A divulgação pelo Ministério da
Justiça dos dados sobre homicídios e mortes de mulheres por agressão, na semana
passada, reforça o peso social de uma das principais demandas apresentadas no
manifesto nacional da Marcha das Mulheres Negras 2015.
Primeira mobilização
nacional protagonizada pelas negras brasileiras, a marcha que acontecerá no dia
18 de novembro, em Brasília, destaca a necessidade de o Estado desenvolver
políticas efetivas de enfrentamento ao feminicídio de mulheres negras.
A taxa de morte violenta de
mulheres no Brasil é de cerca de 10% do total de homicídios dolosos, como
referido no próprio relatório Diagnóstico dos Homicídios no Brasil pela
pesquisadora da UFRGS Stela Meneghel. No entanto, quando analisados os
assassinatos de mulheres negras, reproduz-se um perfil qualificado no relatório
como de “continuidade das características apresentadas para os homens”. Elas
são 68,8% das vítimas. A taxa de assassinatos de negras segue representando o
dobro da taxa de homicídios das brancas por 100 mil habitantes. E na população
feminina entre 15 e 29 anos a discrepância é ainda maior. Enquanto para as
jovens brancas a taxa é de 4,6 por 100 mil, entre as negras sobe para 11,5 por
100 mil, de acordo com informações do DataSUS/2013. A maioria dos óbitos estão
relacionados à violência doméstica e intrafamiliar e os autores são, em geral,
seus parceiros ou ex-parceiros íntimos.
“Muitas vezes camuflamos essa
realidade porque falamos mais das mortes dos meninos, jovens e homens negros,
que enlutam sempre mulheres, irmãs, mães, filhas. Mas essa é somente uma das
dimensões de como a violência impacta a vida das mulheres negras, que por vezes
camufla as outras violências que as mulheres negras sofrem”, ressalta a
advogada Maria Sylvia Oliveira, presidenta do Geledés – Instituto da Mulher
Negra.
Como em outros estudos, no
relatório Diagnóstico dos Homicídios no Brasil a população negra aparece como a
mais vitimada e vulnerável à violência no país. Representando 50,7% dos
brasileiros, os autodeclarados pretos e pardos somaram 72% dos assassinados em
2013, de um total de 50.715 mortes registradas nas quais o campo raça/cor foi
preenchido. Há ainda 7% de vítimas de óbito por agressão cuja condição racial
não foi identificada nos registros.
Racismo patriarcal
Em seminário promovido pelo
Centro de Formação do Sesc São Paulo no último dia 15, ainda antes da
divulgação do Diagnóstico, Lúcia Xavier, coordenadora da ONG fluminense Criola,
lembrou que “temos ainda dados encobertos, que não permitem que a gente saiba
qual é efetivamente a realidade da violência sofrida por essas mulheres. Quais
são as condições da violência doméstica e sexual em que as mulheres negras
estão mergulhadas? Por que temos um destaque tão especial nesse processo? Por
que entre nós a violência faz parte do processo de opressão e invisibilidade?”.
Assistente social e integrante do
Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde, Lúcia Xavier
ressalta que “a escravidão inscreve uma experiência na nossa sociedade que
estabelece os lugares onde a gente vive até hoje, constituindo um elemento da
ideologia que reforça os papéis sociais que temos e inscreve na sociedade
brasileira um modus operandi da Justiça, do Direito, um modo de viver, ajudando
a perpetuar uma hierarquia”. Como exemplo da realidade, Lúcia lembrou que as
trabalhadoras domésticas só conquistaram direitos trabalhistas plenos em 2015.
Em 2012, de acordo com a PNAD/IBGE, 63,4% das trabalhadoras domésticas
brasileiras se autodeclararam negras.
“Essa dimensão histórica não só
trouxe a consequência da opressão que a gente vive até hoje, mas também permite
a violência, estabelece as relações de pobreza – que não é só um fenômeno
econômico e está associada às condições de gênero, raça e geração em que a
gente vive. Nos nega o acesso a bens e serviços de todas as ordens, ajuda a
violar direitos, precariza e nos paga muito mal pelo trabalho realizado, ou nos
deixa sem trabalho. Além de estabelecer para nós níveis iníquos de
morbimortalidade”, aponta.
“Hoje denominamos esse racismo como
racismo patriarcal porque compreendemos que no caso das mulheres negras essas
dimensões se conjugam nessa opressão”,
apontou Lúcia no seminário, ressaltando que o genocídio da juventude negra não
afeta apenas os homens. “Mulheres negras morrem na hora do parto como
passarinhos. É evidente que há um Estado racista. E um Estado racista propicia
ações racistas, e a ideologia não se constitui só de consensos. Não basta fazer
a pessoa acreditar que tem um defeito, precisa ter uma dimensão de força para mostrar
qual é a sua condição na sociedade. Essa dimensão de força se expressa na
mortalidade”, enfatiza.
Fatores de risco e potencializadores da violência
O Diagnóstico de Homicídios
aponta categoricamente a cultura patriarcal e a falta de rede de proteção como
fatores de risco para a vitimação de mulheres pela violência doméstica que pode
resultar em feminicídio. Abusos sexuais e agressões no ambiente familiar também
são apontados como elementos que podem influenciar na “procura por parte dos
jovens por pertencimento em grupos como gangues e facções do tráfico, além do
comportamento agressivo”, aponta o relatório.
Elementos como álcool e drogas
são referidos como potencializadores da violência, especialmente no ambiente
doméstico, mas não como causa primária. E o relatório ressalta que várias
pesquisas já realizadas nesse sentido não permitem a inferência de uma relação
de causa entre substâncias psicoativas e agressões.
Acesso facilitado a armas de fogo
em uma sociedade violenta como a nossa, acúmulo de vulnerabilidades sociais e
condições de educação, saúde e renda também são apontados como fatores
transversais no incremento às taxas de homicídios.
Omissão e conivência
“Eu atribuo esse processo de
violência contra as mulheres a, de certa forma, uma ‘autorização’ da sociedade,
quando não diz um ‘não’ veemente a isso. Os próprios questionamentos à Lei
Maria da Penha, de que haveria um exagero na lei e ter sido necessário estes
questionamentos chegarem até o Supremo Tribunal Federal para ser definido que
ela é de fato uma lei justa, falam um pouco sobre essa cultura de que a
violência contra as mulheres seria um mal menor”, comenta Lúcia.
A especialista ressalta ainda que
as mortes de mulheres de certa forma vitima a todas porque “estamos todas no
alvo dessa sociabilidade violenta, que vai desde o assédio sexual no transporte
público, passando pela violência doméstica e intrafamiliar e a morte”, diz.
“E, no caso das mulheres negras,
isso é acrescido de uma representação negativa de que elas ‘não prestam’, ‘são
lascivas’, ‘afetas a uma sexualidade exacerbada’, são objetos. Isso é muito
forte ainda na sociedade, tanto que é possível ver situações como estas
espelhadas em diferentes contextos”. Lúcia também ressalta que o fato de a
violência contra as mulheres ainda ser compreendida como um dado “da esfera das
desavenças, ciúmes, loucura, alcoolismo” muitas vezes faz com que mesmo agentes
do Estado, em especial das polícias, tratem com simplicidade uma situação tão
grave. “Falta uma resposta à altura. E não basta dizer que o cara vai preso ao
final. É preciso nomear que este é um crime que a sociedade não tolera, que não
pode acontecer”.
Fonte: Agência Patrícia Galvão
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