Beltrame em sua sala na Secretaria de Segurança Pública, no centro do Rio
Em entrevista exclusiva, José
Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio, afirma que o estado perdeu o
combate ao tráfico e que apoia a descriminalização da posse e do consumo de
drogas no país.
O secretário de Segurança do
estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, é a única autoridade
brasileira de alto escalão, hoje, a apoiar a proposta de o país descriminar a
posse e o consumo de drogas.
"O combate às drogas não
está funcionando", diz Beltrame. "Meu posicionamento reflete o que vi
em Portugal em junho. Eles descriminaram o uso da maconha. Depois passaram para
as drogas consideradas mais pesadas. Tiraram o problema da polícia e levaram
para o Ministério da Saúde. Mas se estruturaram antes. Criaram clínicas de
reabilitação. Não ficou uma discussão político-ideológica sobre liberar ou não,
descriminar ou não", fala.
Beltrame acredita que a grande
questão nacional hoje é a perspectiva a ser dada para jovens em situação
vulnerável. "Um país onde 52 mil pessoas morrem por crime violento é, me
desculpem, estado de barbárie. Mas é só falta de polícia? Não é", fala,
dialogando com o que disse o cineasta José Padilha em entrevista à Trip em
junho. Beltrame é cáustico ao constatar: "A sociedade quer a favela para
ter cozinheira, faxineira e lavadeira. Enquanto olharem a favela como gueto, as
coisas serão difíceis. Não ponham mais a culpa na segurança pública".
Pacificação?
Aos 58 anos, José Mariano Benincá
Beltrame, gaúcho de Santa Maria, torcedor do Internacional, está no segundo
casamento. Vive há dez anos com a educadora e ativista social Rita Paes. Tem
três filhos. É formado em direito, em administração pública e de empresas, com
cursos em universidades federais gaúchas. Especializou-se em inteligência
estratégica na Escola Superior de Guerra. Ingressou no quadro policial em 1981
como agente da polícia federal. A vocação policial, conta, foi despertada por
um personagem, o detetive Jimmy "Popeye" Doyle, interpretado por Gene
Hackman em Operação França (1971).
Em foto de Natal com os pais e os
irmãos, Beltrame é o segundo da esquerda para a direita
"Descobri a aura que cerca
esse tipo de agente, uma idealização em torno de sua coragem e do alto grau de
eficiência", conta. Fez carreira no setor de inteligência, chegando ao
comando da seção na instituição. Quando chefiou no Rio a chamada Missão Suporte,
grupo de elite de investigação, morou por dois anos numa sala do horrendo
prédio que sedia a PF na praça Mauá. De lá liderou a prisão de mais de uma
centena de policiais, empresários e políticos corruptos.
Em 2007, assumiu a Secretaria de
Segurança do Rio. Foi escolhido pelo governador Sérgio Cabral (PMDB) a partir
da indicação do então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e do
secretário nacional de Segurança, Luiz Fernando Corrêa, que conhecera Beltrame
na PF. Até sua posse, o estado do Rio convivia com a média de um secretário
novo a cada ano.
O começo da gestão Beltrame
espantou as entidades de direitos humanos. Em junho de 2007, ordenou a
realização de uma megaoperação no complexo de favelas do Alemão. Enviou mais de
1.500 homens para uma região em que a polícia não entrava havia quatro anos. O
resultado foram 21 mortos em confronto policial, de acordo com a versão
oficial. Mas muitos deles traziam características de execução, com balas nas
costas e na cabeça, a curta distância. A ação sangrenta tornou-se o símbolo da
política do confronto. Houve condenação nacional e internacional à atuação da
polícia. O Rio tinha à época 41 homicídios para cada grupo de 100 mil
habitantes, uma taxa três vezes maior do que o máximo considerado aceitável
pela Organização Mundial da Saúde.
Beltrame com a esposa, Rita, e o
filho do casal, Francisco
Em 2008, a política de segurança
do Rio mudou. Beltrame criou a primeira Unidade de Polícia Pacificadora, no
morro Dona Marta, em Botafogo, zona sul da cidade. Depois de sete anos de
existência das UPPs, a taxa de homicídio no estado do Rio chegou a 25 por cada
grupo de 100 mil habitantes, a menor da história. As UPPs garantem a segurança
numa área de 9,5 milhões de metros quadrados, equivalente a quase 50 Maracanãs.
