Você pode não gostar do estilo,
da batida, do som, da melodia e, principalmente, do conteúdo explicitamente
pornográfico das letras e coreografias. Mas o funk brasileiro tem sido
interpretado, por muitas mulheres do Brasil, como um dos gritos de liberdade nos
dias atuais - com um detalhe importante: quando cantado por elas próprias.
Afirmar que o funk é feminista causa estranheza à primeira vista. Afinal, como
pode uma música que fala em “cachorras”, “vadias” e “popozudas” representar um
movimento que defende, entre outras coisas, o respeito às mulheres? Mas é na
temática sexual que está justamente a resposta para essa questão: ao levantar a
bandeira de que as mulheres têm direito, tanto quanto os homens, a transar
somente por prazer, o estilo musical passa a ser observado com mais atenção por
quem não frequenta os bailes.
“O direito à liberdade sexual é
uma luta histórica do feminismo. Ao dizer ‘o nosso corpo nos pertence’ as
funkeiras estão, anos e anos depois, fazendo ecoar o que as feministas
reivindicavam já na década de 1970”, disse em entrevista ao EL PAÍS a pesquisadora
Carla Rodrigues, professora do departamento de Filosofia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estuda teorias feministas. “O surgimento
e popularização de mulheres funkeiras numa cultura machista como a nossa é
parte de um processo de atualização da luta”, pondera.
Carla é autora de um artigo
publicado em maio de 2012 pela revista Superinteressante justamente com o
título “Funk é feminista”. O texto teve enorme repercussão nas redes sociais,
mas em grande parte negativa. A maioria dos homens e mulheres que comentou o
material na página da publicação repudiou a tese e classificou o estilo musical
como “pouca vergonha” ou “degradante”, pois as letras enaltecem a figura da
“mulher objeto” ou “submissa ao homem”.
Mesmo entre quem se diz feminista
a teoria gera desconfiança. Há quem argumente que não se pode classificar as
funkeiras como feministas se elas não se assumem como parte de um movimento que
briga pela igualdade de direitos, o que a estudiosa rebate. “Não importa se
elas têm consciência de que estão levantando uma agenda feminista. É um pouco
de pretensão achar que essa é uma bandeira somente do movimento, que não tem
dono”, defende.
A professora da UFRJ passou a
olhar o funk sob essa ótica após a ascensão da cantora Tati Quebra Barraco e do
lançamento do documentário “Sou feia mas tô na moda” (2005), da diretora Denise
Garcia. O filme, que leva o nome de uma música de Tati, tem como protagonista
Deize Tigrona e já abordava esse debate. Deize foi uma das primeiras funkeiras
a lançar músicas com letras explícitas e, assim, falar de mulher pra mulher
sobre sexo. “Não conseguiu me comer / Agora, quer me esculaxar / Se liga seu
otário no papo que eu vou mandar / Então, pára de palhaçada, deixa de gracinha
/ Eu dou pra quem eu quiser, que a porra da buceta é minha”, é um dos exemplos
do seu repertório.
Depois de Deize Tigrona e Tati
Quebra Barraco, nos anos 2000, outras mulheres ganharam espaço no funk. Hoje,
entre os nomes em alta se destacam Anitta, MC Carol Bandida e Valesca Popozuda.
Esta última chegou a ser objeto de tese de mestrado na Universidade Federal
Fluminense (UFF), em 2013, sobre a “representação feminina através do funk no
Rio de Janeiro”, de autoria da estudante Mariana Gomes.
“Só o fato dessas mulheres
estarem ocupando um espaço que era predominantemente masculino já é um grande
ato de empoderamento feminino”, avalia Maíra Kubík, jornalista e professora do
departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na
avaliação da também pesquisadora em teorias feministas, é preciso ter cautela
ao rotular todo gênero musical como feminista, mas também não se pode
desqualificar a importância do funk na propagação do direito à liberdade
sexual.
“O funk é feminista? Depende do
contexto. No funk é possível encontrar mulheres negras, gordas, loiras e de
diversos outros tipos físicos cantando e reivindicando seu prazer sexual. Isso
pode ser visto como uma entrada do feminismo na sociedade, por meio do
questionamento e da autorreferência de termos como ‘cachorra’, ‘piriguete’ e
‘puta’. A ressignificação dos termos, por meio de sua apropriação é uma tática
que vem crescendo dentro do feminismo, que tem como objetivo principal lutar
contra a culpabilização das vítimas de violência sexual”, escreveu a blogueira
Bia Cardoso, em artigo publicado no site Blogueiras Feministas em agosto de
2014.
Se por um lado a elite da música
olha com desdém para o funk, por outro, há quem veja em sua origem - as favelas
cariocas - a razão para que os sucessos das funkeiras não seja reconhecido como
parte de um processo do avanço da revolução sexual feminina no Brasil. Seria
então preconceito não considerar a relevância do funk cantado por mulheres e
ignorá-lo na discussão sobre o feminismo nas periferias? Talvez. E essa é a
opinião de muitos dos que vão às redes defender o gênero musical,
independentemente da sua qualidade sonora. O fato é que, longe do olhar atento
dos internautas e intelectuais, milhares de brasileiras cantam como se fossem
hinos, em pancadões, músicas consideradas por muitos politicamente incorretas e
pornográficas, como avaliou a própria Valesca Popozuda, que há alguns anos vem
se declarando feminista. "Chega de hipocrisia. As mulheres têm o direito
de falar sobre sexo. Mas muitas se calam por medo do que a sociedade vai
achar."
Fonte: Elpais
Nenhum comentário:
Postar um comentário