Há 40 anos, as mulheres
islandesas entraram em greve e se recusaram a trabalhar, cozinhar e cuidar das
crianças por um dia. O momento mudou a forma como as mulheres eram vistas no
país e ajudou a colocar a Islândia na vanguarda da luta pela igualdade.
O movimento também abriu espaço
para que, cinco anos depois, em 1980, Vigdis Finnbogadottir, uma mãe solteira
divorciada, conquistasse a Presidência do país, tornando-se a primeira mulher
presidente da Europa e a primeira mulher no mundo a ser eleita democraticamente
como chefe de Estado.
Finnbogadottir ocupou o cargo por
16 anos --período que ajudou a fazer a fama da Islândia como "país
feminista mais do mundo". Mas ela diz que nunca teria sido presidente se
não fosse o que aconteceu naquele ensolarado 24 de outubro de 1975, quando 90%
das mulheres do país decidiram demonstrar sua importância entrando em greve.
Em vez de ir aos seus
escritórios, fazer tarefas domésticas ou cuidar de crianças, elas foram às
ruas, aos milhares, para reivindicar direitos iguais aos dos homens. O
movimento ficou conhecido como o "Dia de Folga das Mulheres", e a
ex-presidente o vê como um divisor de águas.
"O que aconteceu naquele dia
foi o primeiro passo para a emancipação das mulheres na Islândia", disse.
"Ele paralisou o país completamente e abriu os olhos de muitos
homens."
Bancos, fábricas e algumas lojas
tiveram que fechar, assim como escolas e creches - deixando muitos pais sem
escolha a não ser levar seus filhos para o trabalho.
Houve relatos de homens se
armando com doces e lápis de cor para entreter a multidão de crianças
superexcitadas em seus locais de trabalho. Salsichas, fáceis de serem
preparadas e populares entre crianças, sumiram rapidamente dos supermercados.
Foi um batismo de fogo para
alguns pais, o que pode explicar o outro nome que o dia recebeu:
"Sexta-feira longa".
"Ouvíamos crianças brincando
enquanto os apresentadores liam as notícias no rádio. Foi uma coisa boa de se
ouvir e saber que os homens tinham que tomar conta de tudo", relembra a
ex-presidente.
Homens em casa
Apresentadores de rádio ligavam
para casas em áreas remotas do país para avaliar como muitas mulheres da zona
rural estavam passando o dia, mas o telefone era frequentemente atendido por
maridos que haviam ficado em casa para tomar conta das crianças.
Durante a entrevista para a BBC
em Reykjavik, Vigdis Finnbogadottir tinha em seu colo uma fotografia em preto e
branco emoldurada do comício numa praça central na capital --o maior dos mais
de 20 que foram registrados em todo o país.
Finnbogadottir, sua mãe e sua
filha de três anos estavam entre as mais de 25 mil mulheres que se reuniram
para cantar, ouvir discursos e falar sobre o que poderia ser feito para mudar o
país. Foi uma participação enorme para uma ilha de apenas 220 mil habitantes.
Na época, ela era diretora
artística da Companhia de Teatro de Reykjavik e havia abandonado os ensaios
gerais para participar da manifestação, ao lado de outras colegas.
"Havia um grande poder nisso
tudo e um grande sentimento de solidariedade e força entre todas aquelas
mulheres que estavam na praça sob o sol", afirma.
Uma banda tocava a música tema do
programa Shoulder to Shoulder, uma série da BBC sobre o movimento sufragista
que havia sido transmitida na Islândia no início daquele ano.
As mulheres islandesas obtiveram
o direito de votar há 100 anos, em 1915 -depois de Nova Zelândia, Austrália,
Finlândia e Noruega. Mas nos 60 anos seguintes, apenas nove mulheres conquistaram
assentos no Parlamento.
Em 1975, havia apenas três
parlamentares mulheres, ou apenas 5% do Parlamento, em comparação com entre 16%
e 23% nos outros países nórdicos, o que era uma grande fonte de frustração para
a população feminina.
Novo nome
A ideia de uma greve foi proposta
pela primeira vez por um movimento radical criado em 1970, o Red Stockings, mas
algumas mulheres acreditavam que a ideia era muito agressiva.
"O movimento Red Stockings
causou uma grande agitação pelo ataque que fazia às visões tradicionais das
mulheres -especialmente entre as gerações mais velhas de mulheres que haviam
tentado dominar a arte de ser donas de casa perfeitas", diz Ragnheidur
Kristjansdottir, professora de História na Universidade da Islândia.
Mas quando a greve foi rebatizada
de "Dia de Folga das Mulheres" teve apoio quase total, incluindo dos
sindicatos.
Entre as oradoras do comício de
Reykjavik estavam uma dona de casa, duas parlamentares, uma representante do
movimento de mulheres e uma trabalhadora.
O discurso final foi feito por
Adalheidur Bjarnfredsdottir, chefe do sindicato de mulheres que trabalhavam em
serviços de limpeza, cozinhas, lavanderias de hospitais e escolas.
"Ela não estava acostumada a
falar em público, mas ficou conhecida com esse discurso, porque foi muito forte
e inspirador", diz Audur Styrkarsdottir, diretora do Arquivo Histórico das
Mulheres da Islândia. "Mais tarde, ela se tornou parlamentar."
Na preparação para o evento, os
organizadores conseguiram que emissoras de rádio, de televisão e jornais
nacionais fizessem reportagens sobre salários baixos de mulheres e
discriminação de gênero. A greve também atraiu a atenção da imprensa
internacional.
Mas como os homens se sentiram?
"Acho que no início eles
pensaram que era algo engraçado, mas não me lembro de nenhum deles ficar com
raiva", relembra a ex-presidente Finnbogadottir. "Os homens
perceberam que, se eles fossem contra isso, perderiam popularidade."
'Acontecimento positivo'
Há relatos de que um colega de
trabalho teria perguntado ao marido de uma das principais oradoras do comício:
"Por que você deixa sua mulher gritar assim em lugares públicos? Eu nunca
deixaria minha mulher fazer essas coisas". Ao que ele respondeu: "Ela
não é o tipo de mulher que se casaria com um homem como você".
Styrmir Gunnarsson era na época o
editor-chefe de um jornal conservador, o Morgunbladid, mas não era contra a
ideia. "Eu acho que nunca apoiei uma greve, mas não vi essa ação como uma
greve. Era uma demanda por direitos iguais... foi um acontecimento
positivo", afirma.
Nenhuma das funcionárias do
jornal trabalhou naquele dia. Gunnarsson diz que nenhuma delas teve o dia
descontado do salário ou do saldo de folgas, e elas voltaram à meia-noite para
ajudar a finalizar a edição, que foi menor do que a habitual: 16 páginas em vez
de 24.
"A maioria das pessoas
provavelmente subestimou o impacto deste dia naquela época -mais tarde, homens
e mulheres começaram a perceber que tinha sido um divisor de águas", diz.
Cinco anos mais tarde, Vigdis
Finnbogadottir derrotou três candidatos para a Presidência. Ela se tornou tão
popular que foi reeleita sem oposição em duas das três eleições realizadas
depois.
Outras conquistas se seguiram.
Listas apenas com mulheres começaram a aparecer nas eleições parlamentares de
1983 e um novo partido, a Aliança das Mulheres, conquistou suas primeiros
cadeiras no Parlamento. Hoje, o país tem 28 mulheres no Parlamento, o
equivalente a 44% dos assentos.
Em 2000, a licença paternidade
paga foi introduzida para os homens e, em 2010, o país elegeu sua primeira
primeira-ministra, Johanna Sigurdardottir --a primeira chefe de Estado
abertamente gay no mundo. Clubes de striptease foram proibidos no mesmo ano.
A Islândia lidera o Índice Global
de Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial desde 2009, o que
significa que é o país do mundo onde há mais igualdade entre homens e mulheres.
No entanto, segundo a chefe de
Iniciativas de Gênero do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês),
Saadia Zahidi, ainda há trabalho a fazer.
"A presença de mulheres e
homens na força de trabalho é quase igual --na verdade, as mulheres são maioria
em todos os trabalhos mais qualificados--, mas elas ocupam cerca de 40% dos
cargos de liderança e ganham menos do que homens nos mesmos cargos."
Mesmo assim, o impacto da greve e
da eleição da primeira presidente foi rapidamente assimilado pelas novas
gerações.
Quando Ronald Reagan tornou-se
presidente dos Estados Unidos, em 1981, conta-se que um garoto islandês ficou
indignado. "Ele não pode ser presidente --ele é homem!", disse ele a
sua mãe ao ver a notícia na televisão. Muitas outras crianças do país cresceram
acreditando que ser presidente era o trabalho de uma mulher.
Fonte: BBC Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário