É dever dos Estados atuar com a devida diligência para
prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher,
assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à
violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave
violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres.
Por Flávia Piovesan e
Silvia Pimentel
Em 30 de março, cinco homens estupraram uma turista
americana e espancaram seu namorado francês em uma van que circulava em
Copacabana. Em 16 de março, uma mulher suíça, viajando de bicicleta na região
central da Índia com o marido, foi vítima de estupro perpetrado por oito
homens. Em 10 de fevereiro, um grupo de cinco homens mascarados estuprou seis
espanholas em uma casa de praia próxima a Acapulco, no México. Em 26 de
dezembro, o estupro coletivo de uma mulher em um ônibus em Nova Délhi chocou a
comunidade internacional, gerando profunda comoção e intensos protestos -
fomentando a criação de uma comissão nacional na Índia que recebeu mais de 80
mil sugestões para fortalecer as medidas de combate à violência contra a
mulher.
A gravidade e a brutalidade do estupro rompem o silêncio da
violência epidêmica contra a mulher, realçando seu componente cultural como
expressão de relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre
homens e mulheres. Em virtude da intencionalidade do agente e do profundo
sofrimento físico, psíquico e moral causado à vítima, a jurisprudência
internacional tem equiparado o estupro à tortura.
No caso brasileiro, o Mapa da Violência 2012 publicado pelo
Instituto Sangari aponta que, de 1980 a 2010, foram assassinadas no país em
média 91 mil mulheres. A mesma pesquisa ressalta que duas em três pessoas
atendidas no SUS são mulheres vítimas de violência doméstica ou sexual.
Fruto de reivindicação do movimento de mulheres, a Convenção
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi
adotada pela ONU em 1979, sendo hoje amplamente ratificada por 187 Estados.
Embora a convenção não explicite a temática da violência contra a mulher, o
Comitê da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher adotou relevante recomendação geral sobre a matéria, afirmando que:
"A violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que seriamente
impede a mulher de exercer seus direitos e liberdades com base na igualdade com
relação ao homem".
Para a ONU, a violência contra as mulheres é um fenômeno
generalizado, que alcança um elevado número de mulheres, sem distinção de raça,
classe, religião, idade ou qualquer outra condição.
No âmbito da ONU, o secretário-geral Ban Ki-moon, em
discurso perante a Assembleia Geral no último Dia Internacional da Mulher
(8/3/2013), reiterou o compromisso das Nações Unidas no combate à atual
epidemia mundial de violência contra a mulher. Segundo a ONU, sete em dez
mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou sexual em algum
momento de sua vida (dado da Campanha Unite to end Violence against Women, lançada
pelo secretário-geral em 2008).
Nesse sentido, a Comissão sobre o Status da Mulher (CSW na
sigla em inglês) da Assembleia-Geral da ONU, aprovou, durante sua 57ª sessão,
realizada entre 4 e 15 de março de 2013, uma resolução contendo as conclusões
de seus países-membros sobre a eliminação e prevenção de todas as formas de
violência contra mulheres e meninas. A resolução demanda expressamente que os
Estados acelerem esforços para desenvolver, revisar e fortalecer políticas para
combater as causas estruturais de violência contra mulheres e meninas,
incluindo discriminação e estereótipos de gênero, desigualdades e desequilíbrio
nas relações de poder entre homens e mulheres, entre outros fatores. Reitera,
ainda, a necessidade de empreender esforços com vistas a erradicar a pobreza e
as persistentes desigualdades econômicas, sociais e legais principalmente por
meio do fortalecimento da participação econômica de mulheres e meninas, como
uma forma de diminuir o risco de violência.
De volta ao Brasil, em absoluta harmonia com os parâmetros
protetivos internacionais, a Lei Maria da Penha inaugurou uma política
integrada para prevenir, investigar, sancionar e reparar a violência contra a
mulher. A adoção da Lei Maria da Penha permitiu afastar a omissão do Estado brasileiro,
que estava a caracterizar um ilícito internacional ao violar obrigações
jurídicas internacionalmente contraídas quando da ratificação de tratados
internacionais.
É dever dos Estados atuar com a devida diligência para
prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher,
assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à
violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave
violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por
mulheres.
Nesse contexto, há urgência na adoção de medidas voltadas à
prevenção e à repressão da violência sexual do estupro, bem como à proteção de
suas vítimas. Fundamental é avançar no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência contra a Mulher, lançado em 2007, envolvendo todas as esferas
federativas com o objetivo de consolidar uma Política Nacional de Enfrentamento
à Violência contra as Mulheres, por meio da implementação de políticas públicas
integradas.
Entre os desafios ao enfrentamento da violência sexual do
estupro, destacam-se:
1) mapear a situação da violência sexual contra a mulher
(mediante a sistematização de dados, adotando ficha de notificação compulsória
de casos de violência sexual nos serviços de saúde, identificando o alcance, o
impacto e as vítimas da violência);
2) ampliar ações de conscientização e sensibilização
pública, por meio de campanha nacional contra a violência sexual contra as
mulheres e meninas e pela promoção da igualdade de gênero;
3) fortalecer serviços de denúncia (enfrentando a
impunidade, que se mostra ainda mais latente nos casos de violência sexual, que
em geral nem sequer são comunicados à polícia em virtude do medo e da vergonha
da vítima);
4) fomentar programas de treinamento e capacitação para
enfrentar a violência sexual contra as mulheres especialmente nas áreas da
segurança e da Justiça (combatendo os estereótipos de gênero baseados em
preconceito que ameaçam a credibilidade da mulher, levando ao desprezo de suas
denúncias);
5) avançar na atuação integrada e articulada de
instituições, sob a perspectiva multidisciplinar e transetorial, visando à
prevenção e repressão à violência sexual do estupro;
6) conferir proteção e assistência às vítimas; e
7) identificar e implementar as práticas exitosas para o
eficaz combate à violência sexual contra a mulher.
A adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição
e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações,
surge como imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas dessa
grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres.
Flávia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem
(Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher) e do
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do estado.
Sílvia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem,
membro da comissão de Cidadania e Reprodução e membro do Comitê da ONU sobre a
Eliminação da Discriminação Contra a Mulher.
Fonte: Estado de São Paulo
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