"As mulheres têm responsabilidade na maneira como os
homens se comportam. Precisamos mudar alguns maus hábitos nossos".
A americana Stephanie Coontz era apenas uma universitária em
1964, quando ouvia reclamações maternas durante suas ligações semanais para
casa. Sua mãe acabara de ler um livro que explicava as razões por se sentir
“sozinha, entediada e insegura” enquanto criava as filhas e cuidava do marido.
Hoje, 50 anos depois, Stephanie sabe que presenciou um momento histórico. O
livro que sua mãe lera, A mística feminina, da americana Betty Friedan
(1921-2006) desencadeou o movimento feminista moderno. Fez com que milhares de
donas de casa percebessem que a razão da infelicidade era o descompasso entre
suas aspirações de autonomia e o ideal de feminilidade da época: uma mulher
passiva e dependente. Stephanie, hoje com 68 anos, é reflexo dessa mudança.
Tornou-se, ela própria, uma especialista em questões de gênero, professora do
Evergreen State College, no Estado de Washington, e autora do livro A strange
stirring (algo como Tempos agitados, sem edição no Brasil), em que analisa as
conquistas do movimento feminista.ÉPOCA – No Brasil, há uma legislação
trabalhista bem estruturada. Nem por isso deixamos de ver mulheres abandonando
suas profissões e homens dividindo igualmente as tarefas domésticas.
ÉPOCA – Superamos a situação de que sua mãe se queixava?
Stephanie Coontz – Muito dela foi superado. Pesquisas ao
redor do mundo mostram que a maioria das pessoas não acredita que a fonte de
realização pessoal das mulheres seja única e exclusivamente cuidar da casa e da
família. Mas há outras místicas que ainda são um empecilho para conquistarmos
totalmente a igualdade de gêneros. Uma delas é a mística masculina, a ideia de
que o homem deve ser o provedor da casa, ter poder e manifestar força física e
emocional. Fizemos mais progresso em combater a mística feminina que a
masculina. Hoje, as jovens se sentem livres para ser fortes e inteligentes,
características antes atribuídas apenas ao sexo masculino. Mas os meninos
sofrem bullying na infância se participam de atividades ou se expressam emoções
tradicionalmente consideradas femininas. Os garotos policiam uns aos outros
para não agir “como garotas”. Nossas atitudes a respeito da masculinidade não
mudaram em nada.
ÉPOCA – Por quê?
Stephanie – Os homens tiveram menos incentivo que as
mulheres para buscar uma transformação. Mas eles estão mudando. De maneira mais
lenta, mas estão. Vemos cada vez mais homens pedindo políticas corporativas que
permitam passar mais tempo com a família e ajudar na criação dos filhos e nas
tarefas domésticas. Eles estão genuinamente interessados em ter mulheres que
sejam semelhantes a eles, não submissas.
ÉPOCA – Qual é a contribuição feminina para essa mudança?
Stephanie – As mulheres têm responsabilidade na maneira como
os homens se comportam. Precisamos mudar alguns maus hábitos nossos. Queremos
dividir as tarefas de casa, mas reivindicamos o título de especialistas e
criticamos o que eles fazem. Ainda esperamos que os homens sejam poderosos e
tenham dinheiro. As mulheres precisam ajudar os homens a descobrir o que já
entendemos: você será uma pessoa mais feliz se não viver para cumprir os ideais
impostos por estereótipos de gênero. Cabe a nós ajudá-los a entender que não
precisam bancar os machos tradicionais para que sejam amados por nós. Seremos
mais felizes com homens iguais, não superiores às mulheres.
ÉPOCA – A visão estereotipada das mulheres sobre os homens
afeta a vida delas?
Stephanie – Acredito que muitas desistam da carreira depois
que têm filhos, porque não confiam no marido para ajudar a cuidar das crianças.
Elas acham que ele não dará conta da tarefa. Parte da solução para esse
problema é as mulheres mudarem a maneira de pensar. Também precisamos de
reformas estruturais. Os governos e as empresas precisam permitir que os homens
desfrutem licença-paternidade. Ao passar mais tempo em casa, eles ficarão mais
hábeis com as tarefas domésticas, e as mulheres perceberão que podem confiar
neles e dividir a responsabilidade de cuidar da família. A mudança social
ajudará na mudança de atitude individual.
ÉPOCA – Olhando para as conquistas conseguidas após a
publicação do livro de Betty Friedan, como podemos usar o que aprendemos no
passado para conseguir as mudanças que faltam?
Stephanie – As feministas dos anos 1960 mudaram a atitude
das pessoas. Mostraram que o problema não era das mulheres. Betty Friedan e o
movimento feminista mostraram que as mulheres estavam infelizes, tomando
tranquilizantes por causa de um problema da sociedade, que não as deixava usar
seus talentos. Hoje, estamos numa situação semelhante. Homens e mulheres brigam
entre si, culpando uns aos outros por não se ajudar ou por ser cobrados demais.
Precisamos parar de ver essa disputa como um problema individual e encará-lo
como social. Não podemos mais tratar assuntos de família como se fossem
assuntos de mulher. Eles são um tema de direitos humanos.
ÉPOCA – Se antes eram só as mulheres que tomavam tranquilizantes,
hoje também vemos homens vivendo à base de antidepressivos. É um sinal de que
hoje eles é que estão à beira de exigir uma revolução de gênero?
Stephanie – Espero que sim, que homens e mulheres joguem
fora os remédios e comecem a pedir uma vida que não os leve à loucura. Há 100
anos, o grande problema da classe trabalhadora ao redor do mundo era fazer do
ambiente de trabalho um lugar seguro. Hoje, o maior desafio é fazer do trabalho
um lugar seguro para a vida em família. Precisamos de reformas: licença-paternidade,
limites de horas trabalhadas por semana, vagas em creches de boa qualidade para
deixar as crianças e auxílio financeiro para que as pessoas possam pagá-las.
Nos Estados Unidos, nem a licença-maternidade é obrigatória em alguns tipos de
empresa.
ÉPOCA – No Brasil, há uma legislação trabalhista bem
estruturada. Nem por isso deixamos de ver mulheres abandonando suas profissões
e homens dividindo igualmente as tarefas domésticas.
Stephanie – Atualmente, homens e mulheres são regidos por
outra mística: a carreira. Acreditamos na ideia de que o sucesso profissional
requer que as pessoas comprometam todo o seu tempo e energia no trabalho. Para
isso, devem delegar demais responsabilidades, como cuidar da família, para
outra pessoa. O resultado dessa crença é que poucas empresas oferecem às
mulheres a flexibilidade de que elas precisam no dia a dia. Os homens, no
minuto em que pensam em pedir uma política de trabalho mais amigável à vida em
família, são vistos com preconceito no ambiente de trabalho. Qualquer pessoa
que se engaje em cuidar de alguém enfrenta essa discriminação. Isso tem de
mudar. Todos temos necessidade de ter laços de família próximos, de poder
cuidar de alguém. Também temos o direito de usar nossos talentos, de fazer um
trabalho significativo, de desfrutar laços sociais fora de casa. Esse é o
verdadeiro objetivo do movimento feminista que, na verdade, é um movimento
humanista. Ninguém, seja homem ou mulher, deve ter de escolher entre trabalho e
família.
ÉPOCA – Mas as mulheres ainda são forçadas a escolher, não?
Stephanie – Há uma certa sensação de que a revolução pela
igualdade de gêneros empacou nas últimas décadas. Descobrimos que, no fim dos
anos 1990, houve um pequeno aumento das pessoas que voltaram a acreditar que
talvez seja melhor um dos membros da família se especializar nos cuidados com a
casa, e outro, na carreira. Entre 1997 e 2007, as mães que trabalhavam em
período integral, mas que diziam querer trabalhar meio período, aumentaram de
48% para 60%. Não achamos que isso aconteceu porque as mulheres mudaram de
ideia sobre o que querem. Na verdade, elas têm tentado conciliar carreira e
família, mas não conseguem por causa de barreiras que parecem intransponíveis,
como a falta de flexibilidade das empresas e de locais adequados para deixar as
crianças. É como se elas tivessem deparado com uma muralha.
ÉPOCA – Qual a consequência dessa escolha?
Stephanie – Culpa. A maioria das mulheres que são mães em
tempo integral não quis desistir de todas as suas atividades fora de casa. E a
maioria das mulheres que trabalham fora de casa gostaria de ter mais tempo para
a família. Acabamos nos envergonhando de nossa escolha. Isso leva a uma
necessidade muito humana de justificá-la, de dizer “a minha escolha é a certa”.
Por isso, há uma guerra entre os dois tipos de mãe: as que trabalham fora e as
que se dedicam aos filhos, como se os valores dos dois grupos fossem
incompatíveis. Nesse campo, a pressão hoje é ainda maior do que nos tempos de
Betty Friedan. No passado, a mística da dona de casa dizia que a realização das
mulheres viria das conquistas do marido. Hoje, surgiu uma mística da
maternidade. Ela diz que a realização virá do sucesso dos filhos. Por isso, a
mãe precisa transformar todos os momentos com as crianças numa experiência de aprendizado,
para prepará-las para o futuro da melhor maneira possível. Nunca é demais o que
você pode fazer por seu filho. Quer dizer: você nunca está fazendo o
suficiente.
ÉPOCA – Não é estranho que o pós-feminismo tenha dado espaço
ao surgimento de uma mística tão contrária a seus ideais?
Stephanie – A sociedade de consumo tornou-se cada vez mais
competitiva. Com o aumento da insegurança econômica, desenvolvemos uma cultura
que valoriza os ganhos, algo que afeta homens e mulheres. Por isso, temos de ir
além da ideia de que tudo está relacionado ao gênero a que você pertence. O
feminismo do século XXI é sobre defender pessoas, não gêneros.
Revista Época
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