Com base na experiência do
Projeto Estrangeiras, iniciamos aqui um breve retrato das violências e
opressões de gênero vividas pelas mulheres em conflito com a lei. Será possível
observar que algumas considerações talvez atinjam as estrangeiras de forma singular,
como por exemplo, o estranhamento que há na maioria dos casos com a língua
portuguesa e as particularidades do exercício da maternidade pelas estrangeiras
que estão presas.
por Amanda Signori, Isabela Cunha
e Viviane Balbuglio*
"Bem, na verdade, estar
dentro de uma penitenciária com seu bebê é a pior coisa que pode existir. Um
berçário como este nunca tem uma enfermeira para socorrer os bebês. Vivemos
cada dia pensando no dia em que teremos que entregar nossos filhos. Todos os
dias choro e rogo ao Senhor que me dê a minha liberdade para não ter que passar
pela imensa dor de entregar meu bebê e para que ele não fique doente, porque
estando aqui sem ajuda médica, qualquer desgraça pode ocorrer."
A protagonista da frase anterior
é Maria, uma mulher e mãe boliviana presa com seu filho de cinco meses. Há diferentes
narrativas de violência para as mães em privação de liberdade: mulheres que
passaram sua gravidez dentro da prisão, mulheres que estão reclusas juntamente
a seus filhos/as, mulheres que foram presas em flagrante com crianças de colo e
mulheres que estão presas no Brasil, enquanto suas famílias permanecem em seus
países maternos.
Na maioria dos casos, elas são
mães solteiras e as únicas ou principais provedoras de seus lares. Vivem sérias
dificuldades financeiras em seus países, geralmente ligadas a dívidas, doenças,
necessidade de tratamento médico, desemprego e conflitos locais.
Essa conjuntura social e
econômica, assim como a falta de alternativas para enfrentar estas situações,
impulsionam essas mulheres à submissão diante determinados tipos de trabalho,
os quais por vezes são criminalizados, como é o caso do transporte de drogas,
responsável pelo aprisionamento de cerca de 90% das mulheres estrangeiras em
privação de liberdade na cidade de São Paulo, acusadas de tráfico internacional
de drogas.
Quando elas são presas no Brasil,
e têm de cumprir penas que duram em média de 5 a 7 anos, suas famílias perdem
sua a principal provedora, as necessidades deixam de ser supridas, e a situação
de vulnerabilidade desde antes vivida tende a se agravar no país de origem. É
importante ressaltar que a condição de hipossuficiência financeira e
vulnerabilidade familiar é majoritariamente desconsiderada ao longo do processo
judicial enfrentado por elas no Brasil, e, quando é considerada, pode
repercutir de forma negativa aumentando suas condenações.
É a partir do protagonismo
familiar e do papel de cuidadora socialmente atribuído ao gênero feminino em
geral que a maternidade passa a ser um tema que circunda a maioria de nossas
vidas como mulheres. Dessa forma, para as mulheres que estão em privação de
liberdade, a prisão representa uma ruptura fática, porém não sentimental, com a
maternidade em suas vidas.
A maior parte das mulheres, ainda
que não estejam gestantes ou não estejam com seus filhos/as no próprio estabelecimento
prisional, permanecem com a sobrecarga e com os deveres sociais impostos às
mulheres em relação à maternidade. Não é o crime que separa estas mulheres de
seus filhos (as), mas sim o próprio sistema punitivo, que insiste em perpetuar
discriminações e opressões de gênero, já que o sistema punitivo e a prisão em
si foram criados e pensados para homens dentro de uma lógica patriarcal,
anterior até mesmo ao surgimento das prisões como conhecemos hoje.
O Judiciário brasileiro apresenta
resistência em aplicar legislações mais benéficas, de maneira a considerar as
particularidades de cada caso, e dificilmente autoriza a concessão de medidas
alternativas à prisão ou prisão domiciliar para mulheres gestantes ou mulheres
com filhos/as, apesar delas estarem previstas em lei. Fatores que refletem no
não reconhecimento do papel que elas desempenham dentro de suas famílias, na
sua condição de mulher e no prejuízo ocasionado por seu encarceramento para
elas próprias e para todas as pessoas que delas dependem.
Apesar de as leis aplicadas às
pessoas estrangeiras serem as mesmas aplicadas às nacionais, o estranhamento
com a língua e a ausência de residência fixa e família no Brasil fazem com que
as estrangeiras enfrentem maiores barreiras para acessar seus direitos. O
Projeto Estrangeiras atua em parceria com a Defensoria Pública do Estado e a
Defensoria Pública da União com o objetivo de tentar garantir os direitos das
mulheres estrangeiras em todas as fases do processo criminal.
Para a eventual aplicação de
medidas alternativas ou prisão domiciliar, por exemplo, os juízes solicitam a
comprovação de endereço fixo, que elas não têm. Temos, então, que buscar
abrigos públicos que tenham vagas para receber estas mulheres, o que é muito
difícil, dada a pouca quantidade de abrigos e à inexistência de políticas
públicas para criação de abrigos para pessoas egressas do sistema prisional ou
estrangeiras. Além disso, as políticas de acolhimento institucional de crianças
e adolescentes, associadas à lógica punitivista, dificultam que mães em
privação de liberdade tenham contato direto e frequente com seus filhos e
filhas que se encontram abrigadas.
Apesar deste texto tratar
especialmente das nuances que a maternidade representa na vida das mulheres
estrangeiras em privação de liberdade, podemos refletir a fundo e perceber que
ele trata dos contornos, das opressões de gênero, e, principalmente, da
violência perpetuada pelo sistema de justiça criminal sobre todas as mulheres
que nele se inserem - sendo a maternidade apenas uma faceta dessas violências.
A violência é, sem dúvida, um
termo bastante polissêmico, tendo sido repetido e trabalhado por diversas
frentes ao longo da história. Acerca da violência da opressão de gênero, já há
algum tempo o movimento feminista alerta quanto à necessidade deste embate.
Fazemos parte de uma sociedade que hoje dá às mulheres uma falsa independência,
já que se mantêm ao mesmo tempo os estereótipos e as funções opressoras, as
quais se tornam cada vez mais opressoras quando o olhar é das mulheres submetidas
à prisão.
Exemplos que retratam a
confirmação destes estereótipos são os discursos que envolvem a temática da
saúde da mulher: as mulheres presas, quase sempre, têm suas necessidades de
saúde invisibilizadas e só retomam parte dessa visibilidade quando tornam-se ou
descobrem-se mães na unidade prisional. O olhar, tanto da própria unidade
prisional quanto das políticas estatais, que recai sobre elas, quase sempre é
aquele que as enxerga como mães e não como mulheres sujeitas de direitos. Ver a
mulher restrita ao papel social de mãe não colabora com seu empoderamento, pelo
contrário, acerra o controle social sobre seus corpos e suas vidas, o que nada
tem a ver com objetivar sua saúde e seu bem-estar.
A partir disso, tantos outros
cuidados de saúde se fazem necessários no cárcere. Em se tratando de medidas
que busquem garantir um atendimento íntegro à mulher, o cuidado com o útero é
sim importante, e a escolha de como lidar com ele deveria ser particular a quem
o carrega. Da mesma forma, é necessária a existência de um acompanhamento
ginecológico periódico, acesso à consultas médicas e remédios regularmente.
Empoderar a mulher significa
inclusive garantir que ela se mantenha física, psicológica e socialmente
saudável. Um discurso desliza se, por exemplo, não é capaz de compreendê-la
como um ser total, possível de tantas outras habilidades e que luta para ser a
protagonista de sua própria história. Inseridas em um cenário de privação de
liberdade, ainda mais hostil, acentuam-se os sintomas. É necessário que menos
deslizes dessa natureza sejam cometidos, principalmente quando os respingos
tendem a ser inflamáveis - como já disse Angela Davis, a necessidade da
distinção de gênero dentro das prisões começa assumindo que homens gozam de
liberdades e direitos que as mulheres não podem reivindicar nem mesmo no
"mundo livre".
Nós, mulheres do ITTC, como
Projeto Estrangeiras, atuamos em conjunto com a luta das mulheres em conflito
com a lei e, diante desse retrato brevemente exposto, tentamos tornar essas
violações e violências, por muitas vezes veladas, indesejadas e combatidas,
cada vez mais visíveis.
* Integrantes do projeto
Estrangeiras
**Nome e nacionalidade fictícios.
Fonte: Brasil Post
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