Todo mundo já esteve ou conhece
alguém que esteve num relacionamento abusivo. Esse tipo de relacionamento acaba
acontecendo mais na esfera amorosa — ou a gente tem a impressão de que acaba
acontecendo mais porque falamos muito mais sobre esses. Muita gente fantástica
já escreveu (ou publicou vídeos, como é o caso desse aqui da diva Jout Jout)
material que ajuda a identificar um relacionamento abusivo, então já temos essa
super mão na roda.
Por Débora Nisenbaum
Mas depois de publicar meu
primeiro texto aqui, que fala sobre relações humanas, eu recebi uma série de
mensagens que me deixaram perturbada — todas de pessoas que estavam em relações
abusivas, fossem elas amorosas, familiares, enfim. Muita gente me trouxe
histórias bastante sombrias envolvendo expulsão de casa, chantagens, agressões
(físicas e emocionais) e muito sofrimento na mão de pessoas que diziam amá-las.
Quis fazer algo por essas pessoas
que entraram em contato comigo. Como alguém que já esteve num relacionamento
abusivo, infelizmente eu já passei por situações parecidas. O que me ajudou, na
época, foi descobrir mais gente com as mesmas experiências que eu. Então,
escrevo isso na esperança de ajudar quem estejam precisando também. Esse texto
foi elaborado com a ajuda de muita gente que se dispôs a falar comigo sobre
seus relacionamentos abusivos e o que colaborou para a libertação delas.
O que segue adiante não tem,
assim como nenhum dos meus textos nunca teve, pretensão de ser uma verdade
absoluta ou um manual de instruções. É apenas um conjunto de reflexões, que,
com sorte, irá cair nas mãos de quem precisa.
Ele tem duas partes, servindo pra
você 1, que acha que tem um relacionamento abusivo na sua vida ou que já
percebeu que a sua relação com alguém anda cheirando mal; e pra você 2, que tem
um conhecido que pode estar passando por isso.
Primeira parte: o que fazer se você [acha que] está em um
relacionamento abusivo
1. Procure ajuda
Mesmo. Pode parecer clichê, mas
procure ajuda. Quando passei por essa situação pela primeira vez, tinha uns 15
anos. Eu não sentia que as pessoas ao meu redor fossem compreender o que estava
acontecendo e achava que aquilo só acontecia comigo (daí a importância de
conhecer quem passou pela mesma coisa), então eu procurei ajuda de uma
psicóloga. Mas pode ser quem você quiser: uma pessoa da família, um amigo, um
namorado, um terapeuta.
Muitas vezes, pessoas que
constroem relações abusivas negligenciam afeto como forma de controlar a
vítima. Então cerque-se de pessoas que você sabe que gostam de você e estão
dispostas a te oferecer desde abraços até uma cama pra passar a noite. Pessoas
que te fazem sentir amada. Construa com essas pessoas uma grande almofada de
carinho pra você cair em cima quando for necessário. Elas vão te amparar.
2. Fale com os seus amigos. Ouça o que eles tem a dizer
Sequência do item 1, mas essa é
bastante importante porque a confirmação de um relacionamento abusivo acontece
quando seu algoz tenta eliminar seu contato com eles. Ou com a sua família. Ou
com ambos. Então se a pessoa tentar te impedir de fazer isso, falar que seus
amigos não prestam, que sua família não te ama e você deveria ficar longe
deles… é o carimbo no seu atestado de Preciso Sair Dessa. Mas é importante
também que você ouça o que eles tem a dizer. Geralmente quando os seus amigos
questionam alguma relação sua… é porque eles estão certos. Na dúvida, passe
pela check list da Jout Jout.
3. Elimine os gatilhos de crise
Os relacionamentos abusivos
geralmente se propagam por anos a fio, instaurando dinâmicas de poder muito
fortes e isolando a vítima. Mas alguns possuem gatilhos para crises, que geram
discussões, estresse e agressões. Para explicar esse ponto, vou precisar de um
exemplo: vamos supor por um momento que você tem um relacionamento abusivo com
o seu namorado, o Francis. Ele adora sair com os amigos pro happy hour na sexta
feira e sempre volta bêbado. Francis chega tropeçando na casa toda, reclamando
que não tem comida pronta, vocês brigam, isso vira pretexto pra ele falar o
quão imprestável e ridícula você é e que você não passa de uma vagabunda que
ele teve a bondade de amar.
Eliminar o gatilho de crise nesse
caso seria não estar em casa quando ele chegar. Vá dormir na casa da sua mãe
toda sexta feira. Essa é uma medida de contenção de danos, embora também ajude
a estabelecer o seu espaço pessoal como um espaço livre dessa dinâmica abusiva.
Você precisa focar na sua sanidade mental e em se manter longe de conflitos.
Isso vai ajudar a manter a sua calma e a sua perspectiva no lugar.
4. Perceba os ciclos
Relações abusivas também costumam
ter ciclos. Retomando o exemplo acima, o Francis iria te pedir milhões de
desculpas, dizer que errou, que te ama mais do que tudo e te levar pra um
jantar romântico — pra depois fazer tudo igual, de novo. Perceber como e quando
esse tipo de dinâmica se instaura é muito importante pra conseguir se proteger.
5. Lembra daquilo que você adorava?
A gente frequentemente muda sem
perceber quando está num relacionamento abusivo; acaba ficando perdido e meio
desnorteado sem conseguir identificar quem é. De repente, do mais absoluto
nada, você não lembra mais o que fazia no seu tempo livre. Quem você era antes
do Francis? Ou então, se seu relacionamento abusivo for com uma pessoa do seu
convívio diário, por que você é tão mais feliz longe de casa? Por que você
odeia voltar? Por que o seu sonho é mudar de cidade pra nunca mais ter que
lidar com certas coisas?
Tente se conectar às coisas que
te deixam feliz. Pode ser um hobby, jardinagem, fotografia, colecionar chás da
China. Pode ser qualquer coisa que te faça sentir aquela ligação com você
mesmo. Conheci pessoas que se beneficiaram muito dessa prática quando estiveram
em relações disfuncionais, incluindo algumas que transformaram sua dor em arte.
6. Procure alguém que tenha passado pela mesma situação
Essa foi a parte que mais me
ajudou: empatia. É muito mais fácil quando você tem amigos e familiares
compreensivos e simpáticos à sua situação, mas melhor ainda é achar quem já
passou por isso. A internet é maravilhosa nesse caso. Quem já foi vítima de
pessoas muito manipuladoras pode te acalmar, te dar soluções e te ajudar de
formas que você nem imagina.
E tem uma última coisa: quando
você perceber o ciclo, conseguir quebrá-lo ou confrontar seu agressor pra sair
dessa relação, não aceite chantagens emocionais. Não, você não vai ficar
sozinha para sempre (e não existe problema em estar sozinha). Não, ele não vai
se matar se você for embora. Não, você não é uma pessoa difícil de amar que
jogou fora sua última chance. No rompimento, vai doer sim, mas vai passar. Tem
gente que só percebe relações abusivas anos depois que elas terminaram, olhando
pras cicatrizes ou percebendo traumas. É normal. Respeite o seu tempo de
superar.
Segunda parte: o que fazer se você conhece alguém num relacionamento
abusivo
1. Ofereça ajuda
É a imediata resposta pro item 1
de quem está numa relação abusiva. Ofereça todo tipo de ajuda que você puder.
Não raro, pessoas em relacionamentos abusivos vão dizer que não precisa, que tá
tudo bem. Mas faça-se disponível, sempre. Às vezes a gente acha que isso tudo é
apenas uma fase ruim de uma relação e que faz parte, vai passar, mas não
percebe o quão anormais essas situações são. Nem todo mundo que está num
relacionamento abusivo tem consciência disso (na verdade, são bem poucas as
pessoas que percebem). E aí, você que está do lado de fora, tem que cutucar a
bolha dessa pessoa e dizer “ei, pode me dar a mão, eu te ajudo!”. Nos casos
mais simples, isso significa um ombro amigo pra chorar ou desabafar. Mas esteja
ciente de que a situação pode ser bem complexa e pode ser legal oferecer sua
casa como abrigo. Pode ser que você precise ligar para a polícia. A minha
ex-vizinha se dispôs a depor na justiça ao meu favor, quando foi necessário. Ou
seja, essas coisas podem ficar bem feias, e para pessoas fragilizadas, toda
ajuda é útil. Esteja disposto a dar amor, acima de tudo.
2. Não deixe essa pessoa sozinha
É frequente que pessoas nesse
tipo de relação se deparem com transtornos como ansiedade e depressão, ou com
uso de drogas (álcool e Rivotril inclusos). Isso pode ser uma condição prévia
delas ou pode ter sido desenvolvido por causa dessa relação tóxica. O grande
problema é que, dessa maneira, se tornam vítimas muito mais fáceis de isolar e
conter, o que é perigoso para elas. Às vezes é impossível estar sempre
fisicamente perto da pessoa, mas o mais importante é se fazer presente.
Responda às mensagens às duas da manhã, porque às vezes elas são silenciosos
pedidos de ajuda disfarçados de “nossa, insônia, né?”. Depressão e relações
abusivas são uma combinação perigosíssima. Você se sente impotente por
excelência, sozinho por sua culpa e negligenciado porque merece.
3. Tenha paciência
Como raramente as pessoas sabem
que estão nesse tipo de relação, é comum que elas rejeitem o que você diz e até
se afastem — lembre-se que os algozes podem ser extremamente manipuladores. Mas
fique perto. Deixe claro que por mais que ela discorde de você, você estará lá
pro que ela precisar. Fale de outros assuntos, se necessário nem mencione a
relação. Mas faça ela saber que é querida e que a vida também existe fora
daquele relacionamento tóxico (você não precisa dizer isso na cara dela. Ela
vai perceber). Essa parte é muito importante se você está lidando com uma
vítima que depende financeiramente do seu algoz (por exemplo, alguém que está
em uma relação parental abusiva) e/ou que não tem possibilidade de se
distanciar dessa relação, quiçá rompê-la.
4. Coloque essa pessoa em contato com alguém na mesma posição do algoz
Não na posição de ser horrível,
obviamente. Mas vamos supor que essa sua amiga tem uma relação abusiva com o
pai dela. Leve ela pra sua casa num domingo, pra almoçar com o seu pai. Seu pai
aqui vai exercer a função de pessoa que está na mesma posição que o algoz,
porém mantendo uma relação funcional com você, que está na posição dela. É como
colocar óculos nessa sua amiga: ela vai perceber como é uma relação tranquila,
do mesmo tipo que ela tem. E isso pode ser importante pra que ela consiga
perceber o que há de errado na relação dela. Dá até pra trocar uma ideia com o
pai antes pra que ele entenda a situação.
5. Esqueça determinadas convenções
Sabe aquele papo de que briga de
marido e mulher não se mete a colher? Que família é sagrada e vem acima de
tudo? Esquece. Esquece tudo isso. Quem está num relacionamento abusivo não pode
continuar miserável por causa de convenções sociais. E se você parar pra
pensar, elas só servem pra proteger o agressor. Meta-se.
6. Avise outros amigos e familiares
Mas tenha bom senso. Não fique
espalhando pra todo mundo coisas que às vezes a vítima confidenciou só pra
você. Se, por exemplo, ela tem uma relação tóxica com a mãe, contar para o pai
pode não ser uma boa ideia. Pergunte pra uma amiga bem próxima se ela já notou
algo esquisito. Provavelmente (e dependendo da gravidade da situação) essas
pessoas também já estão preocupadas com a sua amiga e é bom que elas executem
os passos anteriores também.
7. Nunca culpe a vítima
Nunca, JAMAIS diga que a pessoa
está nessa situação porque quer. Que ela não termina com o Francis porque é
besta. Que ela não fez por onde. Que ela depende do pai e portanto deve
permanecer calada. Nunquinha. Você não sabe o que se passou nesse
relacionamento abusivo — pode haver violência física, sexual, estupro, ameaças
à vida dessa pessoa. E se o algoz fez seu papel direitinho, a vítima
provavelmente já está se achando uma merdinha de pessoa. Ela não precisa de
você piorando essa impressão. Ela precisa de acolhimento e empatia. Mas se você
estiver se perguntando por que as pessoas não terminam essas relações assim que
percebem algo errado, eu recomendo esse TED aqui (embora ele fale
especificamente sobre o cenário de violência doméstica).
Não é fácil ajudar uma pessoa
nessa situação e às vezes é indispensável dar tempo ao tempo. Pode ser que a
pessoa nem se toque do fato de que estava num relacionamento abusivo até
terminá-lo. Pode ser que ela perceba só muito tempo depois. Mas ter por perto
pessoas que te amam, nessas horas, é um potente catalisador desses processos.
Agradeço do fundo do coração a
todas as pessoas que compartilharam comigo as suas histórias de relacionamentos
abusivos e a todos que me ajudaram a sair do meu❤
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