Ivonete da Silva, 14 anos, é mãe
de Rayslani, de 1 ano. Thainá Darri, 17, casada desde os 15, está grávida e
desistiu de estudar.
Nunca tinha ouvido falar em
casamento infantil no Brasil até 2013. Fiquei estarrecida. Como podia ser
verdade? Supunha que fosse uma realidade da África Subsaariana ou do Sul da
Ásia, onde fome ou tradições e ritos se impõem.
Por Patrícia Zaidan
Quem deu a informação foi a
assistente social Neilza Buarque Costa, da ONG Visão Mundial, ao debater o
documentário Girl Rising (Richard Robbins), segundo o qual 66 milhões de
meninas estão fora da escola, em todo o Planeta, e uma das razões é o
matrimônio precoce. Mas eu imaginei: se tem aqui, deve ser uma situação isolada
num rincão profundo.
Por dois anos não me saiu da cabeça
um caso da Paraíba, que Neilza contou à plateia: um homem queixou-se à sogra,
porque sua mulher, de 12 anos, nunca estava em casa quando ele chegava. Passava
as tardes brincando de boneca com a filha da vizinha, deixava a roupa sem
lavar, a cozinha suja… Comecei a pesquisar. Tive notícias de tantas
adolescentes se submetendo a um marido violento, com dois ou três filhos nos
braços. E de homens – alguns com mais de 40 anos – que adoram casar com
menininhas firmes de carne e a quem eles podem moldar o caráter.
O tema passou a me doer. A
reportagem “Noivas Meninas” está nas bancas, na edição de janeiro, de CLAUDIA –
um fôlego que juntou o fotógrafo Victor Moriyama, a estagiária Gabriela Abreu e
eu. A primeira descoberta: não se trata apenas de casos em um grotão perdido. O
casamento infantil ocorre na maior economia brasileira – a cidade de São Paulo
-, na região metropolitana de Curitiba, no Tocantins, em Minas, nas capitais do
Pará e Maranhão… Difícil descobrir onde não tem. Hoje, 554 mil garotas de 10 a
17 anos são casadas, calcula um estudo do Instituto Promundo, com base no IBGE,
publicado em setembro passado. Como a lei considera crime o sexo com menores de
14, mesmo que consensual, a maioria das uniões é informal. Ainda assim, em
2013, Campo Grande casou no cartório o maior número de brasileirinhas. Partimos
atrás de uma amostra nacional. O texto começa assim:
“Catingueiras magricelas e
peladas, sol forte, uma cabrita, um bode e algumas galinhas são quase tudo que
Ivonete Santos da Silva, 14 anos, vê ao longo do dia e por semanas a fio. Mãe
de Rayslani, 1 ano, ela dorme cedo. A casa de taipa onde vive, no sítio Lagoa
Nova, em Inhapi (AL), a 289 quilômetros da capital, Maceió, não tem lâmpadas
nem TV. Ivonete juntou-se aos 12 anos com Sislânio Silvério, 21, seu primo.
Deixou a escola sem aprender a unir as letras: “Era aperreio demais, tudo
acontecia na hora do almoço, tinha que fazer comida, me arrumar, sair para
estudar”. Não se arrepende. “Só quando estou bem estressada, limpando a casa, e
a menina acorda chorando, penso: ‘Meu Deus, o que eu fiz?’ ” Ainda assim,
considera que está melhor do que no tempo em que vivia na casa materna. “Um
dia, saí calada, o povo estava todo lá pra dentro. Fui embora com Sislânio.”
Ele trabalha na roça. Quando tem roça. Há cinco anos, o sertão enfrenta uma
seca bruta; a terra está tão dura que é impossível plantar. Na única panela, no
fogãozinho de barro, há feijão. Ivonete não faz planos, não pronuncia desejos –
pelo menos a estranhos que invadem sua rotina -, mas responde como se sente:
“Não sei direito. Sou um pouco mulher, pequena demais, meio criança também”.
Quando fecha os olhos, do que se lembra? “De mim desenhando pé de maçã, árvore
de morango.” Mesmo que morangos amadureçam a não mais que 30 centímetros do
chão, era esse seu deleite na sala de aula. Queria ser professora, acha que não
dá mais tempo. “Espero que minha filha case bem tarde, só com 17 anos, e não
engane a escola para aprender tudo bem direitinho”, diz.
Depois de Inhapi, percorremos
Canapi (AL), Colombo (PR), e uma das maiores favelas do país, Heliópolis – não
haveria nenhuma dificuldade de encontrar meninas casadas nessa comunidade
paulistana. Enquanto Victor fotografava, ali, Thainá Darri, 17 anos, casada
desde os 15, dezenas de meninas iam se juntando para saber o que fazíamos. Dei
a pauta e elas quiseram saber porque tanta curiosidade sobre algo tão comum.
Várias, entre 14 e 16, carregavam um filho.
Thainá é um caso diferente, tem
uma consciência política clara, é feminista, está no conselho do meio ambiente
da região e é a única das entrevistadas que concluiu o segundo grau. Acabava de
receber o resultado do laboratório – positivo para gravidez – e decidiu adiar
os planos de fazer uma faculdade. No seu discurso, me chamou a atenção a
explicação para seu casamento aos 15: queria privacidade com o namorado e, de
certa forma, proteção. “Aqui, as meninas se jogam no funk, bebem e nem sabe
quem é o pai do filho delas. O casamento me poupou disso.”
Mãe de Michel Júnior, casada em
Canapi desde os 14, Ana Clara dos Santos, 16, fugiu de casa para ficar com seu
amado, Jaílson de Oliveira, na época com 16. Duro para ambos é deixar o bebê
aos cuidados da mãe de Ana, porque eles não têm condição financeira de criá-lo.
A alagoana Jamille Henrique ganhou, aos 14, uma aliança e se viu livre da lida
pesada com seus oito irmãos, além do jugo do pai alcoólatra. Embora tenha em
Marcelo um parceiro divertido, e com quem gosta “de brincar e de fazer sexo”,
seu semblante é triste e sua concepção sobre a vida de mulher, medonha: “Todas
apanham. Não acho bom, mas é o que acontece”.
Monique Barbosa, aos 15, parece
uma madonna, de Michelangelo, com sua Maria Clara sempre a tiracolo. Essa Pietá
de Colombo (PR), queria ser policial, mas desistiu, está fora da escola,
cansada dos afazeres domésticos e do ciúme do marido. Na mesma cidade, Joyce
Pinheiro, mãe de gêmeas aos 15, teme as estrias e que o marido a troque por uma
menina mais magrinha. Ela conta: “Das 20 colegas que estudavam comigo, 16 estão
casadas ou são mães solteiras”. Ouvimos vários especialistas para entender o
fenômeno.
Saio das reportagens carregando
as personagens em mim. Demoro a tirá-las do pensamento. Ivonete, a sertaneja do
sítio sem luz, me abraçou longamente quando nos despedimos. Prometi enviar uma
revista para alguém ler para ela. E também uma fotografia ampliada. Essa
menina-mãe nunca teve uma foto sua. De todas as personagens, foi a que mais interagiu
com a câmera. Tem uma força no olhar inexplicável. Encarava as lentes de Victor
com muita naturalidade e firmeza. Fico imaginando como Ivonete fará para
desamarrar o nó, desbancar seu destino e vencer as agruras todas que enfrenta
desde o nascimento. Algo me diz que ela vai conseguir.
Fonte: http://pensadoranonimo.com.br/
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