A única vez em que o marido da publicitária Maria Claudia
Salomão, de 34 anos, arrumou a lancheira da filha Malu, de 2 anos, foi em meio
a uma das brigas do casal.
Os desentendimentos entre eles são poucos. Não raro,
o estopim são os pedidos dela para que ele se envolva mais nos cuidados com a
menina. Maria Claudia diz saber ser uma privilegiada. O marido gosta e quer
participar. Sabe até combinar roupinhas para vestir Malu – uma habilidade rara
entre pais e maridos. Mas ela ainda se ressente de ter de pensar em todos os
detalhes. “Ele vai à farmácia comprar o que Malu precisa, mas sou eu que tem de
explicar o que comprar”, diz Maria Claudia. Suas queixas espelham a alma
cansada e nem sempre silenciosa de milhões de mulheres. Revelam uma realidade
estressante para elas e frustrante para eles. Se é verdade que os homens nunca
se dedicaram tanto à criação dos filhos e às tarefas domésticas, as mulheres
nunca foram tão veementes em reclamar que o empenho deles está longe de ser
suficiente. Um embate difícil de resolver. Para amenizá-lo, ajuda compreender o
essencial quando o tempo escasseia, o cansaço domina e a vida fica díficil para
cada metade do casal.
Primeiro, cabe às mulheres um exercício de boa vontade em
reconhecer que, se a ajuda dos homens está longe do ideal, pelo menos já é
maior hoje do que no passado. A pesquisa mais recente a medir o engajamento
masculino, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
sugere avanços tímidos dos brasileiros rumo ao tanque e à cozinha. Entre 1995 e
2009, aumentou 3,3 % o número de homens que afirmaram se incumbir de algum tipo
de tarefa. A mudança de comportamento pode ser lenta, mas é irrevogável.
“Estamos no momento mais igualitário da história em termos de divisão das
tarefas domésticas”, afirma a socióloga americana Barbara Risman, pesquisadora
da Universidade de Illinois que acompanha as diferenças entre gêneros em
diversos países do mundo.
A nova divisão de
tarefas em casa. Eles nunca ajudaram tanto. Para elas, ainda é pouco
A ilustradora Ila Oliveira, de 30 anos, e o engenheiro de
software Ricardo Bittencourt, de 36 anos, de Belo Horizonte, são reflexo desse
momento democrático. Eles não têm empregada nem diarista. O segredo para manter
a casa em ordem – e a harmonia entre o casal – é limpar um pouquinho por dia. A
faxina completa é feita uma vez por mês, em dupla. A divisão das tarefas é
feita de maneira civilizada. “Aconteceu naturalmente, de acordo com o gosto de
cada um”, diz Ila. É Bittencourt que assume a cozinha quando é hora de cuidar
das carnes cruas, algo que Ila não suporta.
Foi no cuidado com os filhos que os homens ganharam mais
desenvoltura nas últimas décadas. “Há um certo orgulho em assumir a
paternidade”, afirma Barbara, da Universidade de Illinois. Os números comprovam
essa percepção. Um estudo realizado pelo Families and Work Institute, uma
organização americana, revela que, em 1977, os homens gastavam, em média, 1,8
hora por dia em tarefas relativas à vida das crianças. Em 2008, quando os novos
dados foram coletados, esse número subira para três horas diárias. No Brasil, a
situação não é diferente. Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil analisaram como 100
casais dividam as obrigações relativas aos cuidados com as crianças. De oito
tarefas, homens e mulheres compartilhavam seis: repreender quando a criança
precisa de limites, comparecer a reuniões na escola, ensinar hábitos de
higiene, prover sustento financeiro, dar apoio afetivo e proporcionar
atividades de lazer. Apenas duas tarefas cabiam exclusivamente à mulher: cuidar
da alimentação e das atividades escolares.
Em suas entrelinhas, o estudo gaúcho oferece aos homens que
se sentem injustiçados pela cobrança feminina a possibilidade de compreender as
queixas delas. A causa do descontentamento é que ainda sobram para as mulheres
– e só para elas – alguns afazeres domésticos fundamentais. São tarefas
invisíveis, como supervisionar o dever de casa das crianças ou montar o
cardápio das refeições. Essas pequenas responsabilidades cotidianas, quando
somadas, assoberbam a mente e geram estresse. Ainda é sobre as mulheres que
recai outra categoria de tarefas invíseis: a incumbência de manter contato com
parentes e amigos, lembrar aniversários e apoiar emocionalmente a família. Algo
chamado também de trabalho pela socióloga americana Pamela Smock, da
Universidade de Michigan. “Romper com essas obrigações invisíveis é a conquista
derradeira da igualdade de gêneros em casa”, diz Pamela.
A fonoaudióloga paulistana Adriana Mandetta, de 42 anos,
conhece bem essas obrigações. Para ela, elas não têm nada de invisíveis. É
Adriana quem leva as filhas Isabela, de 13 anos, e Giovana, de 10, ao médico, à
escola de inglês, às aulas de vôlei, balé... Para dar conta, decidiu trabalhar
meio período. “Meu marido até ajuda no fim de semana, mas existem coisas que a
mulher tem de fazer, independentemente de ter tempo ou não”, diz Adriana.
“Somos mais detalhistas.”
As empresas estranham se um funcionário sai para levar o
filho ao médico". ROSANA SCHWARTZ, SOCIÓLOGA
Ela não está sozinha em sua percepção. É comum que as
mulheres não aceitem dividir a gestão da casa com os parceiros por acreditar
que eles não darão conta. Eles podem até se encarregar de alguns afazeres. Mas
são elas que determinam quais – e como devem ser feitos.“Os homens ficam
confusos”, afirma a psicóloga Maria Aznar-Farias, professora da Universidade
Federal de São Paulo. “Eles querem ajudar, mas muitas vezes não sabem por onde
começar, porque as mulheres não deixam.” Um estudo feito nos Estados Unidos
mostrou que é o comportamento das mulheres que dita o grau de envolvimento dos
homens. Nos casais em que as mães elogiavam o desempenho dos maridos para lidar
com fraldas e mamadeiras, eles se saíam melhor nas tarefas e participavam mais.
“É pelo afeto, e não pela imposição que se conquista a ajuda masculina”, diz a
socióloga Rosana Schwartz, especialista em questões de gênero da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. “Como os homens não são educados para
prestar atenção a detalhes, a mulher tem de aprender a pedir com jeito,
elogiando, confiando e agradecendo a participação deles.”
O comportamento feminino acaba reafirmando estereótipos,
porque os filhos tendem a reproduzir, quando adultos, padrões de comportamento
aprendidos na infância. No Brasil, os dados do Ipea sugerem que o ciclo está
longe de terminar. Desde cedo, as meninas trabalham mais em casa que os
meninos. Entre os 10 e 15 anos, elas fazem 25 horas de tarefas domésticas por
semana. Eles, dez horas. Na vida adulta, esses estereótipos interferem não só
na divisão dos afazeres do lar – ou melhor, na sobrecarga feminina –, mas
também na vida sexual do casal. A conclusão é de um estudo curioso conduzido
por pesquisadores da Universidade de Washington. Eles concluíram que, quando os
homens assumem tarefas em casa consideradas femininas, como lavar roupas, a
frequência com que o casal faz sexo diminui. Nos relacionamentos em que a
divisão de tarefas é tradicional, o número de relações sexuais mensais é
multiplicado por 1,6. “Nossa definição de atratividade está ligada aos ideais
de masculinidade e feminilidade”, afirma o sociólogo Sabino Kornrich, um dos
autores do estudo. As próprias mulheres podem considerar os maridos menos
atraentes, porque atribuem ao cuidado com a casa um caráter feminino. “Podem
não ser noções necessariamente modernas, mas elas acabam contaminando nossas
atitudes.”
TRABALHO EM DUPLA
A ilustradora Ila Oliveira e o marido, Ricardo Bittencourt,
de Belo Horizonte. Ele ajuda tanto nas tarefas domésticas que o casal dispensou
a empregada (Foto: Eugenio Savio/ÉPOCA )
A autocobrança feminina sobre a criação dos filhos é outro
elemento que aumenta o estresse das mulheres. Paira no ar a exigência para que
se criem filhos preparados para ocupar posições de liderança. Cabe às mães
fazê-los atingir tal ideal, criando oportunidades de aprendizado e infinitas
atividades extracurriculares. Esse comportamento, exacerbado pela crise
econômica na Europa e nos Estados Unidos, ganhou até nome: mompetition (um jogo
com as palavras “mãe” e “competição”, em inglês). “Nas minhas pesquisas,
encontro mulheres que deixam de trabalhar porque acham que seus filhos serão
mais bem educados se a mãe ficar em casa”, diz Cameron Macdonald, professora da
Universidade de Wisconsin. “As mães que recusam essa lógica sofrem preconceito
das outras.”
Os homens parecem à
margem da angústia causada por esse ideal de perfeição na criação dos filhos,
porque são mais cobrados por seu papel fora de casa. O resultado dessa divisão
social de tarefas são políticas corporativas que impedem os homens de conciliar
a vida profissional com a participação ativa nos cuidados com as crianças. Por
isso, eles ficam mais tempo fora de casa. No Brasil, de acordo com o Ipea, os
homens trabalham fora 42,9 horas por semana, e as mulheres, 35,6 horas. “Eles
compreendem que precisam dividir igualmente com a mulher a tarefa de cuidar dos
filhos, mas as empresas estranham se um funcionário diz que sairá no meio do
expediente para levar o filho ao médico”, diz Rosana, do Mackenzie. “Os homens
vivem um conflito.”
No livro Fast-forward family, recém-lançado nos EUA,
pesquisadores da Universidade da Califórnia mostram esse impasse. Ao analisar
como pais e mães são recebidos pelas crianças ao chegar em casa, descobriram
que as mulheres chegam primeiro 76% das vezes. Em média, os homens cumprem duas
horas extras diárias. Como as mães chegam antes, são elas que recebem atenção e
carinho dos filhos – assim como os pedidos de ajuda na lição, de materiais que
devem ser comprados para a aula e as demais tarefas invisíveis que muitas vezes
acabam em brigas entre marido e mulher. A cena flagrada pelos pesquisadores americanos
– tão comum no cotidiano das famílias brasileiras – mostra que, se as mulheres
ainda não dividem igualmente com os homens a criação dos filhos, não estão
sozinhas na angústia de querer mais tempo com a família.
O homem moderno juntou-se a ela.
Fonte: Revista Epoca
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