Quando obstáculo das tarefas da
casa e criação dos filhos se atenua 'é porque outras mulheres, mais pobres e
negras, estão trabalhando em nossas casas', aponta autora do livro 'História da
Matemática'.
Mulher, ciência, matemática,
filosofia, política: estes são os elementos que “dão samba” na história da
professora Tatiana Roque, do Instituto de Matemática da UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro). Ela é uma das editoras da revista DR (sigla para a
expressão “discutir a relação”), espaço online que criou com um grupo de
mulheres para debater política e cultura, problematizando também questões do universo
acadêmico-científico. No final de 2015, a convite do professor Márcio Tavares
D'Amaral, Tatiana escreveu o artigo “As mulheres e a objetividade”, em que
aborda o modelo vigente – calcado em habilidades tidas como masculinas (“foco,
concentração, distanciamento, precisão, enrijecimento do corpo, dureza frente à
aridez e à solidão do trabalho intelectual”) – e questiona: “Por que até hoje
os homens ocupam posições de destaque e poder nos meios científicos,
especialmente nas ciências ditas duras?”.
Nesta entrevista, ela conta sobre
sua formação, trajetória profissional e interesse nas questões de gênero
associadas à ciência. Graduada em Informática, com mestrado em Matemática
Aplicada, notou que não seguiria pela matemática pura ao escrever sua dissertação.
“Era áspero, exigia uma dedicação que atrapalhava outras faces da vida que
sempre me foram muito caras, como o samba e a política”, diz Tatiana.
Assessorando o então vereador Augusto Boal (fundador do Teatro do Oprimido) e
estudando com o filósofo Claudio Ulpiano, ela mergulhou no pensamento de
Foucault, Deleuze, Guattari, Stengers e pensou em abandonar a matemática. “Mas
a filosofia do e é mais interessante do que a do ou”, ponderou Ulpiano.
Canadenses aprendem código de
programação em Toronto
Tatiana passou para o concurso
para professora da UFRJ e fez doutorado em História e Filosofia da Ciência,
completando sua formação no centro de estudos Sphere, na França, dedicando-se
em especial à abordagem qualitativa e à história e filosofia da teoria dos
sistemas dinâmicos. De volta ao Brasil, criou uma pós-graduação, escreveu um
livro sobre História da Matemática, e dirigiu seu olhar crítico para questões
relacionadas a grupos minoritários. Ela acredita que práticas históricas
permeiam o modo de fazer ciência e que, diante de desafios atuais como a
sustentabilidade e a justiça social, a universidade tem o papel e a
oportunidade para inventar novos parâmetros. Leia a entrevista completa:
Tatiana Roque: Antes do doutorado, eu já tinha passado no concurso
para professora do Instituto de Matemática da UFRJ, onde havia um grupo forte
de ensino de matemática, fundado pela Maria Laura Leite Lopes, com interesse
pela história da matemática. Na volta da França, continuei dando aulas no
Fundão e criamos, eu e colegas com que trabalho até hoje, uma pós-graduação em
Ensino de Matemática, que agora tem um curso de doutorado em Ensino e História
da Matemática e da Física. A ausência de material adequado para ensinar
história da matemática, que não reproduzisse narrativas triunfantes sobre o
desenvolvimento da tal rainha das ciências, acabou me levando a redigir notas
de aula, para sintetizar e comentar novas leituras feitas pela comunidade
internacional de pesquisadoras e pesquisadores em história da matemática. Esses
textos, aos poucos, foram transformados em livro: História da Matemática, uma
visão crítica desfazendo mitos e lendas (Zahar, 2012; 512 páginas - R$ 74,90).
Até aí, nada de gênero... Nem nas
reescrituras da história, digo, no objeto. Os novos olhares para as práticas
matemáticas do passado explicitaram enormes injustiças, principalmente com os
árabes. Quanto às mulheres, não me convencem muito tentativas de pinçar um
exemplo ou outro, mais ou menos falsificado. Melhor assumir que, pelo menos até
o século 19, participamos pouco, ou somente como coadjuvantes, do glorioso
caminho da ciência. Por quê?
No artigo “As mulheres e a
objetividade”, você trata de um modelo de ciência que se constituiu como
masculino. Em que medida, atributos associados ao feminino podem contribuir
para a construção de novos parâmetros de pensamento?
Ao ler o artigo, alguém perguntou
se estou dizendo que as mulheres não são objetivas. Claro que não disse isso!
Interessante como essa pergunta denuncia uma preocupação: há uma crença na
objetividade como virtude e seu valor no fazer científico. A objetividade é
tomada como um conceito atemporal e uma habilidade imprescindível para a
prática científica. Mostrar que a objetividade tem uma história, bem delimitada
no tempo, intimamente relacionada a determinados valores epistêmicos, implica
vê-la de outra forma. Não se trata de dizer que a ciência deva ser subjetiva, o
que seria bobagem. Mas notar como um certo modo de fazer ciência – que se
afirmou durante o século 19, com implicações na afirmação de uma perspectiva
sobre sua intervenção na sociedade – trouxe a clivagem entre objetividade e
subjetividade.
[Lorraine] Daston e [Peter]
Galison mostram, de modo surpreendente, que a objetividade implica unificar
diferentes valores epistêmicos que operam, ao mesmo tempo, um recalque da
subjetividade – tida como vontade livre, tentação do sujeito a se projetar para
fora de si. Era preciso que a subjetividade se constituísse como algo privado,
de foro íntimo, ao passo que a objetividade se afirmava como habilidade para
decifrar o mundo e seu funcionamento. Os homens de ciência passaram a se ver como
obstáculo ao saber científico. O livro Objectivity [de Daston e Galison, sem
tradução no Brasil] não aborda diretamente a questão das mulheres na ciência,
apenas em algumas passagens:
“no ethos da objetividade
mecânica é difícil não perceber o incentivo ao trabalho duro ou os tons
masculinos das expressões ‘desvendar a natureza’ ou ‘homens de ciência’, que
era sinônimo de cientistas (p.202)”
Acho interessante sublinhar
virtudes epistêmicas específicas que estão em jogo na oposição privado/público,
correlata da clivagem subjetividade/objetividade. É impossível não perceber o
paralelismo com o confinamento das mulheres à vida privada, já não tão
‘natural’ a partir do século 19, como Virginia Wolf descreve de modo avassalador
em Three Guineas. Em 1938, pediram que ela assinasse um manifesto contra a
guerra, que trazia argumentos em favor da cultura e da liberdade intelectual.
Mas que ideia era essa de cultura e liberdade intelectual construída com o
sacrifício das mulheres? Na Inglaterra, havia um fundo financeiro para ajudar
os filhos dos chamados “homens cultos” a frequentarem a universidade. Sem poder
investir com dinheiro, as mulheres tinham que contribuir com trabalho para que
seus irmãos homens fossem à universidade. “Tudo de grande que havia na
Inglaterra tinha sido construído para os homens. As mulheres tinham passado
suas camisas, preparado suas refeições e costurado em seu canto para tornar
tudo aquilo possível. Por isso, o que parecia impressionante e grandioso, era,
ao mesmo tempo, estrangeiro e doloroso”. Virginia era educada em casa,
confinada à vida privada. Por que agora, já uma escritora conhecida, iria
“cerrar fileira com os homens cultos”? Ela se recusa a assinar a carta.
Qual o maior obstáculo para as
mulheres avançarem na carreira acadêmica e que tipo de preconceito elas
enfrentam? Você teve ou ainda tem dificuldades no meio de pesquisa e ciências,
considerando sua atuação em matemática? Quais foram as maiores?
O caminho entra a vida privada e
a vida pública ainda é um problema para as mulheres. Na universidade, a maioria
de nós é de classe média e temos alguma infraestrutura para nossos filhos e
filhas. Mas as tarefas caseiras, os cuidados e as preocupações com os filhos
pesam, ainda hoje, diferentemente sobre homens e mulheres – principalmente as
separadas. Quando esse obstáculo se atenua é porque outras mulheres, mais
pobres e negras, estão trabalhando em nossas casas. O trabalho doméstico ainda
é um entrave à libertação das mulheres.
Há obstáculos mais sutis e
difíceis de notar. Entendi muito cedo que, para me sair bem no meio
intelectual, tinha que ser um pouco macho: ter sempre uma resposta, não
titubear, ser afirmativa, fazer valer minhas opiniões com base em argumentos,
mostrar capacidade, precisão e inteligência. Na campanha #meuprimeiroassedio,
fiquei pensando por que não sofri assedio. Acho que nunca fui vista como uma
mulher normal. De certo modo, sempre escondi minha sensualidade, nunca
demonstrei fragilidade. E confesso que isso não é bom, é apenas a outra face do
machismo.
As habilidades que citei não são
masculinas por si só. Mas há muito tempo têm sido exercidas e valorizadas por
homens nos espaços de poder que ocupam. Há modos de falar e de se comportar
nesses lugares que não são suportados facilmente pelas mulheres. Que mulher já
não se sentiu desconfortável num meio em que além da maioria de homens, impera
um jeito de falar como tal, um código implícito, um ritual a ser seguido? O tom
sempre razoável, o discurso embasado, a argumentação erudita – valores tidos
por universais, mas que foram universalmente impostos por homens. Não que eles
sejam mais racionais e as mulheres mais afetivas: essa divisão não nos serve,
não é espontaneidade que queremos. Queremos lembrar que há uma história, mesmo
para habilidades e valores mais consolidados como a racionalidade.
Nos ritos universitários está
presente a memória de um espaço construído por e para homens, durante muitos
séculos. Pontuar esses ritos já implica romper com a naturalização de
determinadas relações com o saber e com o conhecimento. A minguada participação
das mulheres nos cursos de Exatas tem a ver com esse processo. Há muitas
mulheres fazendo ciência, mas elas ainda não ocupam os mesmos lugares que os
homens, que continuam tendo muito mais visibilidade. É impressionante a enorme
proporção de homens em lugares de poder na academia, sempre auxiliados por suas
eficientíssimas secretárias.
Nome conhecido da ciência
contemporânea, Neil DeGrasse Tyson, quando indagado sobre o baixo índice de
mulheres na ciência dá uma resposta fantástica. Ele aponta uma similaridade na
falta de oportunidades para mulheres e negros. Desde os 9 anos, Tyson queria
ser astrofísico e se assustava com as reações ao seu desejo. “Não pensou em ser
atleta?”, diziam. Ele queria ser algo fora das expectativas do mundo em relação
aos negros. Aconteceu, e ainda acontece, algo parecido em relação às mulheres.
Oportunidades iguais não são oportunidades formalmente iguais. Eis a questão –
transformar oportunidades formalmente iguais em oportunidade realmente iguais.
“Porque é 2015!”. (Com essa frase, o primeiro ministro canadense Justin
Trudeau, recém-empossado, justificou o equilíbrio entre o número de homens e
mulheres em seu gabinete).
A persistência da violência
contra a mulher foi tema da redação do Enem (Exame Nacional de Ensino Médio
2015). Os candidatos também refletiram sobre uma frase da filósofa Simone de
Beauvoir. A prova motivou debates, defesas e ataques, mas com pouca
fundamentação acadêmica. Como você avalia esta escolha dos organizadores do
Enem? E que efeitos pode produzir no espaço acadêmico?
Excelente, parabéns para o Enem.
Muito bom introduzir na formação dessas e desses jovens a reflexão de Simone de
Beauvoir e o debate sobre feminismo. Contudo, tenho uma crítica à pergunta.
Após o trecho famoso de Beauvoir, era preciso marcar a resposta certa. Na
década de 1960, a proposição citada contribuiu para estruturar um movimento
social que teve como marca a “organização de protestos públicos para garantir
igualdade de gênero”. Havia outras opções: estabelecimento de políticas
governamentais para promover ações afirmativas, ação do poder judiciário para
criminalizar a violência sexual. Ainda não entendi porque as outras respostas
não estão certas também...
Você faz parte de um coletivo de
mulheres, professoras e pesquisadoras que lançou, recentemente, a revista DR
(“discutir a relação”). Conte sobre o perfil da publicação e que relações
desejam discutir com a iniciativa?
Participei, com amigas, de inúmeras discussões
políticas e tentativas de organização que surgiram depois de junho de 2013.
Nesse cenário de brigas e disputas, experimentamos dificuldades associadas à
posição das mulheres. Nós, que nunca tínhamos sido feministas, tivemos então a
ideia de fazer uma revista só com mulheres, pois começamos a achar difícil
discutir política com homens. Havia grupos constituídos em torno de grandes
figuras (homens) e, nas discussões, eles pareciam dar lição o tempo todo... Se
queríamos colocar um ponto na pauta, não prestavam atenção.
Percebemos que, num debate, para
ter efeito político, é preciso explicar, dar "argumentos", mobilizar
"a história" ou "a teoria". Criamos um espaço para um modo
de dizer que recuse a autoridade e a expertise ainda exercidas,
majoritariamente, por homens. Estamos cada vez mais convencidas de que não
basta que um discurso político seja justo para produzir engajamento. Há um
trabalho a ser feito sobre o tom, sobre os modos de dizer. Será que a necessidade
de prestar atenção ao “modo de dizer” em um discurso político é coisa de
mulher? Como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão plenamente
política?
Essas questões parecem estar
ligadas a uma longa tradição em que a discussão política era uma atividade
reservada aos homens. Resolvemos, então, fazer uma DR e afirmar o sentido
político de novas práticas. Fazer DR é se importar com o efeito de nossas
falas, sabendo que é sempre possível retornar sobre as palavras, reconhecer
seus equívocos, prestando atenção ao modo como o que dizemos afeta a
interlocutora. Fazer DR é apostar que a relação é o que importa. Um cuidado,
uma atenção às conexões.
Roberta com as editoras da
revista (no centro) em cena do vídeo "Mulheres à beira de um ataque de
Lattes"
Encontramos outras mulheres com
questões parecidas, como Vinciane Despret e Isabelle Stengers, que
entrevistamos para o primeiro número da DR. Elas têm um livro fabuloso sobre
mulheres na academia: Les faiseuses d’histoires - que font les femmes à la
pensée? “Faire des histoires” [sem edição em português] é algo como criar caso,
dar chilique, criar uma situação. Se uma mulher reclama muito, ouve frequentemente:
arrête de faire des histoires! (não inventa moda, não cria caso!).
Vinciane e Isabelle dizem que os
‘homens civilizados’ se expressam por meio de uma racionalidade sobre a qual,
invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é
racionalizado. Mesmo na Europa, onde se supõe que ninguém use argumentos
claramente machistas, as pessoas devem se submeter a discursos sobre um estilo.
Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há enunciados como
"as mulheres são mais sensíveis", o que é muito perigoso, pois se se
faz disso uma psicologia, vira uma maneira de se desvalorizar e de dar razão
aos que detém a racionalidade. Então, como se apropriar de um discurso afetivo
para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, mas um discurso tout
court (sem mais, sem nada a acrescentar). Um tipo de machismo intervém nas
questões acadêmicas quando se diz ‘academicamente não se pode escrever assim’,
‘esse discurso está muito pessoal, muito afetivo’. É uma exclusão muito
potente, pois produzida pelo bom academicismo.
Para vencer isso não adianta agir
individualmente – seremos sempre vítimas ou loucas gritando sozinhas. É preciso
um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma intervenção,
justamente porque juntas tornaram-se capazes de fazê-la. Aí então poderemos
“fazer disso toda uma história”, criar um caso. Essa dimensão da produção
coletiva de um afeto tem relação com o fazer político. DR é isso.
---
* Ana Furniel é coordenadora
executiva do Portal de Periódicos Fiocruz.
* Flávia Lobato é jornalista e
editora de conteúdo do Portal de Periódicos Fiocruz.
* Roberta Cardoso é editora
executiva da revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos e editora convidada
do Portal de Periódicos Fiocruz .
Publicado originalmente pelo
Portal de Periódicos Fiocruz
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