“Você vai aprender a gostar de homem”. Essa terrível frase é
tristemente comum em caso de violência sexual contra mulheres lésbicas no
Brasil. A estatística assusta: 6% das vítimas de estupro que procuraram o
Disque 100 do governo federal durante o ano de 2012 são mulheres homossexuais
vítimas de violência, em sua maioria de fundo sexual.
Chamada de ‘estupro
corretivo’, a violação tem requintes de crueldade e é motivada por ódio e
preconceito, o que torna a descoberta dos casos algo complexo para o sistema de
direitos humanos nacional. Os serviços de Diversidade Sexual e Gênero da União
e a Secretaria de Políticas para Mulheres do governo gaúcho estão trabalhando
na identificação e punição dos crimes, e concentram esforços na sensibilização
das vítimas para denunciarem o estupro – o que nem sempre ocorre devido ao
temor pela exposição.
As estatísticas do serviço telefônico de denúncia vinculado
à Secretaria Nacional de Direitos Humanos foi compartilhada com a Secretaria
Nacional de Políticas para as Mulheres, o Conselho Nacional LGBT e os
movimentos sociais ligados à diversidade sexual. De acordo com a coordenadora
da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), Roselaine Dias, que representa a entidade
no Conselho LGBT, os dados não especificam a prática de estupro homofóbico.
“São 6% de violação de mulheres lésbicas. Parte deste índice é de estupro
corretivo, porque temos como referência outros dados do Ministério da Saúde que
nos permitem fazer um comparativo percentual coincidente”, explica. Segundo
ela, a fonte reveladora da realidade de estupros corretivos é o serviço de
HIV/Aids. “Temos um quadro que aponta que muitas mulheres portadoras do HIV
contraem o vírus em decorrência de estupros com esta motivação”, diz.
A violência é usada, explica, como um castigo pela negação
da mulher à masculinidade do homem. Uma espécie doentia de ‘cura’ por meio do
ato sexual à força. A característica deste tipo de prática é a pregação do
agressor ao violentar a vítima. As vítimas são em sua maioria jovens entre 16 e
23 anos, lésbicas ou bissexuais. Alguns agressores chegam a incitar a
“penetração corretiva” em grupos das redes sociais e sites na internet. Em
março de 2012, por meio de denúncia da Associação Brasileira de Lésbicas,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Polícia Federal prendeu Emerson
Eduardo Rodrigues, de Curitiba, e Marcelo Valle Silveira Mello, de Brasília,
autores da página Silvio Koerich, que incitava o ódio contra homossexuais e
ensinava o ‘estupro corretivo’. No final do mesmo ano, em Alagoas, ao menos
dois casos ganharam repercussão nacional. Geralmente, os casos chegam ao
conhecimento da sociedade e das autoridades de forma isolada, quando envolvem
mais de um agressor e alguma instituição de notoriedade. No dia 11 de maio
deste ano, uma estudante foi vítima de um estupro corretivo dentro do campus da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A vítima estava acompanhada de
uma menina em uma festa e, quando se afastou, foi abordada por um sujeito que
lhe disse que iria ensiná-la a gostar de homens.
Casos de Porto Alegre foram descobertos no serviço de
HIV/Aids
Até então conhecido internacionalmente pela forma epidêmica
com que vitima mulheres na África do Sul, o estupro corretivo é uma realidade
nova para as autoridades brasileiras. Porém, ainda que sem dados oficiais
consolidados, a Liga Brasileira de Lésbicas afirma que casos ocorrem de forma
recorrente no Rio Grande do Sul. “Sabemos de casos que atendemos, pela rede de
atuação que a ONG faz com o serviço de HIV de Porto Alegre. Como os registros
de estupro são feitos nas delegacias, é mais difícil saber ao certo quando e de
que forma acontecem”, diz Roselaine Dias.
Lamentavelmente, os estupros corretivos chegaram ao
conhecimento do poder público por meio dos casos em que a vítima contraiu o
vírus HIV, o que é ainda mais preocupante, alerta a secretária de Políticas
para Mulheres, Ariane Leitão. “Estes dados surgem no serviço de HIV, que não é
o local adequado para iniciar uma denúncia deste tipo. É possível que outros
casos estejam ocorrendo e estejam invisíveis a nós”, salienta. Segundo ela, a
interligação da rede estadual de atendimento e proteção às mulheres vítimas de
violência precisa ser institucionalizada. “O debate sobre violência contra
mulheres tem que sair do foco da violência doméstica. Temos que ter a
compreensão da violação de gênero. Estes casos de estupros corretivos revelam
uma das piores faces da violência contra mulher, contra o ser humano que se
atreve, na visão destes agressores, a negar a masculinidade da sociedade”,
afirma.
O serviço de denúncia no RS, o Escuta Lilás, é uma forma de
acolhimento das vítimas e de denúncias para o encaminhamento dos processos
criminais contra os agressores, recorda a secretária. Conforme Ariane, uma
coordenadoria específica de Lésbicas, Bissexuais e Transexuais femininas foi
criada para discutir as especificidades das políticas públicas para a
diversidade sexual. “As mulheres também sofrem preconceito dentro do meio LGBT.
São minorias, dentro das minorias. Vemos muito mais casais de homens se
assumindo do que de mulheres, por conta do receio de algumas lésbicas com a
cultura machista que ainda nos envolve”, ressalta.
“A violência não muda a orientação sexual delas”, diz Liga
Brasileira de Lésbicas
Uma Sala Lilás criada no ano passado dentro do Instituto
Geral de Perícias já está possibilitando o atendimento humanizados às mulheres
vítimas de violência sexual. O espaço evita que vítima e agressor convivam no
mesmo ambiente na hora do registro dos crimes ou que as mulheres sejam inibidas
na hora da denúncia. “Antes a vítima tinha muita exposição. Agora, ela denuncia
junto ao Departamento Médico Legal, onde ninguém irá saber que ela está lá
denunciando especificamente uma lesão corporal de abuso sexual, porque é onde
realizamos todos os exames de lesão corporal”, explica a Corregedora Geral do
IGP, Andréa Brochier Machado. Além disso, a escuta acolhedora e o atendimento
psicossocial garantem o encaminhamento da vítima de forma mais qualificada,
afirma. “O nosso trabalho pode vitimar ainda mais a pessoa. Por isso, temos o
cuidado de oferecer atendimento psicológico em Porto Alegre. No interior,
estamos buscando parceria com as prefeituras para ampliar a oferta de
psiquiatras e psicólogos para este atendimento”, fala Andrea.
A tipificação dos crimes, inclusive dos estupros, poderá ser
feita em breve, informa Andrea. “Estamos colocando o sexo no registro das
perícias. Isto permitirá quantificarmos as mulheres que passaram pelo DML, o
tipo de lesão e mapear os crimes. Nos surpreende esta dupla violência com as
mulheres lésbicas. Pela prática que tenho, devem ser os crimes com maior
crueldade, porque são movidos por ódio, como se o agressor quisesse impor a sua
compreensão sobre sexualidade como a ideal. Uma relação de dominação e controle
típica da nossa cultura machista”, avalia a perita criminalística.
De acordo com a coordenadora da LBL, Roselaine Dias, os
estupros corretivos precisam ser vistos para além das vítimas, porque em nenhum
momento elas mudam sua orientação sexual após a violência sofrida. “Não afeta
em nada a concepção da vítima sobre sua sexualidade. Nenhuma diz que deixará de
sair com menina por ter sido vítima. O diferencial é que, quando ela está
sofrendo a violência, é o agressor que explica que tem um ‘motivo’. Ele é que
tem que ser tratado. Precisamos combater os preconceitos culturais e a forma de
educar as pessoas sobre as relações afetivas, sexualidade e identidade de
gênero. Só assim teremos uma solução”, diz.
Fonte: Sul 21
Nenhum comentário:
Postar um comentário