São 38 UPPs que servem a 200 comunidades, com 10 mil policiais em áreas
habitadas por 1,5 milhão de pessoas. A comunidade Santa Marta, erguida nas
encostas do morro Dona Marta, ficou por sete anos sem homicídios e tiroteios. A
paz foi rompida em maio deste ano, com a volta de disparos entre quadrilhas de
traficantes. Era o alerta que faltava para o aumento dos questionamentos à
eficácia das UPPs.
Padilha e sequestro
Uma série de crimes ampliou a
sensação de insegurança no estado neste ano. Parecia que começava a ruir o
projeto de Beltrame. Os dados oficiais, no entanto, mostram que este deve ser o
ano com menor número de homicídios, de menor número de mortes em confronto
policial e de menor número de pessoas desaparecidas – rubrica cujo crescimento
poderia explicar a queda no número oficial de assassinatos. Por outro lado, os
roubos a pedestres continuam a aumentar, dando argumento a quem se sente
desprotegido no Rio.
Caso do cineasta José Padilha,
que, em entrevista recente à Trip, revelou que se mudou da cidade após um grupo
armado ter tentado invadir sua produtora no Jardim Botânico, bairro nobre da
zona sul. Padilha havia acabado de lançar Tropa de elite 2, retrato da milícia
e do crime entranhado no estado do Rio. "Como ele não fez registro
policial, não tive conhecimento dessa tentativa. Se efetivamente existiu, é
grave. Mas precisamos consubstanciar isso. Preferencialmente, com ele sendo
ouvido. Se ele quiser vir aqui, podemos ouvi-lo em separado, para garantir o
sigilo. Poderia ser até uma tentativa de roubo de equipamentos, porque há quem
faça esse tipo de crime encomendado", afirmou Beltrame. O secretário
determinou que a polícia civil instaurasse inquérito para apuração da ameaça a
Padilha, depois de sua entrevista à Trip.
Com a filha, Mariana, de seu
primeiro casamento
Recordista como sobrevivente no
cargo de secretário, que ocupa há quase nove anos, Beltrame se disse
fisicamente cansado, sem férias, mas ainda estimulado para a função. Decorou
sua sala com um relógio cuco italiano, herança de um bisavô. A cada meia hora
toca o carrilhão. O tempo passa inclemente à sua frente. Sofre com dores nas costas,
que o impedem de correr, seu exercício predileto. Revestiu a cadeira de
trabalho com o assento Dr. Coluna, apetrecho indicado para quem necessita
distensionar a coluna vertebral. De seu gabinete, com janelões de vidro
voltados para a Central do Brasil e o Morro da Providência, vislumbra o caos
urbano da cidade que escolheu para viver.
A polícia do Rio prende 26 mil
pessoas por ano, a Justiça solta 22 mil no mesmo período – de acordo com o
censo penitenciário, o Rio tem 35,6 mil presos para 29 mil vagas. A polícia
prende demais ou a Justiça libera em excesso? Isso mostra que tem algo errado
no processo. O problema não é soltar as pessoas. Se a Justiça soltou foi porque
a lei permitiu. O problema é a reincidência do crime, o que obriga a polícia a
trabalhar duas, três, quatro vezes para prender o mesmo criminoso. Tivemos um
homicídio no Rio em julho, no qual o assassino estava em prisão domiciliar, mas
cometeu o crime na rua. Quem fiscaliza isso? Existe uma série de opções
jurídicas para que essa pessoa estivesse em liberdade. Não sou contra. Mas vejo
que não há um órgão fiscalizador sobre a pessoa que está pagando seu débito com
a sociedade. Quem acaba fiscalizando é a polícia quando ele comete um novo
crime. Temos leis eficientes no Brasil. Se a lei diz que a condenação é de dois
anos, o condenado deveria cumprir os dois anos de reclusão. Quando um juiz dá
sua sentença, deveria levar em consideração o efeito de sua decisão na
sociedade.
