Dezoito anos de idade, negra e
morta dentro de casa. A frase descreve um perfil comum das mulheres vítimas de
violência no Brasil, segundo dados de um estudo publicado nesta segunda-feira
pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso).
De autoria do sociólogo argentino
Julio Jacobo Waiselfisz, radicado no Brasil, o Mapa da Violência 2015 -
Homicídio de Mulheres no Brasil analisa dados oficiais nacionais, estaduais e
municipais sobre óbitos femininos no Brasil entre 1980 e 2013, passando ainda
por registros de atendimentos médicos.
Em 2013, no último ano levado em
conta pelo estudo, o maior índice de mortes registrado foi entre mulheres de 18
anos: 3,6% dos 4.762 óbitos (168 mulheres). É a incidência mais alta de
assassinatos dentro do que foi traçado pelo estudo como a faixa etária mais
perigosa para as mulheres –que vai dos 18 aos 30 anos de idade e responde por
39% do total de homicídios.
O que o autor chama de
"domesticidade" da violência contra a mulher é ilustrada pelo perfil
dos agressores, com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, que registra os atendimentos do
Sistema Único de Saúde (SUS) ligados à violência. Parentes imediatos, parceiros
e ex-parceiros são responsáveis por quase sete em cada dez atendimentos
médicos. Entre mulheres jovens, namorados e maridos são responsáveis por 50,7%
das agressões.
Essa nova geração de vítimas, em
que parte das mulheres atingiu a maioridade após a Lei Maria da Penha, parece
não estar se beneficiando da maior proteção oferecida pela legislação. Para
Waiselfisz, as estatísticas mostram a necessidade de mais esforços na aplicação
da lei, sobretudo no que diz respeito aos passos posteriores às denúncias e
ocorrências.
Domesticidade
O Mapa da Violência sugere que o
impacto da Lei Maria da Penha, cuja entrada em vigor completa 10 anos em 2016,
foi diluído pela ausência de políticas públicas e mecanismos judiciários mais
extensos para coibir as agressões, em especial a punição de agressores. Embora
a legislação tenha registrado um efeito "inibidor" promissor imediato
nos índices de violência, simbolizado por uma queda no índice de mortes –de 4,2
óbitos por 100 mil habitantes para para 3,9 entre 2006 e 2007–,os casos de
violência voltaram a crescer a partir de 2008 e e atingiram 4,8 mortes por 100
mil habitantes em 2013.
Tal número coloca o Brasil como o
quinto país que mais mata mulheres no mundo, de acordo com dados da Organização
Mundial de Saúde citados no Mapa da Violência. Apenas El Salvador, Colômbia,
Guatemala e Rússia são mais letais em grupo de 83 nações estudadas.
Violência contra a mulher
Os números do Brasil
·
106 mil mulheres mortas entre1980 e 2013 no país
·
5 posição do Brasil em lista dos países mais
violentos do mundo com mulheres
·
18 anos a idade em que mais mulheres foram
assassinadas no Brasil em 2013
·
27,1% porcentagem de homicídios femininos
ocorridos no lar, quase o triplo dos masculinos
·
7 em 10 casos de atendimentos hospitalares de
mulheres em que o agressor foi parente, parceiro ou ex-parceiro
"A Lei Maria da Penha é um
marco importante, especialmente porque facilitou a forma de se denunciar abusos
e transferiu o ônus da prova para o agressor. Mas ela precisa ser implementada
de forma apropriada, e o caminho é longo. Estamos falando de questões como o
estabelecimento de centros de proteção para as vítimas e mesmo um sistema
judiciário que aja com mais eficiência na punição e apuração dos crimes, bem
como a mudança de uma mentalidade machista no país de uma forma geral",
afirma o sociólogo.
É importante ressaltar que os
números gerais levam em conta casos em que mulheres foram vítimas também da
violência urbana, que ainda é responsável pela maioria das mortes registradas
nos dois sexos. Porém, enquanto quase metade dos homicídios masculinos ocorre
na rua (48,2%) e apenas 10% no domicílio, entre as mulheres a proporção é
assustadoramente mais equilibrada: 31,2% e 27,1%, respectivamente.
"Isso revela a alta
domesticidade dos homicídios de mulheres. Elas são muitos mais agredidas no
lar", afirma Waiselfisz.
Perfil racial
O número de mortes cresceu 22%
entre 2003 e 2013, mas houve alargamento desproporcional também no que diz
respeito ao perfil racial das vítimas: enquanto o número de mortes de mulheres
brancas caiu quase 10% entre 2003 e 2013 (de 1.747 para 1.576), os casos de mulheres
negras saltaram mais de 54% no mesmo período, passando de 1.864 para 2.875.
Segundo o sociólogo, os números
mais recentes mostram que morrem 66,7% mais mulheres negras do que brancas no
Brasil.
Waiselfisz apresentou também um
panorama de certa forma surpreendente da distribuição geográfica da violência
contra a mulher no país: há enorme diversidade de situações entre regiões e
Estados. Roraima, por exemplo, foi o Estado "mais violento" contra
mulheres, apresentando um índice de 15,3 homicídios femininos por 100 mil
habitantes, mas que o triplo da média nacional. São Paulo, Santa Catarina e
Piauí, por outro lado apresentaram apenas 3/100 mil, ficando no fundo da lista.
O argentino também notou que o
"efeito Maria da Penha" reduziu as taxas de mortalidade em apenas
cinco Estados brasileiros (Rio de Janeiro, Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco
e São Paulo), enquanto as unidades de federação restantes cresceram em ritmos
extremamente variados.
Outra disparidade acentuada foi
no plano municipal: ainda que algumas capitais brasileiras apresentem índices
bem altos de homicídios femininos, são os pequenos municípios em que as
mulheres se encontram mais vulneráveis. Barcelos (AM), que tem população feminina
em torno de 12 mil pessoas, registrou uma assustadora marca de 45,2 homicídios
por dez mil mulheres e foi o mais violento do país. Nenhuma capital apareceu
nas primeiras 100 posições.
"É difícil indicar uma
tendência nacional, e as oscilações estão relacionadas a circunstâncias locais,
que precisam ser estudadas particularmente. O que parece estar ocorrendo aqui é
que políticas de contenção da violência feminina parecem estar funcionando mais
apropriadamente em grandes cidades, onde na teoria há melhor aparelhamento do
Judiciário", pondera Waiselfisz.
Para o sociólogo argentino, porém, há um culpado claro: a impunidade.
"Pesquisas especializadas
mostram que o índice de elucidação dos crimes de homicídios é baixíssimo no
Brasil, variando entre 5 e 8%. Apenas nos EUA, ele é de 65%. Se a impunidade
prevalece amplamente nos homicídios em geral, ela deve ser norma também nos
casos de homicídios de mulheres. Existe uma certa normalidade da violência
contra a mulher no Brasil".
Fonte: BBC Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário