País que cora de vergonha de
soltar pum em público. Mas não de tratar mulheres como cidadãs de segunda
classe.
Por Leonardo Sakamoto
As pessoas – pelo menos as que
cultivam o bom senso – não peidam na frente dos outros ou em ambientes
fechados, como um elevador.
Ou, quando soltam um pum, seja
por lapso fisiológico ou contingência maior, ficam em silêncio, torcendo para
não serem identificadas. Quem nunca peidou em público que atire o primeiro
Luftal.
Afinal de contas, liberar
flatulências em uma reunião de trabalho, na sala de aula, em uma festa de casamento
ou em um velório leva à desaprovação coletiva ou, o que é mais provável, ao
injusto escracho e ao eterno estigma.
– Que cheiro é esse, meu Deus!
Deve ser o Matias, da Contabilidade. Ele não perdoa.
– Rafa, feijoada não, né? Você
produz armas químicas!
– Qual Raquel? A peidorreira?
Então, se agimos assim diante de
um mísero e inofensivo pacote de metano, por que o mesmo não acontece diante de
rapazes e moças, homens e mulheres que não têm vergonha alguma de expressar o
seu mais abjeto machismo na internet?
Neste domingo (25), chorume foi
despejado à taxa de vários metros cúbicos por segundo nas redes sociais, quando
pessoas revoltadas com o tema da redação do Enem – a persistência da violência
contra a mulher no Brasil – demonstraram toda a sua indignação. Para eles, o
tema foi “comunista'' ou “bolivariano'' – provando mais uma vez que, no fundo
do poço, tem um alçapão que dá em outro poço.
Li uma miríade de comentários
que, orgulhosamente, bradavam que o levar o tema ao Enem é mais uma forma de “doutrinar''
os mais jovens (doutrinar a não agredir mulheres?) e que, se o país fosse uma
democracia, a redação de uma prova pública não trataria desse assunto – que,
segundo esses comentários, é de foro íntimo.
Isso quando não iam direto ao
ponto, dizendo que “em briga de marido e mulher ninguém deveria meter a
colher'' ou que “a mulher que apanha sabe porque está apanhando'' ou ainda que
“ninguém se lembra dos homens que são enganados por vagabundas''.
Enfim, tudo isso é pior que
soltar pum em público. A analogia mais próxima é a de que o ser humano em
questão resolve cocô diante de milhares de pessoas ao justificar a violência de
gênero – algo que já deveria estar extinto, como o machismo. Em outras
palavras, gente que, provavelmente, não têm coragem de soltar um pum em um
jantar de família não teve o mínimo pudor de baixar as calças e fazer cocô,
ali, na frente de todo mundo.
Violência que só será erradicada
quando a sociedade como um todo e, principalmente, nós homens, refletirmos
sobre as diferentes formas de opressão que impomos e sobre formas de mudar a
situação.
Por sorte, a reação a esse
atentado à saúde pública foi grande, com muita gente questionando os
posicionamentos violentos. E, como já disse aqui neste espaço várias vezes,
essa é uma das chaves para trabalhar com a intolerância que grassa por aí: não
deixa-la sem resposta.
Pois quando as pessoas
conscientes se calam, um espaço para o ódio se espreguiçar e convencer mais
pessoas é aberto. Procurar o diálogo educado e embasado com dados, números e
fontes confiáveis (fontes confiáveis e não “o texto mandado pelo meu BFF no
WhatsApp'') pode barrar violentos de plantão e perfis fakes a soldo.
Uma redação não resolve nada, mas
ao menos, durante alguns minutos, muitos jovens que nunca haviam refletido mais
profundamente sobre o tema tiveram que se debruçar sobre ele. Se foram sinceros
ou não, se argumentaram pró ou contra (e dá pra ser contra?), não importa. Tudo
isso gerou um debate público, em um país carente desse tipo de discussão.
País que cora de vergonha de
soltar pum em público. Mas não de tratar mulheres como cidadãs de segunda
classe.
Fonte: Blog de Sakamoto
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