Lucetta Scaraffia, 67,
historiadora e feminista italiana, foi uma das 32 mulheres convidadas a
participar do sínodo dos bispos sobre a família, em Roma, entre os dias 4 e 25
de outubro.
"O que mais me espantou nesses
cardeais, bispos e padres foi sua perfeita ignorância sobre o sexo feminino,
seu pouco conhecimento em relação a essas mulheres tidas como inferiores como
as freiras, que geralmente lhes serviam de domésticas. Não todos, evidentemente
– cheguei a fazer amizade com alguns deles, antes mesmo do sínodo– , mas para a
imensa maioria, o constrangimento sentido pela presença de uma mulher como eu
era palpável, sobretudo no começo."
Por Lucetta Scaraffia.
A editora do suplemento feminino
do “L’Osservatore Romano”, jornal do Vaticano, relata para o “Le Monde” de
forma mordaz esse trabalho entre os homens da Igreja
Quantas vezes não disse para mim
mesma, ao longo dessas três semanas de sínodo, para conter a impaciência
rebelde que tomava conta de mim? Afinal, eles me convidaram e até me deixaram
falar. Eu, uma “feminista histórica”, não exatamente diplomática, nem paciente,
como eles certamente notaram.
Para uma mulher como eu, que
viveu o Maio de 68 e o feminismo, que lecionou em uma universidade pública e
participou de comitês e de grupos de trabalho de todos os gêneros, essa
experiência foi verdadeiramente inédita. Isso porque embora já tenha
acontecido, quando eu era jovem e as mulheres ainda eram raras em determinados
meios culturais e acadêmicos, de eu ser a única no meio de um grupo de homens,
esses homens ao menos conheciam um pouco o assunto, sendo casados ou tendo
filhas.
O que mais me espantou nesses
cardeais, bispos e padres foi sua perfeita ignorância sobre o sexo feminino,
seu pouco conhecimento em relação a essas mulheres tidas como inferiores como
as freiras, que geralmente lhes serviam de domésticas. Não todos, evidentemente
– cheguei a fazer amizade com alguns deles, antes mesmo do sínodo– , mas para a
imensa maioria, o constrangimento sentido pela presença de uma mulher como eu
era palpável, sobretudo no começo.
De qualquer forma, não havia
nenhum sinal desse cavalheirismo que se costuma encontrar sobretudo entre os
homens de uma certa idade, dos quais eles fazem parte. Com a maior
desenvoltura, eles me cortavam nas escadas e passavam alegremente na minha
frente no bufê durante os intervalos. Até que um garçom, com pena de mim,
perguntou o que eu queria beber.
Depois, quando começamos a nos
conhecer melhor, especialmente durante as sessões de trabalho em grupos
pequenos, os outros clérigos foram aos poucos mostrando simpatia por mim. À
maneira deles, é claro: eu era considerada como uma mascote, sempre tratada com
paternalismo, ainda que eles tivessem a minha idade ou fossem ainda mais jovens
que eu.
Desde que cheguei, tudo parecia
ter sido concebido para que eu me sentisse como uma estranha: apesar das minhas
credenciais, eu era submetida a checagens inflexíveis. Chegaram a tentar pegar
meu tablet e meu celular. Toda vez me tomavam por outra pessoa, uma jornalista
no melhor dos casos, ou uma faxineira. Depois eles aprenderam a me conhecer e a
me tratar com respeito e gentileza. Quando, após três ou quatro dias, a guarda
suíça uniformizada encarregada de vigiar a entrada bateu continência para mim,
me senti no paraíso!
“Se elas entrarem, seremos
esmagados”
No entanto, minha presença era no
máximo tolerada: eu não “batia ponto” antes de cada sessão de trabalho como os
padres sinodais, eu não tinha o direito de discursar, somente no final, quando
se abre a fala para a plateia, e a mim também não era permitido votar, mesmo
nas sessões de pequenos grupos. Não somente eu não tinha direito de votar, como
me era proibido propor modificações ao texto submetido a debate. Na teoria, eu
não deveria nem mesmo falar, mas de vez em quando até pediam minha opinião.
Precisei de coragem, mas comecei a levantar a mão e a me expressar. Na última
reunião, cheguei a conseguir sugerir modificações! Enfim, tudo contribuía para
que eu me sentisse inexistente.
Nenhuma de minhas falas tinha o
efeito esperado. Um dia, quis lembrar que no 19º capítulo do Evangelho segundo
São Mateus, Jesus falava em “repúdio” e não em “divórcio”, e que, no contexto
histórico que era o seu, isso significava “repúdio da mulher pelo marido”. Além
disso, a indissolubilidade defendida por Jesus não seria um dogma abstrato, mas
uma proteção dada aos mais frágeis da família: as mulheres. Mas eles
continuaram explicando que Jesus era contra o divórcio. Eu poderia muito bem
não ter dito nada, pois falava para o vazio.
Bem que tentei dividir minhas
impressões com as outras poucas mulheres presentes no sínodo, mas elas sempre
me olhavam com espanto; para elas, esse tratamento era totalmente normal. A
maior parte delas estava lá só como parte de um casal –no momento dos discursos
de encerramento, ouvi improváveis relatos de casamentos narrados em conjunto
com o marido.
A única que escapava desse clima
de resignação era uma jovem freira combativa que havia descoberto, durante uma
conversa com o papa, que as quatro cartas que sua associação lhe havia enviado
–para exigir mais espaço para as freiras– nunca haviam chegado até o pontífice.
Entendi que as freiras, por serem muitas, e muito mais numerosas que os
religiosos, causavam medo: se elas entrassem, eles seriam esmagados. Então era
melhor fingir que elas não existiam.
Diante dos meus olhos curiosos e
pasmos, a igreja mundial ganhou corpo e identidade. É claro, existem campos
distintos, entre aqueles que querem mudar as coisas e aqueles que querem
simplesmente defender o status quo. E a oposição é bem nítida. Entre os dois há
uma espécie de pântano, onde as pessoas se alinham, dizem coisas vagas e
esperam para ver como o debate vai evoluir. O campo dos conservadores afirma
aos pobres fiéis que seguir as normas não é um fardo desumano, porque Deus nos
ajuda com sua graça. Eles têm uma linguagem colorida para falar das alegrias do
casamento cristão, do “canto nupcial”, da “Igreja doméstica” do “Evangelho da
família” –em suma, de uma família perfeita que não existe, mas que deve ser
confirmada pelos casais convidados a contarem suas histórias. Talvez eles
acreditem nisso. De qualquer forma, eu não queria estar no lugar deles.
Existem mais nuances no campo dos
progressistas. Os mais audaciosos chegam a falar de mulheres e de violência
conjugal. É fácil distingui-los, pois eles invocam sem parar a misericórdia.
Naturalmente, as famílias perfeitas não precisam de misericórdia.
“Misericórdia” foi a palavra-chave do sínodo: nos grupos de trabalho, uns lutam
para suprimi-la dos textos, outros a defendem com vigor e buscam até
multiplicá-la. No fundo, não é muito complicado. Eu havia me imaginado em uma
situação teologicamente mais complexa, mais difícil de decifrar para quem está
de fora.
Mas aos poucos fui entendendo que
está ocorrendo uma mudança profunda: aceitar que o casamento seja uma vocação,
assim como a vida religiosa, é um grande avanço. Isso significa que a igreja
reconhece o sentido profundo da encarnação, que deu valor espiritual àquilo que
vem do corpo, e portanto também à sexualidade considerada como um meio
espiritual, seja na castidade ou na vida conjugal. A insistência na verdadeira
intenção da fé e na preparação para o sacramento também é muito importante: é o
fim da adesão de fachada, sem uma escolha consciente.
O grande preceito de Jesus,
segundo o qual só conta a intenção do coração, vai entrando aos poucos na vida
prática. Isso quer dizer que estamos avançando de maneira significativa na
compreensão de sua palavra. Nas milhares de polêmicas sobre a doutrina ou sobre
a normatividade, nada disso parece existir, mas olhando mais de perto, a
mudança é perceptível, e certamente é positiva.
Um pouco de catecismo antes das núpcias
Durante as longas horas de
debates, observei, fascinada, a elegância dos clérigos: todos “uniformizados”,
com suas batinas bordadas de roxo ou vermelho, seus solidéus nas mesmas cores
e, no caso de alguns, suas elaboradas capas com longos fios bordados e botões
coloridos. Os orientais exibiam mitras de veludo bordadas de ouro ou de prata,
chapéus altos pretos ou vermelhos. O mais elegante de todos usava uma longa
túnica roxa, e no fim descobri que se tratava de um bispo anglicano. Às vezes,
de longe, um dominicano de túnica branca era confundido com o papa, que,
democraticamente, se juntava a nós nos intervalos.
É verdade que eles vêm de todas
as partes do mundo; em geral, os bispos dos países colonizados falam a língua
do antigo conquistador, francês, inglês ou português. Aqueles que vêm do leste
europeu falam italiano. Percebo como são muitos os bispos vindos da Índia e da
África. Cada um representa um pedaço da história e da realidade,
independentemente de falarem de dificuldades concretas ou de se contentarem com
tiradas teóricas defendendo a família.
E assim eu descubro que os
defensores mais rígidos da tradição são aqueles mesmos que vivem nos países
onde a vida é mais difícil para os cristãos, como os orientais, os eslavos ou
os africanos. Aqueles que sofreram as perseguições comunistas propõem que se
resista com o mesmo rigor e a mesma intransigência aos encantos da modernidade;
aqueles que vivem em países atormentados e em conflito onde a identidade cristã
é ameaçada pensam que é somente se mantendo firme nas regras que se pode
defender a religião contra as ameaças que pairam sobre ela.
Com algumas exceções, que têm
minha preferência, todos falam em uma linguagem autorreferencial, quase sempre
incompreensível para quem não pertence à “panelinha” do clero: “afetividade”
para se referir a “sexualidade”, “natural” para “não modificável”, “sexualidade
madura”, “arte do acompanhamento”… Quase todos estão convencidos de que basta
um curso de preparação para o casamento para superar todas as dificuldades e
talvez também um pouco de catecismo antes das núpcias.
No entanto, do mundo real surgem
situações tão diversas quanto complexas. Em particular a questão dos casamentos
mistos presente no mundo todo. Os problemas são diversos, mas há um que surge
em todos os casos: a religião católica é a única a enunciar a indissolubilidade
do casamento. Então os pobres católicos muitas vezes se veem abandonados e na
impossibilidade de se casarem novamente. Quantos clérigos não defendem com
orgulho suas famílias tradicionais sem pensar que na maioria dos casos trata-se
de situações que penalizam as mulheres?
Mas as mulheres são quase
invisíveis. E quando as menciono em minhas falas, queixando-me de sua ausência
justamente quando o objetivo é debater a questão da família, me acham “muito
corajosa”. Sou aplaudida e até mesmo me agradecem; fico um tanto surpresa, depois
entendo que, ao falar claramente delas, eu as dispenso de fazerem o mesmo.
Levada por essa onda de
sentimentos contraditórios –entre a raiva provocada por uma evidente exclusão e
a satisfação de estar lá de qualquer forma– , eu não pude deixar de pensar que
era extraordinário, nos dias de hoje, participar de uma assembleia que abriu
com o canto do Veni Creator Spiritus e se encerrou com o Te Deum. Mas é
exatamente por esse motivo que sofro ainda mais com a injusta exclusão das
mulheres de uma reflexão que, a princípio, trata da relação da humanidade como
um todo, e, portanto, de homens e mulheres, com Deus.
Fonte: UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário