quarta-feira, 10 de abril de 2013

Grito da violência silenciada. A propósito do estupro da turista norteamericana


É dever dos Estados atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres.

Por Flávia Piovesan e Silvia Pimentel

Em 30 de março, cinco homens estupraram uma turista americana e espancaram seu namorado francês em uma van que circulava em Copacabana. Em 16 de março, uma mulher suíça, viajando de bicicleta na região central da Índia com o marido, foi vítima de estupro perpetrado por oito homens. Em 10 de fevereiro, um grupo de cinco homens mascarados estuprou seis espanholas em uma casa de praia próxima a Acapulco, no México. Em 26 de dezembro, o estupro coletivo de uma mulher em um ônibus em Nova Délhi chocou a comunidade internacional, gerando profunda comoção e intensos protestos - fomentando a criação de uma comissão nacional na Índia que recebeu mais de 80 mil sugestões para fortalecer as medidas de combate à violência contra a mulher.

A gravidade e a brutalidade do estupro rompem o silêncio da violência epidêmica contra a mulher, realçando seu componente cultural como expressão de relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres. Em virtude da intencionalidade do agente e do profundo sofrimento físico, psíquico e moral causado à vítima, a jurisprudência internacional tem equiparado o estupro à tortura.

No caso brasileiro, o Mapa da Violência 2012 publicado pelo Instituto Sangari aponta que, de 1980 a 2010, foram assassinadas no país em média 91 mil mulheres. A mesma pesquisa ressalta que duas em três pessoas atendidas no SUS são mulheres vítimas de violência doméstica ou sexual.

Fruto de reivindicação do movimento de mulheres, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotada pela ONU em 1979, sendo hoje amplamente ratificada por 187 Estados. Embora a convenção não explicite a temática da violência contra a mulher, o Comitê da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adotou relevante recomendação geral sobre a matéria, afirmando que: "A violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que seriamente impede a mulher de exercer seus direitos e liberdades com base na igualdade com relação ao homem".

Para a ONU, a violência contra as mulheres é um fenômeno generalizado, que alcança um elevado número de mulheres, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição.
No âmbito da ONU, o secretário-geral Ban Ki-moon, em discurso perante a Assembleia Geral no último Dia Internacional da Mulher (8/3/2013), reiterou o compromisso das Nações Unidas no combate à atual epidemia mundial de violência contra a mulher. Segundo a ONU, sete em dez mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou sexual em algum momento de sua vida (dado da Campanha Unite to end Violence against Women, lançada pelo secretário-geral em 2008).

Nesse sentido, a Comissão sobre o Status da Mulher (CSW na sigla em inglês) da Assembleia-Geral da ONU, aprovou, durante sua 57ª sessão, realizada entre 4 e 15 de março de 2013, uma resolução contendo as conclusões de seus países-membros sobre a eliminação e prevenção de todas as formas de violência contra mulheres e meninas. A resolução demanda expressamente que os Estados acelerem esforços para desenvolver, revisar e fortalecer políticas para combater as causas estruturais de violência contra mulheres e meninas, incluindo discriminação e estereótipos de gênero, desigualdades e desequilíbrio nas relações de poder entre homens e mulheres, entre outros fatores. Reitera, ainda, a necessidade de empreender esforços com vistas a erradicar a pobreza e as persistentes desigualdades econômicas, sociais e legais principalmente por meio do fortalecimento da participação econômica de mulheres e meninas, como uma forma de diminuir o risco de violência.

De volta ao Brasil, em absoluta harmonia com os parâmetros protetivos internacionais, a Lei Maria da Penha inaugurou uma política integrada para prevenir, investigar, sancionar e reparar a violência contra a mulher. A adoção da Lei Maria da Penha permitiu afastar a omissão do Estado brasileiro, que estava a caracterizar um ilícito internacional ao violar obrigações jurídicas internacionalmente contraídas quando da ratificação de tratados internacionais.

É dever dos Estados atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres.

Nesse contexto, há urgência na adoção de medidas voltadas à prevenção e à repressão da violência sexual do estupro, bem como à proteção de suas vítimas. Fundamental é avançar no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, lançado em 2007, envolvendo todas as esferas federativas com o objetivo de consolidar uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, por meio da implementação de políticas públicas integradas.

Entre os desafios ao enfrentamento da violência sexual do estupro, destacam-se:

1) mapear a situação da violência sexual contra a mulher (mediante a sistematização de dados, adotando ficha de notificação compulsória de casos de violência sexual nos serviços de saúde, identificando o alcance, o impacto e as vítimas da violência);

2) ampliar ações de conscientização e sensibilização pública, por meio de campanha nacional contra a violência sexual contra as mulheres e meninas e pela promoção da igualdade de gênero;

3) fortalecer serviços de denúncia (enfrentando a impunidade, que se mostra ainda mais latente nos casos de violência sexual, que em geral nem sequer são comunicados à polícia em virtude do medo e da vergonha da vítima);

4) fomentar programas de treinamento e capacitação para enfrentar a violência sexual contra as mulheres especialmente nas áreas da segurança e da Justiça (combatendo os estereótipos de gênero baseados em preconceito que ameaçam a credibilidade da mulher, levando ao desprezo de suas denúncias);

5) avançar na atuação integrada e articulada de instituições, sob a perspectiva multidisciplinar e transetorial, visando à prevenção e repressão à violência sexual do estupro;

6) conferir proteção e assistência às vítimas; e

7) identificar e implementar as práticas exitosas para o eficaz combate à violência sexual contra a mulher.

A adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações, surge como imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas dessa grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres.

Flávia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher) e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do estado.

Sílvia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem, membro da comissão de Cidadania e Reprodução e membro do Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher.

Fonte: Estado de São Paulo

Nenhum comentário: