Meninos brincam em carvoaria, em
foto de João Roberto Ripper
Comemorou-se, ontem quinta (28),
o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo . O sistema nacional de combate à
escravidão resgatou cerca de 50 mil pessoas em operações de fiscalização em
fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras,
oficinas de costura, entre outros, desde 1995.
Comemorou-se, ontem quinta (28),
o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. O Brasil é citado
internacionalmente como exemplo global à escravidão contemporânea. Um dos
motivos enlouqueceria os haters maniqueístas (que só têm um par de Tico e Teco
entre as orelhas): o sistema nacional de enfrentamento a esse crime tem sido
uma política de Estado, não de governo ou de partido.
Eu sei que é difícil para quem
enxerga a política como torcida de jogo de futebol, mas convenhamos que o mundo
é maior que o Jardim da Infância.
Criada por Fernando Henrique (que
reconheceu diante das Nações Unidas, há 21 anos, a persistência da escravidão
contemporânea em nosso território), aprimorada por Lula (que ampliou os
mecanismos de combate a esse crime) e mantida por Dilma, a política nacional
observou conquistas importantes sob governadores, como Geraldo Alckmin, ou
prefeitos, como Fernando Haddad.
Ou seja, não adianta você fazer
cara de nojinho. Independente do político em questão ser questionável em outros
aspectos, ele teve contribuições positivas para o tema.
O que não deveria ser surpresa,
porque com exceção de alguns semoventes no Congresso, em fazendas e empresas ou
na sociedade, não há alguém em são consciência capaz de defender trabalho
escravo.
O sistema nacional de combate à
escravidão resgatou cerca de 50 mil pessoas em operações de fiscalização em
fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras,
oficinas de costura, entre outros, desde 1995. Nesse período, o problema deixou
de ser visto como algo restrito a regiões de fronteira agropecuária, como a
Amazônia, o Cerrado e o Pantanal e, paulatinamente, passou a ser um problema
também nos grandes centros urbanos.
Milhões de reais em condenações e
acordos trabalhistas foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar
negócios com que utiliza esse tipo de crime. Temos um Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo, além de estados e municípios engajados em planos
regionais.
Mas a política nacional de
combate a esse crime está sofrendo pesados ataques de grupos que perdem
dinheiro com ela.
Por exemplo, há – pelo menos –
três projetos tramitando no Congresso Nacional para reduzir o conceito de
trabalho escravo.
Hoje, são quatro elementos que
podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por
dívida, condições degradantes (quando a violação de direitos fundamentais
coloca em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (em que
ele é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga que acarreta danos à sua
saúde ou risco de morte).
Mas há parlamentares que afirmam
que é difícil conceituar o que sejam esses dois últimos elementos, gerando
“insegurança jurídica''. Querem que as condições em que se encontram os
trabalhadores, por mais indignas que sejam, não importem para a definição de
trabalho escravo, mas apenas se ele está em cárcere ou não.
Ou seja, se trabalhadores bebiam
a mesma água do gado, se eram obrigados a caçar no mato para comer carne, se
ficavam em casebres de palha em meio às tempestades amazônicas, se pegavam
doenças ou perdiam partes do corpo no serviço e se eram largados sós, entre
tantas outras histórias que acompanhei em mais de uma dezenas de operações de
libertação de escravos que participei no campo desde 2001.
O fato é que com o confisco de
propriedades tendo sido aprovado, no ano passado, após 19 anos de trâmite, a
bancada ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito. É aquela coisa:
concordo que se puna assassinato…desde que sejam apenas os cometidos por armas
de fogo. Ou seja, praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e
grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos
modernos de escravização adotados são sutis.
Com a mudança no conceito,
milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser chamadas de escravos modernos
simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por
outro nome.
Ao mesmo tempo, a “lista suja''
do trabalho escravo foi suspensa em decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do
Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes de 2014, a pedido de uma
associação das incorporadoras imobiliárias. Desde 2003, esse cadastro público
que reúne empregadores flagrados com esse crime pelo Ministério do Trabalho e
Emprego tem sido uma das maiores ferramentas para o combate à escravidão. Ele
garante ao mercado transparência e informações para que empresas nacionais e
internacionais possam gerenciar os riscos de seu negócio. E, consequentemente,
proteger o trabalhador.
Por enquanto, a imprensa e a
sociedade civil, utilizando a Lei de Acesso à Informação, reconstruíram e
relançaram a lista a fim de manter a transparência sobre casos de trabalho
escravo. Essa “nova lista” tem sido utilizada por várias companhias para
análise de risco e bloqueio daqueles que utilizaram trabalho escravo. Mas os
processos judiciais contra jornalistas e instituições que pedem transparência
nos dados sobre trabalho escravo (e, por conta disso, cumprem um papel que
deveria ser do poder público) têm se acumulado.
Por fim, caso seja aprovado do
jeito em que está o projeto que regulamenta a terceirização e está tramitando
no Congresso Nacional, o combate ao crime sofrerá um revés. Casos famosos de
flagrantes de trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou
terceirizados em que o governo federal e o Ministério Público do Trabalho
puderam responsabilizar grandes empresas pelo que aconteceu na outra ponta.
Consideraram que havia responsabilidade solidária por se constatar
terceirização de atividade-fim.
Com o projeto aprovado, isso será
mais difícil. Além do mais, os chamados “coopergatos'' (cooperativas de fachada
montadas para burlar impostos) irão se multiplicar e o nível de proteção do
trabalhador cair.
Há setores no governo federal, em
governos estaduais e municipais e em diversos partidos que têm atuado
firmemente no combate a esse crime. Contudo, há outros setores que fazem corpo
mole ou agem contra. Nos corredores do Palácio do Planalto e da Esplanada dos
Ministérios, por exemplo, há quem defenda reservadamente que melhor seria
deixar o conceito de trabalho escravo retroceder e a “lista suja'' ser
derrubada porque a situação atual cria problemas para setores econômicos, como
o da construção civil, que tocam obras do PAC. Ou doam recursos para campanha.
Ou seja, a construção da política
nacional de combate a esse crime, por mais imperfeita que tenha sido, foi feita
de forma suprapartidária. Corremos o risco de, agora, sob a velha justificativa
da “governabilidade'' (palavra escrita em todos os muros do inferno) ou da
“crise econômica'' (grandes atrocidades são cometidas no momento em que a
proteção aos trabalhadores é mais necessária) retrocedermos no marco legal e no
processo de erradicação da escravidão também de forma suprapartidária.
Às vezes, acho que falta coragem.
Mas depois percebo que é vergonha na cara mesmo.
Fonte: Blog de Sakamoto
Nenhum comentário:
Postar um comentário