Pode explicar melhor?
Tenho um
exemplo claro que é o caso do Claudinho [Cláudio José de Souza Fontarigo] e do
Fu [Ricardo Chaves de Castro Lima], do Morro da Mineira, no Rio. São líderes do
tráfico no complexo de favelas do São Carlos, que foi ocupado pela polícia.
Eles têm mais de 40 anos e condenações de prisão que, somadas, passam de 50
anos. Estavam em presídio federal, fora do Rio. Eles têm o controle do tráfico
de drogas no centro do Rio. Com uma pena dessa dimensão, os dois conseguiram
liberação da cadeia por sete dias para visitar as famílias. E fugiram. Se eu tenho
40 anos de idade, 50 anos de pena e me dão essa oportunidade, nem eu voltaria
para a cadeia. Voltaram ao Rio e causaram uma verdadeira barbaridade. [Fu e
Claudinho são acusados pela polícia de iniciar conflito entre facções
criminosas rivais que deixou dez mortos nos Morros da Coroa, Mineira e São
Carlos.] O que precisa ser feito é uma análise criteriosa. Na medida em que se
dá o benefício, que é um direito, é preciso haver fiscalização sobre os
beneficiados.
O que o senhor propõe é o
endurecimento das leis que regulam os presos?
Não se trata de endurecimento. Se
alguém cometeu crime que tem pena de três anos, de dez anos, que cumpra o
período determinado. Tráfico pode dar condenação de oito a 12 anos. Se o cara
pega oito anos, cumpre um terço, no máximo dois terços, e sai. Ótimo. Mas quem
vai controlar essa pessoa? Como isso acontece? Quem me diz que essa pessoa está
em condições de voltar ao convívio social? Não precisamos de mais penas e leis.
O que precisamos é que elas sejam cumpridas. Num país desenvolvido, dois anos
de cadeia são dois anos de cadeia. No Brasil, se a pena é de oito anos, o preso
pode ser libertado tendo cumprido um ano e meio de cadeia. Temos leis, sem
dúvida nenhuma, modernas, baseadas no que diz a Constituição, que assegura os direitos
individuais. Mas são leis suecas, em uma sociedade que não é sueca.
Em 1994, durante uma apreensão
histórica de cocaína da polícia federal, após dias de perseguição
Os censos penitenciários mostram
que os presos brasileiros são, em sua maior parte, pobres, pretos e sem estudo.
Não se prende demais ou errado?
Os crimes de menor potencial ofensivo são
reconhecidos pelos juízes. A polícia leva ao juiz, numa prisão em flagrante,
por exemplo. Mas é o juiz quem diz: solta ou não solta. A polícia apresenta ao
Judiciário a materialidade, as provas do crime. A determinação da pena é tarefa
do Judiciário.
O senhor mudou de posição a
respeito do encarceramento de usuários de drogas. É a favor agora da
liberalização do consumo de drogas. Por quê?
Meu posicionamento reflete o que
vi em Portugal em junho [Portugal tornou-se modelo mundial em prevenção à droga
ao aprovar lei em 2000 que descriminaliza a posse e o consumo de qualquer
droga: consumir droga continua a ser proibido, mas fica fora de enquadramento
criminal]. Fui para ver isso. Eles descriminaram o uso da maconha. Depois passaram
para as drogas consideradas mais pesadas. Primeiro, tiraram o problema da
polícia e levaram para o Ministério da Saúde; mas estruturaram-se antes de dar
esse passo. Criaram clínicas de reabilitação, com assistentes sociais,
psicólogos, advogados, representantes da sociedade. Não ficou uma discussão
político-ideológica sobre liberar ou não, descriminar ou não. Quer liberar?
Ótimo. Mas o que vamos fazer depois? Em Portugal, eles têm 90 clínicas de
reabilitação, número que talvez seja insuficiente até para o Rio de Janeiro. A
descriminação foi o último degrau da escada. Sou totalmente a favor de algo
dessa natureza, e acho que o Brasil não escapa dessa discussão.
O combate ao tráfico, hoje, está
funcionando?
Não. Trabalhei muitos anos na fronteira. O combate não está dando
resultados. Poderíamos canalizar os esforços nos crimes transnacionais,
responsáveis pela grande quantidade de droga. Hoje as polícias não têm
estrutura para combater os fornecedores, seja nas fronteiras dos seus estados,
seja nas fronteiras com os países vizinhos produtores. Se nos organizássemos
para o combate efetivo, o PM dentro de uma favela seria responsável pelo
policiamento de proximidade, sem necessitar se preocupar com usuário de droga.
Porque hoje, se o PM não faz o combate ao usuário, dizem que ele recebe arrego,
propina do tráfico. Com uma nova estrutura, a questão do consumidor passaria a
ser do Ministério da Saúde.
O senhor teme uma explosão de
consumo?
Amsterdã liberou áreas para consumo de drogas e depois recuou, porque
aumentou o consumo. Amsterdã não usou a estratégia da recuperação, pelo que
sei. Criou territórios de consumo. Vou mais longe. Falei com colegas que
estiveram como observadores no Canadá. Toronto também colocou áreas para as
pessoas consumirem drogas. Sem sucesso. [Em fevereiro, o jornal canadense The
Globe and Mail publicou longa reportagem para mostrar que o país perdeu a
vanguarda da política contra as drogas para Portugal.] O que temos de fazer é
dar a possibilidade de as pessoas se recuperarem. Vamos liberar? Vamos, mas
nós, como Estado, temos de dar ao usuário a possibilidade de se recuperar.
Missa realizada no Cristo
Redentor pelos 200 anos da fundação da polícia militar do Rio de Janeiro, em
2009
O senhor defendeu essa ideia para
o governador do Rio? Recebeu apoio?
Ele apoia, mas esse tem de ser um movimento
da nação brasileira. Assim como foi em Portugal. Lá eles já estão partindo para
cuidar das pessoas viciadas em jogo! Tem muito aposentado jogando dinheiro fora
em roleta. Lá estabeleceram uma política que é transparente, objetiva,
mensurável. Eles gastam recursos razoáveis. Dão um auxílio que pode chegar a
400 euros para cada usuário em tratamento. Essa deveria ser uma questão
nacional.
O senhor já fumou maconha?
Não.
Mas já tive muitos amigos que consumiam.
Se um filho seu experimentasse
alguma droga, como enfrentaria a questão?
Enfrentaria conversando como sempre
fiz. O diálogo é fundamental.
O senhor é um pai severo?
A
amizade entre pai e filho sempre é o melhor caminho. Eu tento passar senso de
responsabilidade para os meus filhos. Acho que é o grande segredo. Não vou
dizer aqui como um pai deve educar seu filho. Cada qual aja como julgar melhor.
Acho que tento passar para os filhos senso de responsabilidade.
Como foi a sua criação?
Que
lembrança guarda da infância? Minha infância no Sul foi boa. Em casas antigas,
com quintais grandes, espaçosas. Era muita correria, subindo em árvore, comendo
fruta. Tomando banho de açude ou riacho, pescando, andando quilômetros a pé
para jogar futebol. Ia e voltava do colégio a pé. Tinha que caminhar 10
quilômetros por dia. Na área rural, meus avós e meu pai tinham uma pequena
propriedade. Lá não íamos para brincar, e sim para ajudá-los. Carregava sacos
de laranja de 40 quilos, melancias nas costas. Tenho saudade de tudo isso. Mas
o mundo cresceu e isso ficou para trás.
Que lembranças tem dos seus pais?
É católico por causa deles? Isso é coisa de italiano. Sou italiano por parte de
pai, mãe e avós. O italiano é muito apegado à religião católica. Não tinha como
escapar disso. Desde pequenino, tinha de ir à missa, depois da missa tinha o
almoço, com mesa grande e a família toda. Fiz catecismo, primeira comunhão,
ajudei a celebrar missa em Santa Maria. Eu era o terceiro de quatro filhos. Meu
pai trabalhou na roça e na ferraria do avô até arrumar um emprego no Banco do
Brasil.
