Gentileza não faz distinção de
sexo, raça, classe, estética. E, se mulheres cansadas da convivência diária com
agressões variadas, não aceitam aquelas gentilezas pretensiosas revestidas de
fingida inocência, são taxadas de exageradas. “O feminismo decretou o fim do
romantismo e da cortesia”. O que me parece óbvio, no entanto, é que o
cavalheirismo jamais teria tido espaço em uma sociedade em que homens e
mulheres estivessem em posições iguais.
Por Ana Pompeu
A Câmara dos Deputados é, em
número de frequentadores, uma cidade. Com tamanha circulação de pessoas, é
comum que a espera por elevadores forme filas. Há cerca de duas semanas, dos
seis elevadores disponíveis, um estava em manutenção, dois são exclusivos para
parlamentares, um preferencialmente de serviço, os outros para uso comum. Em
uma quarta-feira, dia de trabalho intenso no Congresso, uma grande fila se
formou num dos andares do anexo IV da Casa. Um deputado chegou, chamou o
elevador pelo interfone e fez o anúncio: “quem quiser me acompanhar, venha
comigo! Mas só as mulheres hein?”, e riu. Boa parte das mulheres da fila se
sentiu lisonjeada e o acompanhou.
O episódio virou uma discussão
com os colegas de trabalho. Um dizia que era um absurdo, machismo travestido de
cortesia. “Faltou dizer que só as bonitas poderiam seguir com ele. Ele chamaria
as da limpeza pra ir junto?”. Outro questionou se não era exagero. “Só foi
gentil. Hoje, quem é gentil recebe respostas atravessadas de mulheres que
entendem como machismo”, lamentou o colega realmente sempre muito cortês.
O Congresso Nacional, como um
retrato da política brasileira, é dominado por homens, brancos e engravatados.
Cada ato dito gentil, como o do deputado em questão, reforça o papel das
mulheres na Casa — bem como na política, nas esferas de decisão e poder do
país. A nossa função é estética, acessória. Somos bibelôs para mera apreciação
masculina. Com educação, o recado é dado.
Gentileza não faz distinção de
sexo, raça, classe, estética. E, se mulheres cansadas da convivência diária com
agressões variadas, não aceitam aquelas gentilezas pretensiosas revestidas de
fingida inocência, são taxadas de exageradas. “O feminismo decretou o fim do
romantismo e da cortesia”. O que me parece óbvio, no entanto, é que o
cavalheirismo jamais teria tido espaço em uma sociedade em que homens e
mulheres estivessem em posições iguais.
Mesmo sem a intenção para tal, a
ideia por trás da conta paga no restaurante, da porta do carro aberta, mesmo do
casaco cedido no frio é a da fragilidade da mulher. Mulheres são cidadãs de
segunda classe que precisam da tutela masculina em cada setor da vida. Mas não
todas as mulheres. O cavalheirismo não se repete com a empregada que carrega
várias sacolas de compras nas mãos. A porta não é aberta para ela com a mesma
frequência que para a patroa.
Certa vez, a psicanalista Regina
Navarro Lins, questionando o cavalheirismo em um de seus textos, pontuou:
Que tipo de homem deseja proteger
uma mulher? Certamente não seria um que a vê como uma igual, que a encara como
um par. Mas aquele que se sente superior a ela. E como disse a atriz americana
Mae West em um dos seus filmes: "Todo homem que encontro quer me proteger…
não posso imaginar do quê".
A gentileza pode vir, o homem
pode se portar como um cavalheiro, mas a conta não deixa de aparecer. Ela
sempre chega. O braço masculino está sempre presente. Não necessariamente
grosseiro e pesado. Ele pode ser delicado nesses momentos. Mas, dentro de uma
rotina, as flores podem se tornar desculpa ou recompensa para outro tipo de
comportamento.
A solicitude também pode
facilmente se transformar em descrédito. E isso aparece em situações das mais
diversas. A mulher não tem condições de entrar em discussões profundas sobre
política. A mulher não tem condições de entender o problema do próprio carro na
oficina mecânica. A mulher não consegue fazer a própria declaração de imposto
de renda. Logo nenhuma opinião feminina tem valor.
É o chamado machismo benevolente.
Aquele que pressupõe que mulheres são seres inferiores. Tão inferiores que, num
tempo não tão distante do nosso, em 1929, o Canadá ainda não considerava
mulheres como... pessoas! Como diz o agora saudoso Eduardo Galeano no livro Os
Filhos dos Dias, elas até se achavam pessoas, mas a lei não tinha a mesma
opinião. O movimento de mulheres da época precisou se articular para vencer a
Suprema Corte de Justiça para, a partir do dia 18 de outubro, serem, aos olhos
da lei, pessoas!
Talvez não seja exagero imaginar
que a luta feminista se arraste tão lentamente nas esferas macro por uma
percepção de inferioridade feminina ainda tão arraigada no cotidiano das nossas
relações. E o cavalheirismo é mais uma faceta, ardilosa, por se passar por
gentileza. Por anos, a visão de que as mulheres não conseguem ser independentes
e precisam do apoio masculino para as tarefas mais triviais fixou no
inconsciente coletivo que, por consequência, não seriam merecedoras de direitos
civis e políticos. É o subsídio cultural para as exclusões nos outros campos.
Não peço pelo fim da gentileza.
Nada mais elegante que gentileza. Um ato cortês pode mudar o dia de alguém. Mas
como não refletir, como não ponderar e como não ficar reticente e mesmo
contrária ao cavalheirismo, aquele que só se apresenta de um gênero ao outro?
Se quisermos ter voz na política, na academia, na família, temos de dar nossos
próprios passos sozinhas. E sermos consideradas capazes para tal. Sem presença
ou amparo masculino.
*Ana Pompeu é natural de
Uberlândia, entende quando falam em tradicional família mineira. Em Brasília, a
capital das linhas planejadas e do céu infinito, se tornou jornalista pela
Universidade de Brasília (UnB). E também feminista. Os dois perfis eternamente
em construção.
Fonte: www.jornalggn.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário