Contra o bem de todos e a felicidade geral da nação, governo
viola princípios da Constituição e do Sistema Único de Saúde.
O movimento de prostitutas e a reforma sanitária, que levou
à construção do Sistema Único de Saúde, têm pontos comuns em suas trajetórias:
processos de diálogo, de criação e de ação...
Se a Saúde tornou-se dever do
Estado e direito de todos – orientada pelos princípios da universalidade,
igualdade (sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie), integralidade,
descentralização e participação da comunidade –, o movimento de prostitutas
nasceu denunciando a desigualdade, o preconceito e a discriminação, e afirmando
o direito ao trabalho com dignidade, respeito e cidadania.
Passados 30 anos, ao vetar e depois alterar drasticamente
uma campanha de prevenção de Aids supostamente construída em parceria com as
prostitutas, o governo usa esse grupo
social para afirmar o que deseja, ignora conquistas do movimento social e viola
diversos princípios democráticos e do SUS.
Em primeiro lugar, o da participação da comunidade. A
oficina destinada a criar a campanha, promovida em março pelo Departamento de
DST, Aids e Hepatites Virais, resultou em peças que destacavam como elementos
fundamentais na prevenção a felicidade (“sou feliz sendo prostituta”), a
cidadania (“o sonho maior é que a sociedade nos veja como cidadãs), a luta
contra a violência (“não aceitar as pessoas da forma que elas são é uma
violência”) e a camisinha. O que fez o governo? Ignorou todos aqueles elementos
que comprovadamente contribuem para a prevenção, limitando-se a incentivar
imperativamente o uso da camisinha, como se fosse um gesto puramente objetivo e
mecânico, dissociado de subjetividades, direitos e vulnerabilidades. É a
higienização da vida.
Em segundo lugar, ao selecionar apenas determinada mensagem
entre as construídas na oficina, recusa o princípio da igualdade, por negar às
prostitutas o direito de expressar seus sonhos e ideais, de cidadania,
afirmação de identidade e visibilidade social, deixando de reconhecê-las como
cidadãs e usuárias do SUS.
Ações de prevenção e promoção da saúde fundadas em
diretrizes de cidadania, deve-se destacar, também fazem parte de outro
princípio da Saúde violado, o da integralidade.
Ainda mais, com essa forma de agir, o governo se coloca na
arrogante posição de só permitir às prostitutas aparecer como vítimas ou
vetores, portanto, sujeito sem voz, que só tem o direito de ser resgatado pelo
Estado provedor do único elemento (“pegue a sua camisinha na unidade de saúde”)
que irá salvá-las da Aids.
A atitude do governo também revela a tentativa de alimentar
a estrutura moral da família a qualquer custo, numa covarde cumplicidade com um
discurso que relega prostitutas e outros segmentos “inconvenientes” à margem de
um modelo de sociedade.
Ao se pronunciar logo de início contra o texto “Sou feliz
sendo prostituta”, demonstra também a arrogância de não acreditar que uma
prostituta pode ser feliz e o medo de que nós expressemos um desejo de
felicidade que vai contra esse modelo.
E o desejo dos políticos? Que arranjos estão por trás dessa
movimentação? Existe aí um projeto de felicidade? Por que só eles podem ser felizes?
Qual o preço a ser pago pelas prostitutas? Nossos corpos, desejos e vidas é que
estão pagando o preço de acordos políticos e negociações partidárias, o custo
da prática da censura e do encerramento do diálogo.
Aqui ficaremos, sim, felizes com nossa profissão.
Acreditando que não devemos conviver com a violência e a discriminação e que
temos de ser respeitadas por nossas escolhas cidadãs. E insistindo que o
governo assuma, com coragem, a construção de políticas baseadas nos princípios
constitucionais para toda a população, independentemente de orientação sexual,
identidade de gênero ou profissão.
Fonte: Beijo da Rua
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