Beltrame em encontro com
moradores de Laranjeiras, Flamengo e Botafoga no quartel do Bope, em 2009
Na juventude, o senhor morou em
uma pensão em Bagé, quando começou a faculdade. Gostava de farra ou era mais comportado?
Acho que sempre fui comportado. Mas nunca fui um cara fechadão. Sempre consegui
me relacionar bem com todo mundo.
O senhor já fez análise, ioga,
alguma terapia?
Não. O que faço agora é fisioterapia, por causa da coluna
[risos].
A discussão atual de segurança se
limita à maioridade penal, a reduzir a idade em que um jovem pode ser
responsabilizado criminalmente. O senhor já se disse favorável à redução da
maioridade. Não é uma posição em choque com a pregação em defesa da descriminação
das drogas?
São coisas totalmente diferentes. A melhor opção para mim em
relação à maioridade penal não é a idade. O foco da discussão deveria ser
outro. Uma pessoa com 15 ou 40 anos que cometeu um crime tem de ir para um
lugar onde se recupere. Não estamos vendo essa discussão. Ficamos só no aumenta
ou diminui a idade penal. O número de menores que reincidem na prática
delituosa mostra que estamos fora do foco. Aquele menor que esfaqueou o médico
na Lagoa Rodrigo de Freitas havia cometido 15 delitos antes. Faltou
policiamento na Lagoa? Lógico que faltou, se mataram uma pessoa ali. Ali e em
qualquer lugar da cidade que tenha havido uma pessoa morta faltou policiamento.
Eu me pergunto: e as 15 outras vezes que prendemos esse menor? O que fizeram
com ele? Temos de ver onde essas pessoas devem ficar, como evitar a
reincidência. Só acho que, na rua, o infrator não pode ficar. Na discussão
hoje, prefiro reduzir para os 16 anos, mas não é a melhor solução. Sem dúvida
nenhuma.
As ideias de maior repressão às drogas
e de endurecimento das leis penais parecem hoje majoritárias na sociedade.Esse
espírito me parece contraditório com a ideia de descriminação e de tratamento
de usuários.
Claro. A sociedade age assim porque o tecido social para suportar
certas coisas se rompeu. A sociedade não aguenta mais. É a demonstração da
falta de crença nas instituições, entre elas a polícia, o Judiciário, os
responsáveis pela assistência social. Elas querem endurecer porque não aguentam
mais. Fui muito cobrado quando ocupamos o Complexo do Alemão e os traficantes
foram filmados fugindo pela Serra da Misericórdia. Diziam: "Por que o
senhor não mandou os helicópteros e tomou uma providência contra aquela
fuga?".
Seria uma chacina.
Mas não é essa
a nossa função. É pacificar. As pessoas não aguentam mais. Tem de haver uma
política que tenha começo, meio e fim. Não se trata só de encarceramento ou não
encarceramento. O que se faz hoje contra a violência urbana? Segurança pública
hoje é sinônimo de polícia. Isso é um erro grave.
Com o governador Sergio cabral,
que o convidou para assumir a Secretaria de Segurança Pública em 2006
A polícia é parte do problema?
Sim. Temos de criticar a polícia, falar de suas falhas. Mas temos de perguntar:
o que estão oferecendo para o jovem em situação vulnerável? O Estado perdeu a
capacidade de trazer o jovem para si. Um país onde 52 mil pessoas morrem por
crime violento é, me desculpem, estado de barbárie. Mas é só falta de polícia?
Não é. Posso estar sendo interpretado assim: o Beltrame quer fugir da sua
responsabilidade. Mas mostramos resultados no Rio. Em junho, tivemos o menor
número de homicídios da história para um único mês. [O índice de 272 homicídios
foi o menor dos últimos 24 anos, quando foi iniciado o controle.] A polícia
está enxugando gelo por uma série de problemas: recursos penais, decisões
judiciais etc. A polícia não tem capilaridade para tudo. Mas tem de ser olhado
o que é feito de assistência social e prevenção. Que perspectiva se dá para um
jovem? Vão dizer: a secretaria tal, o ministério tal colocou R$ 40 milhões. Mas
tem de dizer onde isso foi gasto, qual o custo-benefício.
Quando o senhor assumiu o cargo
de secretário de Segurança, o índice de homicídios era de 41 para cada grupo de
100 mil pessoas. Hoje são 26 para cada 100 mil, redução de quase 40%.
Com o
número deste mês, deve chegar a 25 por 100 mil.
Mas a Organização Mundial da
Saúde afirma que a taxa aceitável é de, no máximo, dez homicídios para cada 100
mil pessoas. O senhor tem a perspectiva de chegar a esse número aceitável?
Não.
Precisamos não só melhorar a polícia, mas também retirar o jovem da situação de
risco. O que a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) fez no Rio foi desafiar a
ideia de que segurança é um caso só de polícia. Não entramos nas favelas para
pegar droga. Entramos para permitir que outras ações do Estado aconteçam. A UPP
é uma janela para alguém fazer mais coisas, seja de que nível for. A sociedade
ainda tem um olhar marginal para a favela. O Estado brasileiro não tem uma
agenda para a favela. A preferência nossa foi ir a regiões em que as pessoas
eram segregadas havia 40 anos. Tem de haver uma agenda concreta. Isso eu não vejo
acontecer. A sociedade quer a favela para ter cozinheira, faxineira e
lavadeira. Enquanto olharem a favela como gueto, as coisas serão difíceis. Quem
abandonou as pessoas lá e só se lembra delas em tempo de campanha eleitoral não
foi a segurança pública.
Pelos números, o Rio deveria
comemorar a redução da criminalidade. Mas o sentimento majoritário hoje é de
degradação da política de segurança. O projeto das UPPs acabou?
A UPP não
acabou, não vai acabar. Desculpe a pretensão, mas é um grande projeto. A única
coisa boa que aconteceu nesses lugares nos últimos 40 anos. A UPP é hoje
projeto reconhecido pelas Nações Unidas. Diminuiu em 72% os homicídios dentro
dessas áreas. Diminuiu em 82% a letalidade violenta, que é o policial que mata
e chuta porta. Diminuiu a incidência de pessoas baleadas em hospitais. Diminuiu
a evasão escolar nas áreas atendidas. A UPP tem problemas nos grandes
complexos. No Alemão, onde moram 140 mil pessoas, na Rocinha, que tem 110 mil.
Temos lugares, como Tijuca, Cidade de Deus, Babilônia, Jardim Batan, que vão
muito bem. Os índices de criminalidade na cidade do Rio estão despencando há
seis meses, desde janeiro. Mas aconteceram aqui episódios com repercussão
imensa. Tivemos o incidente na Lagoa que foi péssimo para todos, em especial
para aquela família. Tivemos a morte na estação do metrô da Uruguaiana, tivemos
o nosso bispo assaltado. As pessoas se sentem agredidas. O sentimento de
insegurança se eleva. Mas os índices estão melhores do que os do ano passado e
talvez do que os de anos anteriores.
Polícia militar inaugura
destacamento no Morro São José Operário, ano passado/; ao fundo, pixo do Comando
Vermelho
E os PMs filmados por câmeras do
próprio carro matando jovens; a elite da tropa de elite do Rio, o Bope, acusada
de corrupção e investigada por ter participado da ocultação de cadáver do
Amarildo, cujo assassinato na Rocinha virou um símbolo dessa fase de degradação?
Mas não podemos pegar três questões e julgar a qualidade da segurança pública
que tem de cobrir 16 milhões de pessoas. Estamos fazendo as investigações em
sigilo e vamos cortar na carne. Sempre tinha aquela história de corporativismo.
Não tem nada disso mais. Mas temos de preservar o Bope. O Batalhão de Operações
Policiais Especiais é considerado uma das melhores tropas especiais do mundo.
Vamos tirar essas peças, como já tiramos. O caso Amarildo é muito triste. Num
lugar emblemático, onde se havia feito todo aquele esforço de pacificação.
Aconteceu, mas colocar o projeto UPP em xeque? O projeto atende 1,5 milhão de
pessoas, com 10 mil policiais em 200 comunidades. Não se pode jogar fora tudo
isso. Agora, as pessoas têm razão nesse sentimento. Mas temos de agir com
clareza, transparência, apresentar os culpados. Temos de falar de UPP policial,
mas temos também de falar de UPP cidadã. De UPP de prevenção, que dê
perspectiva, que diga que o mundo não termina no muro da favela. Se deixar isso
só e exclusivamente na mão da polícia, as coisas vão ficar difíceis.
O senhor teve uma irmã
assassinada pelo ex-marido, que depois se suicidou.
Ocorreu em 2002 em Santa
Maria. Ela sofria violência doméstica, conseguiu mandado judicial para que o
ex-marido não se aproximasse e ainda assim foi assassinada. À luz dessa
experiência pessoal, a questão de gênero merece atenção especial na segurança
pública? Sem dúvida nenhuma. Minha irmã e nós todos fomos vítimas desse tipo de
crime. Testemunhamos o quanto a mulher sofre e sofria e tem medo de reagir, de
tomar uma atitude que a liberte, sob pena de entregar a própria vida. Ficou com
medo de ir para minha casa, de ir para a casa das minhas irmãs. Com medo. No
dia que ela resolveu, aconteceu isso. Hoje acontecendo, não só a Lei Maria da
Penha como a delegacia da Mulher conduziriam imediatamente esse homem que a
ameaçava. Mas aí era uma paranoia. Tem de ver o que tem de patológico nisso. A
Justiça não é para patologia, não é para louco. Tem de ver que esse cara estava
fora de si, tinha de ser analisado. A medida restritiva contra o marido da
minha irmã tinha oito meses. Parecia uma coisa tranquila. Tem de se cuidar e
investir nisso, porque infelizmente a mulher ainda sofre esse tipo de agressão.
Como recebeu a notícia do
assassinato da sua irmã?
Eu era agente ainda da polícia federal em Santa Maria,
onde morávamos. Estava na delegacia, quando aconteceu a tragédia. O telefone
tocou e me disseram que havia ocorrido algo grave. Saí correndo para a casa da
minha irmã. Até hoje não me lembro nem sequer o percurso que fiz de tão aflito.
Larguei o carro na rua, aberto. Subi ao apartamento e lembro de ver minha mãe
sentada na mesa de jantar, desolada. Era possível ainda sentir o cheiro de
pólvora. Corri para o banheiro e vi os dois corpos no chão. A partir dali
começou aquela coisa macabra de chamar perícia, polícia civil, Instituto Médico
Legal, funerária. Eles deixaram dois filhos, na época com 5 e 7 anos. Foram
criados por minha mãe. Quando ela morreu, foram morar com meu irmão, que é médico
no interior do Rio Grande do Sul.
O senhor segue crítico do que
chama de cultura da desorganização no Rio?
A sociedade se fechou. Talvez não
tenha sabido optar por pessoas que fizessem políticas contrárias ao que temos
aí. Comprou carro blindado e deixou que as coisas acontecessem. Não consigo
entender como chegamos a esse ponto. Não é possível a pessoa morar no metro
quadrado mais caro do país e ficar ali tomando uísque vendo o Vidigal crescer e
não tomar atitude.
Caprichando na dança em um baile
de debutantes da UPP do Morro da Providência
Em termos de segurança, a
Olimpíada preocupa mais do que a Copa?
Olimpíada é muito mais difícil do que
Copa do Mundo. São mais de 180 países concentrados na cidade. Mais de 200
eventos diários, mas tenho tranquilidade de dizer que vamos fazer grandes Jogos
Olímpicos.
Teme confrontos na rua como
ocorreu na Copa?
Estamos preparados. A polícia e a sociedade aprenderam muito.
O Brasil não estava preparado para um movimento daquela dimensão naquele
momento. Acabou sendo difuso, sem liderança. Sem pessoas com quem sentar e
conversar. Todos nós aprendemos. Se houver manifestação, não há problema. O que
não pode é transcender certos atos. Não vai ser com violência que vai se moldar
a maneira de os governos agirem.
A polícia também agiu com
violência. Não tenha dúvida. Temos policiais punidos por isso. Mas é uma
situação difícil para o policial. Ele fica entre o abuso do poder e a
prevaricação. Naquele momento é preciso ter frieza e preparo grandes. O agir e
o não agir. É preciso ser dito que a sociedade não gosta muito da polícia. A
polícia se afastou da sociedade, a sociedade se afastou da polícia. Isso desde
os anos 60. A polícia entrava nas casas, batia, cometia excessos. Sem dúvida,
houve separação. Juntar é algo difícil.
O que gosta de fazer no Rio?
Vou
à Lapa, ao Maracanã, à missa de domingo da PUC por causa do coral, vou à feira
de São Cristóvão, vou a pé à praia, em Ipanema, a três quarteirões do meu
apartamento. Volta e meia levo uma paleta de cordeiro para assar no Chico e
Alaíde, no Leblon, bar perto de casa.
Sobre as facções, o senhor disse
que no Rio não há um senhor das drogas, um senhor das armas. Qual a razão de as
lideranças serem fragmentadas?
Nossa sorte é que o crime aqui não é organizado
como é o PCC em São Paulo. Lá eles não fazem questão de ostentar poder, armas,
não dão tiro para cima. Mas, quando alguma coisa não dá certo, eles vão lá e
matam policiais. No Rio, temos três facções criminosas, que são oriundas da
Falange Vermelha. De brigas internas da Falange nasceram essas três facções,
que se odeiam. Uma vive brigando pelo controle dos pontos de droga da outra.
Está aí a ADA (Amigo dos Amigos) brigando com o Comando Vermelho, que está
enfraquecido, porque quer tomar os pontos de venda de droga deles.
Hasteando a bandeira brasileira e
a do Bope no alto do Morro dos Macacos, onde um helicóptero da PM foi abatido
em 2009
Líderes do Comando Vermelho dizem
que só há UPPs na área em que eles vendem droga, o que beneficiaria as facções
concorrentes. Isso é óbvio. Eles eram 80% do mercado da droga. Sobravam 15% para
a ADA e 5% para o TCP [Terceiro Comando Puro]. Não escolhemos ir para cima do
Comando Vermelho. Fizemos uma parábola da zona sul à zona norte, ou da zona
norte à zona sul [para demarcar as áreas que receberiam UPPs]. Nesse caminho
estava o Comando.
O senhor contabiliza dezenas de
ameaças de morte. Em que grau se preocupa com elas?
Não me preocupo. Desde que
sou policial, duvido que haja uma pessoa que prendi, mandei prender ou
investiguei que eu tenha, desculpe a expressão, feito uma sacanagem. Não bati
em ninguém, não matei covardemente ninguém. Com a experiência de polícia, digo
uma coisa: o bandido vai para cima de um policial ou de outra pessoa porque
bateram no rosto dele, roubaram-no ou porque fizeram sacanagem com ele. Porque
quem recebe essas coisas não esquece. Você bateu no rosto de alguém 20 anos
atrás, mas não se lembra. Mas pode ter certeza de que o cara que apanhou não se
esqueceu da sua cara. Não quero dizer que amanhã eu não possa aparecer com a
boca cheia de formiga. Mas duvido que alguém diga que eu tenha sacaneado
alguém. Fui a muita audiência no Judiciário, prendi muita gente, apreendi
toneladas e toneladas de droga, mas nunca sacaneei ninguém.
No seu discurso, parece que está
deixando a polícia para assumir a política.
Negativo. Não vou ser político, não
quero. Enquanto eu achar que sou útil aqui e não me tirarem, pretendo ficar.
Para desenvolver o meu trabalho tenho de ter consciência crítica a respeito das
coisas. Somos criticados e temos de ser. A sociedade paga e tem de ter retorno.
Mas não podemos ser os únicos criticados. Segurança pública é um jogo que nunca
vamos ganhar. Nunca vou estar satisfeito, feliz da vida. A redução dos
homicídios me estimula, mas o jogo nunca vai ser ganho. Existem variáveis que
você não controla.
O senhor está cansado de exercer
essa função?
Estou cansado. Não tenha dúvida. São oito anos e meio. Acredito
que dá para melhorar. Mas vou sair daqui e não vou arrumar isso. Nosso problema
veio com dom João. Serão gerações e gerações para arrumar.
Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário