...Aproveitem seus pais. Deem-lhes muitos, infinitos abraços e beijos.
Digam até cansar que os amam. Cuidem deles para que fiquem mais tempo, o maior
tempo possível, junto de vocês.
Mas sobretudo, não percam a ligação e a sintonia com a paternidade divina.
Dali jorra uma fonte pura, que é graça e vida em abundância...
Por Maria Clara Bingemer
Dia dos Pais quase nunca foi dos mais
alegres em minha infância. Perdi meu pai aos 9 anos de idade, e a partir daí
essa data era um tanto tabu, em que todos procuravam fazer-me esquecer a única
dor que já experimentara em uma vida coberta de carinho: eu não tinha pai. Era órfã. Palavra que soava como um soco no
estômago ou um dardo no coração: órfã, órfã, órfã. O câncer levara meu pai, homem
bonito, alto, risonho e carinhoso, aos 46 anos de idade. Deixou um rastro de luto e lágrimas a marcar
para sempre rosto e olhar de minha mãe, que largou um pedaço de si própria no
enterro do esposo profundamente amado. Diziam-me as coisas mais desajeitadas e
odiosas sobre o tema: que eu devia aceitar a vontade de Deus, que havia sido
melhor para ele, que agora eu tinha que ser muito boazinha para mamãe etc.
Nunca fui de entregar-me facilmente
e baixar a guarda. E com esse importante episódio de minha vida não foi
diferente. Resolvi que, se eu não tinha
pai, podia viver sem ele. E que não ia
dar a ninguém o gosto de me ver triste e chorando. Trinquei meus pequenos
dentes com raiva, apertei os punhos e parti para a luta pela alegria que
parecia me haver sido roubada para sempre com o desaparecimento do princípio da
realidade do meu horizonte.
Não foi fácil. O coração apertava quando via as amigas e
colegas com seus pais, celebrando o Dia dos Pais e aniversários e Natais,
povoados da força e do carinho que não eram presentes em minha casa e em minha
vida. Embora minha mãe tentasse ser ao mesmo tempo pai e mãe, não conseguia. E a falta da presença paterna era duramente
sentida como uma amputação irreparável.
Mas a orfandade ensinou também
algumas lições que tentei aprender o melhor que pude. Com ela aprendi que nada
na vida pode-se considerar como já conquistado. Por tudo há que lutar com
bravura e valentia, persistência e teimosia. A vida não se rende em preguiçoso
“a priori”. Tem que ser buscada com unhas e dentes, e toda luta é pequena para
conservá-la e readquiri-la a cada suspiro e a cada instante. Assim cresci, assim
me formei, assim conheci o homem que hoje é pai de meus filhos, e decidi que,
uma vez que a paternidade povoou novamente minha casa e minha vida, não iria
deixá-la ir embora tão facilmente.
Assim vi meus filhos crescerem,
perdi noites de sono por causa deles, sofri com suas hesitações escolares e
vitais, alegrei-me com seus sucessos, orgulhei-me, envergonhei-me, engoli sapos
e aceitei críticas. A orfandade fizera
de mim uma lutadora quase beligerante, perfil que a família que formei suavizou,
mas não chegou a eliminar. Porém, a
experiência definitivamente sanadora que colocou como um selo em meu
aprendizado de órfã foi o aprendizado da oração. Em um retiro que fiz, já adulta, experimentei
finalmente a presença de Deus Pai, fonte de onde jorra toda paternidade. Acolhi
em lágrimas o dom de poder pronunciar “Abba Pai” e sentir que me dirigia a uma
pessoa que me envolvia com seu amor. E
enquanto isso acontecia, era como se todo o sentimento guardado e reprimido
houvesse formado um tumor túrgido e doloroso que agora drenava um líquido
viscoso e liberava a carne para, viva, novamente pulsar e palpitar.
Foi uma lição quase definitiva, essa. Porque sinto que ela só se faz completa hoje,
quando contemplo, deslumbrada e agradecida,
a paternidade de meu filho que carrega em seus braços, sorridente, a
pequena Maria Antônia. Nesta paternidade vejo a paternidade interrompida em
minha vida re-fazendo seu ciclo e recomeçando a girar em novo ciclo feito de
amor e fecundidade.
Volto a celebrar de todo coração o Dia
dos Pais. Posso celebrá-lo com redobrada alegria. E as lições que aprendi, tento humildemente
comunicá-las aos outros. Por isso lhes
digo: aproveitem seus pais. Deem-lhes
muitos, infinitos abraços e beijos. Digam até cansar que os amam. Cuidem deles
para que fiquem mais tempo, o maior tempo possível, junto de vocês.
Mas sobretudo, não percam a ligação
e a sintonia com a paternidade divina. Dali jorra uma fonte pura, que é graça e
vida em abundância. Quem estiver ligado
a esta fonte jamais se sentirá sozinho ou órfão. Não é à toa que a oração que
Jesus ensinou e deixou como legado começa com a palavra Pai. Quem entende o que
esta oração significa, sabe que não é órfão e é infinitamente amado. Feliz Dia
dos Pais para todos.
Fonte: http://www.jb.com.br/
Maria Clara Lucchetti Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A Argila e o
espírito - Ensaios sobre ética, mística e poética' (Ed. Garamond), entre outros
livros
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