Em um mundo cada vez menor, o
cumprimento do processo iniciado com João XXIII é a condição sine qua non para
que a Igreja Católica seja fator de paz e não de divisão. O Papa Francisco sabe
disso e age em conformidade. Mas muitos, dentro da Igreja, ou não sabem disso
ou não o desejam. Entre inimigos internos e inimigos externos, há até alguns
que não hesitam em se transformar em abutres e a cercar sinistramente o corpo
do papa.
A opinião é do teólogo italiano Vito
Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La
Repubblica, 22-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto.
Há um ditado de Jesus desde
sempre inquietante, que nestas horas assume uma dimensão ainda mais sinistra.
"Onde estiver o corpo, aí se reunirão os abutres" (Lucas 17, 37). O
ditado também se encontra em Mateus 24, 28, e em ambos os Evangelhos a frase
está totalmente fora de contexto, aparece como uma espécie de marreta errática
caída do céu, completamente independente daquilo que vem antes e daquilo que
vem depois. Não se sabe a ocasião concreta que levou Jesus a pronunciar essas
palavras, mas, na sua força icônica, elas fotografam uma experiência concreta
da vida natural, naqueles tempos diante dos olhos de todos.
Mas agora a notícia do tumor no
cérebro, divulgada pelo jornal Quotidiano Nazionale, falando de "uma
mancha, um pequeno tumor no cérebro", destina-se a aumentar drasticamente
o voo ameaçador dos abutres. O porta-voz papal, padre Lombardi, logo desmentiu
secamente a notícia. E o jornal L'Osservatore Romano falou de "poeirama
levantada com intenção manipuladora".
O certo é que seria difícil hoje
esconder por muito tempo uma notícia sobre a saúde do pontífice: o corpo do
papa, ao contrário dos séculos passados, quando era velado à vista de muitos e
vivia em uma dimensão sagrada que levava a pensá-lo como quase divino,
totalmente desprovido das deficiências dos reles mortais, agora é
cotidianamente exposto ao olhar das telecâmeras de todo o mundo.
Isso aconteceu cerca de 15 anos
atrás com João Paulo II, cujo mal de Parkinson, antes sistematicamente negado
pelo porta-voz vaticano, depois se tornou evidente aos olhos de todos. A saúde
do corpo de um papa nunca foi apenas uma questão privada, e hoje o é menos do
que nunca. O verdadeiro ponto, porém, não diz respeito à saúde de Jorge Mario
Bergoglio, mas aos abutres. O que chama a atenção, de fato, é que a notícia foi
publicada apenas ontem (a dez meses de distância da hipotética visita
especializada) e, principalmente, a poucas horas do encerramento do estratégico
Sínodo sobre a família.
Uma combinação casual? Obviamente
não; ao contrário, o levantar voo de um bando de abutres. Naturalmente, não me
refiro aos jornalistas que, de posse da notícia, fizeram apenas o seu trabalho,
assim como teria feito qualquer outro jornalista do mundo; ao contrário,
refiro-me àqueles que, justamente agora, vazaram a notícia no momento talvez
mais delicado do pontificado de Francisco.
Neste Sínodo, de fato, o papa
joga a maior parte da sua obra reformadora: se os bispos, em maioria, lhe
disserem "não" e rejeitarem o seu desejo de aberturas, o seu
pontificado estará destinado a entrar para a história como o desejo de um
profeta solitário e sonhador, mas muito pouco capaz de traduzir as suas
palavras e os seus gestos em leis e preceitos concretos, como todo pontífice
digno desse nome, ao contrário, é chamado a fazer.
Eu não sei se existe um único
diretor por trás da "saída do armário" do Mons. Charamsa, que se
declarou gay e convivente no início do Sínodo; por trás da divulgação de uma
carta de uma dezena de cardeais antirreformas na metade do Sínodo; e agora por
trás dessa notícia entregue à imprensa justamente na proximidade do
encerramento do Sínodo.
O que é certo é que todos os três
episódios enquadram os trabalhos da cúpula episcopal. Assim como segundo todo
diretor que se respeite, a última cena foi a mais devastadora, porque visa a
fazer com que o mundo acredite que Jorge Mario Bergoglio é um papa doente,
aliás, doente no cérebro, na sede decisional da pessoa, levantando, assim, uma
série de dúvidas e suspeitas sobre a sua efetividade capacidade de guiar a
Igreja.
Muitos dos cardeais que, há três
anos e sete meses, o elegeram agora lhe são hostis, porque certamente não
imaginavam tal força reformadora naquele argentino que tinha fama de
conservador e que, ao contrário, se revelou logo à altura do impulso inovador
do Papa João XXIII.
O papa de Bérgamo morreu de um
tumor no estômago, mas antes, apesar da Cúria, conseguiu convocar o Concílio
Vaticano II e iniciar a obra de renovação da Igreja. A obra, infelizmente,
ficou na metade, porque, por causa dos temores de Paulo VI, não tocou justamente
os temas da moral familiar e sexual sobre os quais o Papa Francisco convocou o
Sínodo com a intenção de estender a renovação conciliar até aí.
Não são poucos na Igreja aqueles
que querem impedi-lo, sem compreender a importância do que está em jogo. Não se
trata, de fato, de apenas algumas normas de disciplina eclesiástica; o que está
em jogo é a mudança de rumo iniciada pela Igreja Católica com o Vaticano II e
que permaneceu inacabada, destinada a desenhar um catolicismo não mais inimigo
do mundo moderno, como foi durante séculos, mas ao lado da vida das pessoas.
Em um mundo cada vez menor, o
cumprimento do processo iniciado com João XXIII é a condição sine qua non para
que a Igreja Católica seja fator de paz e não de divisão. O Papa Francisco sabe
disso e age em conformidade. Mas muitos, dentro da Igreja, ou não sabem disso
ou não o desejam.
Eles não hesitam em se unir aos
inúmeros grupos de poder econômico e político fora da Igreja, que viram a
recente encíclica sobre a ecologia como uma séria ameaça aos seus negócios. E,
entre inimigos internos e inimigos externos, há até alguns que não hesitam em
se transformar em abutres e a cercar sinistramente o corpo do papa.
Fonte: Ihu
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