morto por paramilitares em março de 1980, e com Ignacio Ellacuría
e seus cinco colegas jesuítas da Universidade Centro-Americana de El Salvador,
assassinados em novembro de 1989 pelo Exército.
O Vaticano condenou em 1985, mediante a Congregação para a
Doutrina da Fé (cujo prefeito era o cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento
XVI), a teologia da libertação como uma heresia "ainda mais perigosa por
estar perto da Verdade"... Para o Vaticano, a regra continua sendo: Roma
locuta, causa finita (Roma falou, o caso está encerrado).
Mas os teólogos da libertação continuaram, cada um do seu
modo, defendendo a sua interpretação do cristianismo. Alguns, como Leonardo
Boff, preferiram deixar a Igreja para manter a sua liberdade de expressão;
outros, como Gustavo Gutiérrez, evitam os conflitos intraeclesiásticos, sem,
porém, renunciar às suas convicções e ao seu compromisso.
Integrar os desafios
do multiculturalismo
Isso não significa que o seu pensamento não evoluiu. Ao
contrário, ela abriu novos canteiros de obras, analisando a opressão das
mulheres, das comunidades negras, dos indígenas, acolheu os desafios do
multiculturalismo e da ecologia, do pluralismo religioso e do diálogo
interconfessional.
E, para começar, submeteu à crítica, teológica e política, o
neoliberalismo, a nova forma que, na América Latina, esse sistema assumiu, aos
seus olhos intrinsecamente perverso, que é o capitalismo.
Nesse contexto, certos teólogos desenvolveram uma nova
relação com o pensamento de Marx, para criticar o capitalismo neoliberal como
uma falsa religião, fundamentada na idolatria do mercado e do deus Mammon. Para
esses teólogos, como Hugo Assmann ou Franz Hinkelammert, os novos ídolos
capitalistas que são o lucro, o dinheiro, a dívida externa, como aqueles
denunciados pelos profetas do Antigo Testamento, são Molochs que exigem
sacrifícios humanos, uma imagem usada pelo próprio Marx em O Capital. A luta do
cristianismo da libertação contra a idolatria mercantil é, aos seus olhos, um
confronto entre deuses, entre o Deus da vida e os ídolos da morte (Jon Sobrino)
ou entre o Deus de Jesus Cristo e a multiplicidade dos deuses do Olimpo
capitalista (Pablo Richard).
Novo paradigma
civilizatório
Ao longo dos últimos anos, a crítica do capitalismo está
cada vez mais associada, para os teólogos da libertação, com a problemática
ecológica. O pioneiro nesse campo foi Leonardo Boff, há muito tempo preocupado
com o ambiente, que aborda, tanto em um espírito de amor místico e franciscano
pela natureza, quanto em uma perspectiva de crítica radical do sistema
capitalista. O novo paradigma civilizatório deverá se fundamentar em uma ética
da vida e em uma solidariedade planetária.
Sem dúvida, a influência da teologia da libertação recuou em
muitos países do continente. Após a nomeação de bispos por Wojtyla (João Paulo
II) e por Ratzinger (Bento XVI), o episcopado latino-americano se tornou muito
mais conservador. Mesmo aqueles que adotam posições progressistas em nível
social compartilham as opções conservadoras do Vaticano contra o direito das
mulheres de dispor do seu próprio corpo (divórcio, contracepção, aborto).
Dito isso, em um país como o Brasil, o cristianismo da
libertação mantém uma presença importante, dentro das comunidades de base, das
pastorais populares, dos movimentos leigos ou das redes como o Fé e Política,
animado pelo teólogo dominicano Frei Betto, que reúne milhares de membros em
todo o país.
Além disso, os cristãos socialmente comprometidos são um dos
componentes mais ativos do movimento altermundista dos anos 2000, em
particular, mas não só, no Brasil, ou seja, no país que acolheu as primeiras
reuniões do Fórum Social Mundial. Um dos iniciadores do Fórum, Chico Whitaker,
membro da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
pertence a essa tendência.
É difícil prever qual será o futuro do cristianismo da
libertação na América Latina. O seu enraizamento sociorreligioso lhe permitiu
se manter, apesar da oposição ativa dos dois últimos pontífices.
Independentemente da atitude do Papa Francisco com relação a ela, é provável
que ele continue praticando obstinadamente aquele "comunismo do amor
fraterno" do qual falava Max Weber...
Fonte: Ihu
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