A questão do gender tornou-se uma
espécie de bandeira empunhada por lados opostos, uma bandeira bastante
esfarrapada, de cores "arco-íris" (com todas as semânticas
metafóricas que se atribuem a esse delicioso fenômeno de refração solar), que
brota da tensão entre duas concepções antropológicas antitéticas.
A opinião é do cardeal italiano
Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo
publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 18-10-2015. A tradução é de Moisés
Sbardelotto. Eis o texto.
Quem não lembra dos dois
quadradinhos com M e F dos antigos documentos públicos do passado? O governo
australiano, em termos de quadradinhos, propõe agora nada menos do que 23, e o
Facebook dos EUA convida a escolher o próprio "gênero" entre 56
opções diferentes! Bem diferente do codificado LGBT, já alargado para LGBTQ,
com o aparecimento também do queer, de gênero variável e indefinível.
A questão do gender, como já se
costuma classificá-lo, tornou-se uma espécie de bandeira empunhada por lados
opostos, uma bandeira bastante esfarrapada, de cores "arco-íris" (com
todas as semânticas metafóricas que se atribuem a esse delicioso fenômeno de
refração solar).
O termo-nebulosa gender brota da
tensão entre duas concepções antropológicas antitéticas. Por um lado,
assentou-se o ''essencialismo" natural, convencido da estrutura dual de
base do ser humano em nível biológico e psicológico: em sede teológica,
baseia-se na antropologia bíblica segundo a qual a ''imagem" de Deus na
humanidade está em ser "macho e fêmea" e, portanto, na capacidade
generativa que continua a obra do Criador (Gênesis 1, 27).
Por outro lado, apresentou-se o
"construcionismo" sociocultural, convencido de que as diferenças de
gênero são fruto de uma elaboração da comunidade social e cultural, segundo o
célebre lema feminista primordial do Segundo Sexo (1949) de Simone de Beauvoir:
"Mulher não se nasce, torna-se".
Na realidade, sobre essa
bipolaridade essencialista-construtivista, passou uma tempestade que embaralhou
as cartas. De fato, o "gênero" essencial masculino e feminino,
superado pelo gender construcionista que se despedia do sexo biológico para se
abrir a uma configuração múltipla, viu a entrada em cena da
"desconstrução" formulada por Derrida e transferida também para a
sede específica do "gênero" e do gender, com a confusão do qual é
emblema precisamente o queer, com a sua "plasticidade" incontrolável
(leia-se, a esse respeito, a programática Disfatta del genere [Undoing Gender,
no original], proposta pela estadunidense Judith Butler no seu livro traduzido
para o italiano pela editora Meltemi em 2006). Como é evidente, a partir de um
tema de base bastante claro, alargamo-nos a uma visão muito ramificada e
dispersa.
Desse modo, em vez de um
"gênero" univocamente fixado, passou-se para um gender variável com
base nas escolhas mutáveis da liberdade individual. Assim, assistiu-se à
passagem da família "bicolor" para a "arco-íris", com as
relativas denominações de "progenitor 1 ou 2"; criou-se uma
dissociação entre a genitorialidade afetiva e a efetiva geração do bebê,
introduzindo depois aquela que Connel, antes Robert (do sexo masculino), que
depois se tornou Raewyn (mulher transexual), definiu como a "arena
reprodutiva" nas suas Questioni di genere, traduzidas pela editora Mulino
em 2011.
A massa intrincada das questões
se assomou também ao areópago da política, especialmente com as quatro
Conferências Mundiais das Mulheres, promovidas pela ONU entre 1975 e 1995, em
particular com a quarta, que ocorreu em Pequim, de efeitos bastante
disruptivos.
Aos poucos, ganhou espaço, além
da indiscutível necessidade do reconhecimento da plena igualdade de direitos
entre homens e mulheres, uma bem mais variada série de reivindicações
legislativas: do registo de nascimento sob um sexo neutro ou múltiplo ou
alternativo em relação à dualidade tradicional M-F à abolição da terminologia
de paternidade e maternidade, substituída pela genitorial neutra, do acesso ao
casamento em qualquer combinação até à adoção por parte das uniões homossexuais
e assim por diante.
Nesse complexo horizonte – que,
sem dúvida, colocou sobre a mesa a importância de considerar natureza e cultura
como um binômio a ser integrado – a Igreja Católica também interveio, assumindo
o desafio, acima de tudo em nível "político-diplomático" durante as
citadas Conferências Mundiais, reafirmando que "igualdade não significa
necessariamente identidade (sameness), e diferença não é desigualdade
(inequality)".
Mas fez isso especialmente em
âmbito antropológico-teológico, através dos documentos da Congregação vaticana
para a Doutrina da Fé e as intervenções magisteriais papais de Bento XVI, às
quais devem ser acrescentadas as intervenções explícitas recentes do Papa
Francisco.
Para dar a conhecer essa
perspectiva hermenêutica específica, um teólogo moral de Milão, Aristide
Fumagalli, elaborou uma síntese pontual e nítida, confiada a algumas
coordenadas que serão úteis para qualquer leitor crente, diversamente crente ou
não crente.
De fato, dois capítulos,
fotografando a galáxia sociocultural que se criou em torno do gender, ilustram
tanto a evolução que ocorreu nessas décadas no debate público, popular e
filosófico, quanto a relativa incidência político-jurídica.
Outros dois capítulos delineiam a
posição da Igreja Católica nos seus pronunciamentos magisteriais, registrando
também as diversidades de abordagem em sede teológica, e propõem, no fim, um
projeto antropológico conclusivo.
As tendências eclesiais oscilam
entre duas configurações. Por um lado, configura-se uma rejeição radical e
fortemente crítica sobretudo às teorizações ideológicas com relação ao gender,
consideradas como uma "estratégia habilmente orquestrada mediante a
manipulação da linguagem e a forte pressão de poderosos lobbies nos organismos
políticos internacionais", destinadas a camuflar uma antropologia
"descorporizada", confiada à absoluta liberdade individual e voltada
a desacreditar sexualidade, matrimônio e família na sua tipologia estrutural
clássica.
Por outro lado, porém, há também
a tentativa de avaliar criticamente a perspectiva de gênero, de modo a produzir
uma versão antropológica mais completa, que, "longe de dissociar e
desacreditar o sexo biológico em relação ao gênero sociocultural, reconheça o
corpo sexuado na dupla forma masculina e feminina como elemento-base sobre o
qual se insere e se desenvolve a identidade subjetiva, inevitavelmente conotada
em sentido social, cultural e político".
Vai nessa linha a proposta final
do teólogo milanês (que também acrescenta uma "coordenada bíblica" um
pouco postiça). De fato, ele afirma a necessidade de uma interpretação e de uma
interação das "dimensões constituídas pelo ser humano, ou seja, a natureza
corpórea, o sentimento psíquico, a relação interpessoal, a cultura social e,
last but not least, a liberdade pessoal".
Chega-se, então, a uma
reciprocidade interpessoal simultânea, mas também assimétrica, que é expressada
simbolicamente através do olhar: "Quem olha pode ver o outro, mas não se
olhar; porém, pode se ver no olhar do outro".
Metáforas à parte, na dialética
do reconhecimento, a plena "identidade masculina é adquirida pelo homem no
encontro com a mulher, e vice-versa, a identidade feminina é adquirida pela
mulher no seu encontro com o homem (…) O homem e a mulher não se reconhecem
como tais por conta própria, mas um através do outro".
Dentre outras coisas, devemos
assinalar que a citada Judith Butler, no seu livro mais recente, Fare e disfare
il genere (Mimesis 2014), retificou o tiro da sua tese sobre o
"desfazimento do gênero", introduzindo uma reflexão significativa:
"O sexo biológico existo, e como! Não é nem uma ficção, nem uma mentira,
nem uma ilusão (…) A sua definição, porém, necessita de uma linguagem e de um
quadro de compreensão (…) Nós não entretemos uma relação imediata,
transparente, inegável com o sexo biológico. Ao contrário, sempre apelamos a
determinadas ordens discursivas. E é isso que me interessa".
Aristide Fumagalli. La questione gender. Una sfida antropologica.
Brescia: Queriniana, 108 páginas.
Giulia Galeotti. Gender. Genere.
Roma: Viverein, 2010, 101 páginas.
Pier Davide Guenzi. Sesso/Genere.
Oltre l’alternativa. Assis: Cittadella, 2011, 128 páginas.
Marguerite Peeters. Il gender. Una questione politica e culturale.
Cinisello Balsamo: San Paolo, 2014, 160 páginas.
Fonte: Ihu
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