A autora de Salve Jorge está esculachando a favela, como
diria uma carioca atenta. Poxa, é uma moçada jovem que não trabalha, não estuda
e só tem quatro ou cinco tipos de ações: batem perna, batem boca e gritam,
postam coisas na internet, tomam sol na laje e dançam, do funk ao pagode. De
quebra, fecham com o pessoal do movimento e planejam subir na vida arrumando
marido rico.
Por Cidinha da Silva
O tal do pescoço (Nando Cunha) é um personagem caricato que
a mim incomoda muito. É a reificação de um modelo de homem negro vagabundo,
aproveitador, desonesto. Sim, eles também existem, não nego, mas lamento que
não haja um contraponto de homem negro honesto, bonitão, subordinado a uma
mulher no trabalho, como os auxiliares da delegada Helô (Giovanna Antonelli).
Maria Vanúbia é outra personagem mega estereotipada. Uma
pena, Roberta Rodrigues vinha fazendo bons papéis na TV. Vão dizer que a
personagem é boa. Sim, deve ser. O problema é que sua riqueza não é explorada.
Em mim fica a sensação daquele humor apelativo em que à medida que o público
responde positivamente, os trejeitos da personagem são exacerbados.
Não vi trabalhos anteriores de Lucy Ramos, mas a
interpretação de Sheila é naturalizada demais, como também o é a da
protagonista Morena (Nanda Costa), bem como D. Diva (Neusa Borges) e o neto
(Mussunzinho). Sinto falta de mais interpretação. Algo que só vejo nos
trabalhos dramaturgicamente mais convincentes de Lucimar (Dira Paes), Deuzuite
(Susana Badin) e de Clóvis (Walter Breda), marido de D. Diva.
Sou habitué do teleférico do Alemão e lá de cima vejo tanta
coisa interessante além das moças tomando banho de sol na laje em trajes
sumários: tem as crianças brincando nas numerosas piscinas de plástico,
churrascos animados, gente andando de uniforme escolar pelas ruas e tem a
criativa pintura dos barracos. Adoro uma casa que tem Bob Marley fumando um
charutão de marijuana, outra tem Nelson Mandela, outra, instrumentos musicais,
outra, palavras de ordem da luta negra. Tem quadra de esportes também.
Entretanto, às telespectadoras da novela não é dado ver essa
favela esteticamente negra. Tampouco a locação em terra reflete a diversidade
dos morros cariocas. A moçada jovem do folhetim pode não fazer nada de útil na
vida, tudo bem, é uma opção de quem criou a trama, mas tanta coisa acontece ao
redor daquelas moças e do rapaz: tem sempre um espaço onde funciona um curso de
pré-vestibular comunitário, a associação de bairro, uma ONG, uma creche.
A diversidade na caracterização de um espaço físico é fruto de
vontade política e compromisso com a própria diversidade, para não mencionar o
conhecimento abrangente de um ambiente, pré-requisito para quem cria o cenário.
Na primeira vez que liguei um aparelho de TV numa cidade dos
EUA assisti a um comercial surpreendente, tendo em vista minhas referências
brasileiras. Pensando bem, até hoje ainda seria. Tratava-se de uma propaganda
de shampoo para cabelos lisos estrelada por uma atriz famosa, o marido e duas
crianças, típica família branca estadunidense. O homem saca uma máquina e
começa a fotografar as crianças e a mulher brincando com um cachorro enorme. Os
cabelos de todos voam, desembaraçados e perfumados pelo shampoo (a mãe cheira o
cabelo dos filhos).
Animado, o paizão fotografa coisas do jardim, o dia ensolarado
e num dado momento, fotografa o vizinho abraçado pelo filho ao chegar da rua,
ambos negros. E por que aparecem um adulto e uma criança negra naquele anúncio
de shampoo para cabelos lisos e sem qualquer relação outra com o produto? Por
que negro é gente e faz parte daquela paisagem humana. Porque houve vontade
política ou exigência de colocá-los ali em respeito aos negros que
potencialmente não se interessarão por aquele tipo de shampoo, mas, pode haver
uma versão para cabelos crespos. Porque negros assistem televisão, são
consumidores e querem se ver representados em toda parte, mesmo que
indiretamente ligados aos produtos em tela.
Quando houver empenho da autora e da telenovela em refletir
a diversidade das telespectadoras que garantem a audiência, moradoras de
favelas e de outros lugares empobrecidos será fácil, fácil de fazer. Basta
olhar em volta e pescar elementos múltiplos da realidade.
Cidinha da Silva é escritora e blogueira. Autora do livro
“Oh, margem reinventa os rios”, dentre outros
Fonte: Brasil de Fato
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