Essa frase, ouvida por muitas mulheres na hora do parto, é
uma das tantas caras da violência obstétrica que vitima uma em cada quatro
mulheres brasileiras. Eu fui uma delas
Eu tive meu filho em um esquema conhecido por profissionais
da área da saúde como o limbo do parto: um hospital precário, porém maquiado
para parecer mais atrativo para a classe média, que atende a muitos convênios
baratos, por isso está sempre lotado, não é gratuito, mas o atendimento lembra
o pior do SUS, porém sem os profissionais capacitados dos melhores hospitais
públicos nem a infraestrutura dos hospitais caros particulares para emergências
reais.
Durante o pré-natal, fui atendida por plantonistas sem nome. Também não
me lembro do rosto de nenhum deles. O meu nome variava conforme o número
escrito no papel de senha da fila de espera: um dia eu era 234, outro 525. Até
que, durante um desses “atendimentos”, a médica resolveu fazer um descolamento
de membrana, através de um exame doloroso de toque, para acelerar meu parto,
porque minha barriga “já estava muito grande”. Saí do consultório com muita dor
e na mesma noite, em casa, minha bolsa rompeu. Fui para o tal hospital do
convênio já em trabalho de parto.
Quando cheguei, me instalaram em uma cadeira de plástico da
recepção e informaram meus acompanhantes que eu deveria procurar outro hospital
porque aquele estava lotado. Lembro que fazia muito frio e eu estava molhada e
gelada, pois minha bolsa continuava a vazar. Fiquei muito doente por causa
disso. Minha mãe ameaçou ligar para o advogado, disse que processaria o
hospital e que eu não sairia de lá em estágio tão avançado do trabalho de
parto. Meu pai quis bater no homem da recepção. Enquanto isso, minhas
contrações aumentavam. Antes de ser finalmente internada, passei por um exame
de toque coletivo, feito por um médico e seus estudantes, para verificar minha
dilatação. “Já dá para ver o cabelo do bebê, quer ver pai?”, mostrava o médico
para seus alunos e para o pai do meu filho. Consigo me lembrar de poucas
situações em que fiquei tão constrangida na vida. Cerca de uma hora depois, me
colocaram em uma sala com várias mulheres. Quando uma gritava, a enfermeira
dizia: “pare de gritar, você está incomodando as outras mães, não faça
escândalo”. Se eu posso considerar que tive alguma sorte neste momento, foi o
de terem me esquecido no fim da sala, pois não me colocaram o soro com
ocitocina sintética que acelera o parto e aumenta as contrações, intensificando
muito a dor. Hoje eu sei que se tivessem feito, provavelmente eu teria
implorado por uma cesariana, como a grande maioria das mulheres.
Não tive direito a acompanhante. O pai do meu filho entrava
na sala de vez em quando, mas não podia ficar muito para preservar a
privacidade das outras mulheres. A moça que gritava pariu no corredor. Até que
uma enfermeira lembrou de mim e me mandou fazer força. Quando eu estava quase
dando a luz, ela gritou: “pára!” e me levou para o centro cirúrgico. Lá me
deram uma combinação de anestesia peridural com raquidiana, sem me perguntar se
eu precisava ou gostaria de ser anestesiada, me deitaram, fizeram uma
episotomia (corte na vagina) sem meu consentimento – procedimento desnecessário
na grande maioria dos casos, segundo pesquisas da medicina moderna – empurraram
a minha barriga e puxaram meu bebê em um parto “normal”. Achei que teria meu
filho nos braços, queria ver a carinha dele, mas me mostraram de longe e antes
que eu pudesse esticar a mão para tocá-lo, levaram-no para longe de mim. Já no
quarto, tentei por três vezes levantar para ir até o berçário e três vezes
desmaiei por causa da anestesia. “Descanse um pouco mãezinha”, diziam as
enfermeiras, “sossega!”. Eu não queria descansar, só estaria sossegada com meu
filho junto de mim! O fotógrafo do hospital (que eu nem sabia que estava no meu
parto) veio nos vender a primeira imagem do bebê, já limpo, vestido e penteado.
Foi assim que eu vi pela primeira vez o rostinho dele, que só chegou para mamar
cerca de 4 horas depois.
Faz exatamente nove anos que tudo isso aconteceu e hoje é
ainda mais doloroso relembrar porque descobri que o que vivi não foi uma
fatalidade, ou um pesadelo: eu, como uma a cada quatro mulheres brasileiras,
fui vítima de violência obstétrica.
Uma em cada quatro
mulheres sofre violência no parto
O conceito internacional de violência obstétrica define
qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou
puérpera (que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o
consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua
autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e
preferências. A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e
privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em
cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais
comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento
ou informação, falta de analgesia e até negligência.
Mas há outros tipos, diretos ou sutis, como explica a
obstetriz e ativista pelo parto humanizado Ana Cristina Duarte: “impedir que a
mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, tratar uma mulher em
trabalho de parto de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou
de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, tratar a
mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e
diminutivos, submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou
humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição
ginecológica com portas abertas, submeter a mulher a mais de um exame de toque,
especialmente por mais de um profissional, dar hormônios para tornar o parto
mais rápido, fazer episiotomia sem consentimento”.
“A lista é imensa e muitas nem sabem que podem chamar isso
de violência. Se você perguntar se as mulheres já passaram por ao menos uma
destas situações, provavelmente chegará a 100% dos partos no Brasil”, diz Ana
Cristina, que faz parte de um grupo cada vez maior de mulheres que,
principalmente através de blogs e redes sociais, têm lutado para denunciar a
violência obstétrica tão rotineira e banalizada nos aparelhos de saúde.
“Algumas mulheres até entendem como violência, mas a palavra
é mais associada a violência urbana, física, sexual”, diz a psicóloga Janaína
Marques de Aguiar, autora da tese “Violência institucional em maternidades
públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero”, que
entrevistou puérperas (com até três meses de parto) e profissionais de
maternidades públicas de São Paulo. “Quando a gente fala em violência na saúde,
isso fica difícil de ser visualizado. Porque há um senso comum de que as
mulheres podem ser maltratadas, principalmente em maternidades públicas”, acredita.
E dá alguns exemplos: “Duas profissionais relataram, uma médica e uma
enfermeira, que um colega na hora de fazer um exame de toque em uma paciente,
fazia brincadeiras como ‘duvido que você reclame do seu marido’ e ‘não está
gostoso?”
Em março de 2012, um grupo de blogueiras colocou no ar um
teste de violência obstétrica, que foi respondido de forma voluntária por duas
mil mulheres e confirmou os resultados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo.
“Apesar de não terem valor científico, os resultados mostraram que 51% das
mulheres estava insatisfeita com seu parto e apenas 45% delas disse ter sido
esclarecida sobre os todos os procedimentos obstétricos praticados em seus
corpos”, lembra a jornalista mestre em ciências Ana Carolina Franzon, uma das
coordenadoras da pesquisa. “Nós quisemos mostrar para outras mulheres que
aquilo que elas tinham como desconforto do parto era, na verdade, a violação de
seus direitos. Hoje nós somos protagonistas das nossas vidas e quando chega no
momento do parto, perdemos a condição de sujeito”, opina Ana Carolina.
Desse teste nasceu o documentário “Violência Obstétrica – A
voz das brasileiras” (que você pode assistir no fim da matéria) com depoimentos
gravados pelas próprias mulheres sobre os mais variados tipos de humilhação e
procedimentos invasivos vividos por elas no momento do parto. Uma das
participantes diz que os profissionais fizeram comentários “sobre o cheiro de
churrasco da barriga durante a cesárea”.
Mas talvez o relato mais triste seja o da mineira Ana Paula,
que após planejar um parto natural, foi ao hospital com uma complicação e, sem
qualquer explicação por parte dos profissionais, foi anestesiada, amarrada na
cama, mesmo sob protestos, submetida a episiotomia, separada da filha, largada
por várias horas em uma sala sem o marido e sem informações. Seu bebê não
resistiu e faleceu por causas obscuras. Ana Paula denunciou o falecimento de
sua filha ao Ministério da Saúde, pedindo uma investigação, e, em paralelo,
denunciou a equipe, convênio médico e o hospital que a atenderam ao CRM de Belo
Horizonte. Diante do silêncio do Conselho, que abriu uma sindicância em
novembro de 2012 e não forneceu mais informações, a advogada de Ana Paula,
Gabriella Sallit, entrou com uma ação na justiça.
“O processo da Ana Paula foi o primeiro que trata a
violência obstétrica nestes termos. Não é um processo contra erro médico, ou
pelo fim de uma conduta médica. É sobre o procedimento, a violência no tratar.
É um marco porque é o primeiro no Brasil”, explica a advogada. “É uma ação de
indenização por dano moral que lida com atos notoriamente reconhecidos como
violência obstétrica. Tudo isso tem respaldo na nossa legislação”, diz.
Para prevenir a violência no parto, infelizmente comum, a
advogada aconselha que as mulheres escrevam uma carta de intenções com os
procedimentos que aceitam e não aceitam durante a internação. “Faça a equipe
assinar assim que chegar ao hospital. E antes de sair do hospital, requisite
seu prontuário e o do bebê. É um direito que muitas mulheres desconhecem. Isso
é mais importante do que a mala da maternidade, fraldas e roupas. Estamos
falando de algo que pode te marcar para o resto da vida”, orienta.
Direitos legais
desrespeitados nas maternidades
Além do nosso código penal e dos vários tratados
internacionais que regulam de forma geral os direitos humanos e direitos das
mulheres em especial, a portaria 569 de 2000 do Ministério da Saúde, que
institui o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento do SUS, diz: “toda
gestante tem direito a acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da
gestação, parto e puerpério” e “toda gestante tem direito à assistência ao
parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura”. A
a Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005, garante às parturientes o direito à
presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto
imediato nos hospitais do SUS. Mas dificilmente essas normas são seguidas, como
explica a pesquisadora Simone Diniz (leia entrevista na íntegra), formada em
Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo, que participou da pesquisa
“Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, grande e
minucioso panorama realizado pela Fiocruz em parceria com o Ministério da Saúde
– ainda sem data para lançamento.
“O parto é muito medicalizado e muito marcado pela
hierarquia social da mulher no Brasil. Para algumas questões de saúde, como
para quem tem HIV, precisa de um antiretroviral ou de uma cirurgia, você tem o
mesmo procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado
como aceitável. Para o parto não. A assistência ao parto para as mulheres de
menor renda e escolaridade, e para aquelas que o IBGE chama de pardas e negras,
é muito diferente das mulheres escolarizadas, que estão no setor privado,
pagantes. Normalmente as mulheres de renda mais baixa têm uma assistência que
não dá nenhum direito a escolha sobre procedimentos. Os serviços atendem essas
mulheres para um parto vaginal com várias intervenções que não correspondem ao padrão
ouro da assistência, como ficar sem acompanhante e serem submetidas a
procedimentos invasivos que não deveriam ser usados a não ser com extrema
cautela, como o descolamento das membranas, que é muito agressivo, doloroso,
aumenta o risco de lesão de colo e infecções, a ruptura da bolsa, como
aceleração do parto. É uma ideia de produtividade que parte do pressuposto que
o parto é um evento desagradável, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que
portanto aquilo deve ser encurtado. No setor público é pior, mas é preciso
levar em conta que no setor privado, 70% das mulheres nem entra em trabalho de
parto, vão direto para cesarianas eletivas”, explica a pesquisadora.
Cesariana
desnecessária: mais uma violência contra a mulher
A imposição de uma cesariana desnecessária também tem sido
vista pelos pesquisadores e pelas próprias mulheres como uma forma de violência
porque, além de um procedimento invasivo, oferece mais riscos a curto e longo
prazo para a mãe e o bebê. “Hoje nós sabemos que existe muito mais segurança
nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. Não tenha dúvidas de que elas são
um recurso importante que salva vidas quando realmente necessárias. Mas no
parto fisiológico o bebê tem menor chance de ir para uma UTI neonatal, de ter
problemas respiratórios, metabólicos, infecções, tem o melhor prognóstico de
todos”, explica Simone Diniz. “O bebê nasce estéril e a medida que ele entra em
contato com as bactérias da vagina durante o parto, é colonizado por elas e
isso fará com que ele desenvolva um sistema imune muito mais saudável do que se
nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse é
conhecimento recente, mas já saíram pesquisas sobre risco diferenciado de asma,
diabete, obesidade e uma série de doenças crônicas”, relata.
Apesar do índice máximo de cesarianas aconselhado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) ser o de 15%, o Brasil lidera o ranking na
América Latina, segundo a Unicef, com mais de 50% de nascimentos através da
cirurgia. O índice sobe consideravelmente quando se olha apenas para os
hospitais particulares. Em 2010, 81,83% das crianças que nasceram via convênios
médicos, vieram ao mundo por cesarianas. Em 2011, o número aumentou para 83,8%,
segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Há ainda hospitais
particulares como o Santa Joana, em São Paulo, que no primeiro trimestre de
2009 apresentou taxa de 93,18% cesarianas, segundo o Sistema de Informações de
Nascidos Vivos (SINASC). Questionada a respeito, a ANS declarou por meio de
assessoria de imprensa que “vem trabalhando, desde 2005, para a diminuição do
número de partos cesáreos, mas o problema é bastante complexo e multifatorial,
envolvendo a organização do trabalho do médico, dos hospitais e a própria
cultura e informação da população brasileira”. Disse ainda que “não existe
limite para a realização de partos cesáreos” e que isso depende da indicação
médica.
No filme “O Renascimento do Parto”, ainda sem data de
estreia no Brasil, mas que já possui uma versão resumida no Youtube, o pediatra
Ricardo Chaves questiona: “Eu quero saber o seguinte: nós combinamos com o bebê
que ele vai nascer sexta-feira, quatro da tarde? Ele respondeu que tem condição
de nascer?”
Nos consultórios, a
prática é assustar a mulher
Os profissionais têm opiniões diferentes a respeito do
grande volume de cesarianas. Para a médica obstetra representante do Conselho
Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Silvana Morandini, “a medicina
defensiva está indicando mais a cesárea. Se o bebê tem circular de cordão no
pescoço, se é um feto muito grande, se tem placenta marginal, qualquer
diagnóstico que possa dar problema, aumenta a prescrição”. Ela chama isso de
“conduta defensiva”, por “medo de dar errado”. Silvana também acredita que “o grande
número de cesáreas é cultural. A mulher brasileira tem a ideia de que com o
parto vaginal vai ficar com o períneo mais flácido”.
Já o obstetra especialista em parto humanizado Jorge Kuhn
acredita que “a grande culpada pelo boom de cesarianas foi a mudança do modelo
obstétrico. Antigamente o modelo era centrado na obstetriz. O médico era
chamado nos casos de complicação. A transformação do parto domiciliar em
hospitalar, na década de 1970, aumentou a incidência de cesarianas. É lógico
que esse índice também cresceu por outras razões, como gravidez múltipla, idade
avançada e riscos reais ”. Ele explica que outro fator importante foi a entrada
dos convênios médicos nos planos de parto. “Eles perceberam que para vender
planos de saúde, um bom argumento era o de que a mulher faria o pré-natal com o
mesmo médico que faria o parto, e isso é a maior cilada. Porque o médico
prefere ficar no consultório a sair para ganhar tão pouco. Dizem que a mulher
escolhe a cesariana, mas o parto normal é desconstruído no consultório consulta
a consulta. Frases como ‘nossa, mas esse bebê está crescendo muito’ dão a
conotação subliminar de que a mulher não poderá ter parto normal. Circular de
cordão, bacia estreita, feto grande, feto pequeno, pouco líquido, muito
líquido, pressão arterial alta, diabetes, nada disso é indicação de cesariana.
Foi se criando o conceito de que o corpo da mulher é defeituoso e requer
assistência. Que ela precisa ser cortada em cima ou embaixo para poder parir”,
descreve.
Um médico obstetra com 15 anos de formação, que atende a
convênios e preferiu ter sua identidade preservada, confirma a fala de Jorge
Kuhn. Ele explica que com o valor irrisório pago pelos convênios (cerca de 300
reais por parto normal ou cesárea) não compensa para o profissional largar o
consultório cheio ou sair de casa de madrugada para passar 10, 12 horas
acompanhando um parto normal. “Eu digo para as minhas pacientes logo nas
primeiras consultas que se elas optarem por marcar uma cesariana eu farei, mas
se optarem por um parto normal vão ter com plantonista”. Para ele, apesar das
pesquisas e das indicações internacionais como a da OMS, a cesariana é a melhor
opção para a mãe e o bebê. “No hospital particular, eu acho que acontece o real
parto humanizado. Porque tem uma assistência muito maior. Com 5 para 6 cm de
dilatação a gente instala a anestesia, aí a paciente já não sente dor, faz a
tricotomia (raspagem dos pêlos), porque é mais higiênico, rompe a bolsa,
acelera o trabalho de parto. Minha filha nasceu por cesárea, minhas sobrinhas
também. Se eu achasse tão bom o parto normal, teria feito. Claro que se o
médico marcar a cirurgia para muito antes, o bebê pode nascer prematuro, com
problemas respiratórios, pode complicar sua saúde a longo prazo. Mas no parto
normal existe mais risco de asfixia e paralisia cerebral. Se você for
perguntar, 90% dos filhos de médicos nascem por cesárea”, opina.
Jorge Kuhn, que foi recentemente denunciado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro e responde a processo no CREMESP por ter
declarado em um programa de televisão ser favorável ao parto domiciliar para
gestantes de baixo risco, lembra que para o hospital também é muito mais
lucrativo e conveniente que se façam cesarianas. “Eles sabem quais são os
recursos humanos e materiais que têm em vésperas de feriados, principalmente os
mais prolongados, e têm os agendamentos da sala certinhos. Fazer uma cesariana
em trabalho de parto resulta em maior custo para o hospital. Quando a mulher
ficou tantas horas em trabalho de parto e passa para uma cesárea, isso é um
problema. Uma vez eu perguntei para um gestor quanto eu custava, fazendo mais
partos normais. Ele disse que o problema é quando meus partos normais viravam
cesáreas, porque já tinha gasto tempo e material naquele parto e gastava com a
cirurgia. Mas tanto faz em termos de custo. O agendamento que facilita. Nenhum
hospital no Brasil tem condições de atender partos normais como a OMS aceita,
com no máximo 15% de cesarianas. Não têm estrutura física para isso, é uma
fórmula difícil de fechar. Mas basicamente é uma tríade: comodidade dos médicos
e hospitais, indiferença das mulheres e mercado. Sempre é uma questão de
dinheiro”, disse.
Ana Cristina acrescenta que quanto mais complicado for o
parto, mais lucro o hospital terá. “Anestesia, cirurgia, drogas, antibióticos,
compressas, equipamento, equipe de enfermagem. Se rolar uma UTI neonatal por
dois dias, já vai mais uma boa grana, quase a de um parto. E esses equipamentos
todos da UTI estão pagos, precisam ser usados para gerar lucro. A UTI custa
muito caro. Então qual é o problema? É que nós estamos colocando bebês para
nascer em uma estrutura muito cara, que precisa se pagar”, pondera.
Para incrementar, alguns hospitais particulares oferecem
alguns “extras” a seus pacientes, conta Simone Diniz. “Existe uma coisa chamada
‘janela de plasma’, que fica no centro cirúrgico e dá para um pequeno auditório
anexo. É uma janela opaca que fica transparente quando o bebê nasce e o médico
pode apresentá-lo à plateia. Algumas famílias fazem festas, com serviço de
catering, etc. Isso não pode acontecer em um parto normal, certo? Precisa ser
agendado com antecedência. Aí você vê como hoje o parto fisiológico é
subversivo, porque subverte toda essa lógica hospitalocêntrica”, explica.
Alternativa subversiva
O modelo alternativo, hoje conhecido como parto humanizado,
se baseia em exemplos usados há muitos anos em países como Holanda e Alemanha,
e é centrado na autonomia da mulher, pensando o parto como algo fisiológico,
natural, com pouca ou nenhuma intervenção médica. O direito da mulher sobre o
seu próprio parto também é uma das principais bandeiras de um movimento
feminino que cresce a cada dia no Brasil, principalmente através de blogs e
articulações por redes sociais.
No filme inglês Freedom For Birth, que conta a história da
parteira húngara Ágnes Geréb, processada criminalmente e condenada a dois anos
de prisão porque, até 2011, não havia regulamentação para os profissionais que
assistiam partos domiciliares, a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd
critica o modelo atual, em que o corpo da mulher é tratado como uma máquina, e
o parto como um processo mecânico disfuncional, que precisa das intervenções
médicas para trazer o bebê ao mundo, porque não confia na fisiologia natural do
parto. Em seu estudo “Birth as an American rite of passage (1984)”, ela lembra
que o parto, até pouco tempo, era vivido como algo exclusivamente feminino e
privado, com as mulheres dando a luz em suas casas amparadas por outras
mulheres: parteiras, mães, amigas mais experientes. A ideia de “mulher
empoderada”, que escolhe onde, como e com quem quer parir, ou no mínimo opina a
quais procedimentos quer ou não se submeter é o centro deste pensamento.
O parto humanizado pode acontecer em casas de parto, em casa
(somente para gestantes de baixo risco, que são a maioria) e até em salas
especiais que muitos hospitais estão criando com esta finalidade. A equipe
geralmente é reduzida, com uma enfermeira obstetra (ou médico que siga esta
filosofia), um neonatologista e uma doula – profissional treinada a dar suporte
físico e emocional à mulher desde o pré-natal. Na hora do parto, a doula
orienta sobre exercícios e posições, respiração e fornece um arsenal de
recursos não farmacológicos para alívio da dor, como massagens, bolas, óleos,
exercícios e banhos. A mulher pode comer, tomar água, andar e ficar na posição
que se sentir mais a vontade para parir. Cada vez mais mulheres têm optado por
este modelo, mas nem todas têm acesso. Um parto domiciliar custa de 5 a 10 mil
reais (somando os honorários de todos os profissionais). No hospital, além da
equipe, é preciso pagar a internação em pacotes de parto, que podem custar em
média mais 8 mil reais.
Apesar de em 2011 o governo federal ter lançado a Rede
Cegonha, que tem como objetivo humanizar o parto e criar casas de parto normal
integradas ao SUS, ainda há poucas opções e somente em grandes centros urbanos
– até 2014, segundo o Ministério da Saúde, serão 200 em todo o país. Com pouca
ou nenhuma divulgação, sobram leitos em muitas delas. A Casa de Parto de
Sapopemba em São Paulo, por exemplo, referência no atendimento a gestantes de
baixo risco, não só não é divulgada, como não se consegue entrevistar os
profissionais que atendem na Casa. Alertada por colegas jornalistas, eu tentei
entrar em contato através da assessoria de imprensa da prefeitura, mas não
obtive resposta, apesar da insistência. Durante a reportagem, conheci uma
enfermeira obstétrica que foi demitida por ter concedido entrevista a um jornal
sem autorização. Uma reserva que faz lembrar o que acontece com os programas de
redução de danos – cala-se a respeito para evitar polêmica, ou a adesão
excessiva em relação às dimensões previstas por essas políticas públicas.
Simone Diniz conta que a própria mulher que resolve esperar
o trabalho de parto é hostilizada. “As pesquisas indicam que entrar em trabalho
de parto aumenta muito o risco de você sofrer violência. É muito interessante o
grau de hostilização da mulher em trabalho de parto. No setor privado, acham o
fim da picada que aquela mulher queira dar trabalho para eles. Uma mulher
contou que, como insistiu muito com o médico que queria parto normal, ele
indicou um psicólogo dizendo que ela tinha traços masoquistas!”, relata. O
Conselho Federal de Medicina é totalmente contra o parto domiciliar. Assim como
os conselhos regionais que quiseram caçar o registro de Jorge Kuhn. O Conselho
de Enfermagem (COFEN) também tentou por muito tempo fechar o novo curso de
obstetrícia da USP Leste, mas desde dezembro de 2012, o curso ganhou, através
de liminar do Ministério Público, não só o direito ao funcionamento como ao
registro específico no COFEN.
Essa “caça às bruxas do parto humanizado” não é
exclusividade brasileira – vide Àgner Gereb. Jorge Kuhn conta que, quando
chegou ao Brasil após uma temporada aprendendo sobre parto humanizado na
Alemanha, foi procurar os gestores de grandes hospitais para implantar essas
técnicas de redução de cesarianas, mas foi recebido com declarações como “por
mim você pode cortar a mulher em quatro desde que me entregue um bebê bom”.
Ainda assim, o obstetra é otimista: “O filósofo Schopenhauer dizia que toda
verdade passa por três estágios: no primeiro, ela é ridicularizada. No segundo,
é rejeitada com violência. No terceiro, é aceita como evidente por si própria.
Estamos no segundo estágio”.
Outra alternativa bonita para quem procura por um parto
“empoderado” (no sentido de dar poder à mulher sobre o parto) é a Casa Ângela,
em São Paulo. Criada pela Associação Comunitária Monte Azul, a Casa de Parto,
instalada na periferia da zona sul da cidade, se mantém com financiamentos de
parceiros nacionais e internacionais e, desde o começo de 2012, faz uma média
de 10 partos por mês, e acompanha mais de 250 mães e bebês. O nome homenageia a
parteira alemã Ângela Gehrke, que nas décadas de 1980 e 1990, atendeu a mais de
1.500 mulheres da favela Monte Azul e foi referência de parto humanizado no
Brasil. Ângela morreu de um câncer em 2001, mas o trabalho com a comunidade foi
retomado alguns anos depois.
A casa é linda, iluminada, arejada e no dia que visitei, um
cheiro de bolo assando perfumava o ambiente. Nada ali lembrava o ambiente
hospitalar. Anke Riedel, obstetra coordenadora do projeto, me conta que, por
causa da grande procura de mulheres de outras regiões e até outras cidades, a
casa criou um plano de sobrevivência, no qual cobra um pequeno valor para quem
não é da comunidade. O pacote padrão, que inclui o pré-natal, a triagem para
fatores de risco no parto (as regras são rígidas e somente as gestantes que não
apresentam riscos podem ser atendidas na casa), o parto e o acompanhamento do
puerpério e do bebê por um pediatra, custa 3.500 reais, que pode ser negociado
conforme as condições financeiras do casal. “Como não recebemos qualquer ajuda
do governo, essa foi a forma que encontramos de manter a casa e poder atender
às gestantes, além do apoio dos parceiros”, relata. Na equipe, obstetrizes
atendem às gestantes e, em casos de urgência, a casa possui equipamento e
ambulância próprios para remoções para hospitais próximos. Segundo Anke,
algumas vezes estas remoções acontecem, mas nunca houve uma de urgência.
Fui convidada a conhecer Aline, de 26 anos, e seu marido
Marcos, da mesma idade, moradores da comunidade que tiveram seu bebê na casa na
noite anterior. Quando entrei no quarto, a primeira surpresa. Nada de maca ou
soro. Apenas um casal deitado em uma cama com o bebê nos braços, com luz baixa
e largos sorrisos no rosto. Aline me mostrou a pequena Sofia, que veio ao mundo
sem qualquer intervenção médica ou farmacológica. Ela conta que o bebê nasceu
na banheira, à luz de velas e música ambiente, com o marido fazendo massagem e
ajudando nas posições. Que se apaixonou pela Casa assim que conheceu a proposta
e, que durante o pré-natal, ela foi bem orientada e tratada pelo nome, ao
contrário do atendimento no posto de saúde em que era uma “mãezinha”.
Um nó aperta minha garganta, é impossível não fazer
comparações. Marcos diz que estava orgulhoso da mulher, que mais parecia uma
leoa poderosa no parto. Compara ao que já tinha visto na televisão ou nas
novelas: “Aquelas mulheres gritando, deitadas, aquele desespero. Nada disso
aconteceu. Teve hora que a enfermeira abraçava, dava beijo na testa dela, esse
afeto fez diferença. No hospital, você fica vendo seu parto acontecer”, afirma.
Flashes do meu parto não param de vir à mente. Sou feliz por Aline e Marcos. E
muito revoltada por mim mesma. Vendo e ouvindo essas histórias de amor,
assistindo a vídeos de partos humanizados, dignos, nos quais as mulheres foram
protagonistas do nascimento dos seus filhos, só posso chegar a uma conclusão:
violaram meu momento. Roubaram meu parto de mim.
Depois de um parto traumático e extremamente violento e um
segundo humanizado, empoderado e em casa, Isabella Rusconi e Carlos Pedro
Sant’Ana criaram o Mapa da Violência Obstétrica. A ferramenta é inédita no
Brasil e permite ao internauta denunciar onde e quais tipos de violência
obstétrica sofreu. “Acredito que um dos melhores modos de ter uma leitura real
de um problema é mapeando situações, dando uma leitura gráfica do problema para
facilitar a sua compreensão” explica Carlos. “Embora seja um problema invisível
para muita gente —principalmente para os homens— e silenciado por muitas
mulheres —por vergonha ou por desconhecimento de que foi vítima— é necessário
mostrar que é uma realidade agressiva no Brasil e mostrar que existem alternativas,
que é necessário criar um novo sentido de respeito humano e mudar o modo como
lidamos com o parto. Talvez mostrando relatos de vítimas da violência
obstétrica, possamos chegar a outras mulheres que passaram por essa violência
sem o saber ou sem o reconhecer, e as arrancar de sua Síndrome de Estocolmo”…
Fonte: Brasil de Fato
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