Experiência de jornalista do O Olho filmada com câmera
escondida, aponta para reflexão sobre o machismo e assédio sofrido por mulheres
piauienses.
Por Sávia Barreto do O Olho
Eram 10h36 de uma manhã de sábado. Teresina, quente, tão
quente, que não sei se suei apenas de calor ou de terror. Vestida de uma calça
jeans e uma blusa preta, andei só e calada, olhando preocupada, muitas vezes,
para os lados e sem o sorriso que pouco antes eu distribuía aos meus colegas de
redação.
Duas horas e pelo menos 15 assédios depois sinto bolhas nos
pés e dor na alma: o machismo de todo dia, assim, filmado e legendado, parece
que expõe mais as vísceras de uma sociedade desigual em gêneros, onde a mulher
está vulnerável a assobios, olhares e expressões sussurradas por desconhecidos
como “gostosa”, “bundinha” e “delícia”.
O EXPERIMENTO
Tirando o microfone escondido na bolsa, usei o tipo de roupa
que eu e milhares de teresinenses (incluindo as mães, filhas e irmãs dos meus
assediadores) usamos todos os dias para ir à rua. Meu produtor caminhava à
frente, sempre a alguns passos de distância, permitindo me filmar com uma
câmera escondida acoplada em sua mochila.
Preparação para experimento que relata assédio contra
mulheres nas ruas de Teresina / Foto: O Olho
Mesmo acompanhada de um produtor e do motorista que compõem
a equipe do O Olho, tive a sensação de leve desamparo por estar “sozinha”,
sujeita aos assédios dos quais eu fugia sempre que precisava estar em algum
local público, passando por homens.
Meu temor não era motivado por me considerar gostosa, linda
e estonteante (porque não sou e porque mesmo uma mulher que é, não merece
receber nenhum tipo de agressão verbal e sexual), mas porque basta ser mulher,
estar andando sozinha nas ruas, que quase prontamente alguns homens sentem-se
no direito de avaliar a forma física e até de fazer convites sexuais.
Lá está você pagando o plano de saúde da sua mãe no Centro
da cidade, quando alguém que você nunca viu, e que sequer cruzou os olhos,
alheio aos seus problemas e vontades, grita: “Vamos lá em casa delícia?”. Não é
um convite, é uma invasão.
A “CARCAÇA” QUE VESTIMOS PARA IR À RUA
Antes de sair à rua, é preciso vestir, além da roupa, um
outro acessório, quase invisível, mas essencial se você for mulher: uma
expressão fechada, de quem não quer conversa. Nós, mulheres, costumamos
mantê-la enquanto temos que perambular por espaços públicos, principalmente se
estivermos sozinhas e houverem homens desconhecidos por perto.
É tolhendo pequenas liberdades diárias femininas, inclusive
a de sorrir e se vestir como bem entender, que o machismo vai trancando as
mulheres em calabouços pisicológicos.
“Não olhe para os lados, evite passar perto de homens, se
falarem algo sobre seu corpo, não responda”.
Esse não é um ensinamento passado verbalmente de mãe para filha, ou
entre amigas. É um comportamento quase intrínseco à quem pertence ao sexo
feminino no mundo ocidental. Tanto faz se você está numa pequena e quente
capital no Nordeste brasileiro, ou na fria Nova York norte-americana.
Um experimento idealizado pela ONG Hollaback, permitiu
analisar o quanto as mulheres sofrem com o assédio masculino nas ruas de Nova
York / Imagem: Reprodução Youtube
Inspirada em um experimento realizado em Nova York por uma
atriz de uma ONG que registrou mais de 100 comentários de assédio masculinos em
um vídeo filmado durante uma caminhada de dez horas pelas ruas de Manhattan
(clique aqui para ver o vídeo) , resolvi fazer o mesmo teste em Teresina,
andando por ruas do Centro e da zona Sul por cerca de duas horas durante um
sábado pela manhã.
AGRESSÃO VERBAL: “B******** GOSTOSA”
É quase meio-dia. Passo por vários homens na porta de um bar
e sinto um grande alívio por ter sido apenas olhada, como se passasse por um
raio-X de aeroporto, mas sem nenhum comentário verbal.
Mais a frente, ainda degustando uma tranquilidade que eu mal
sabia que seria fulgaz, passo por um homem branco de uns 50 anos. Ele fala
baixo, mas eu ouço: “b******** gostosa”.
Gelo imediatamente, fico com as mãos tensas e tenho vontade de chorar.
Reprodução Youtube/O Olho
Parece que volto no tempo e lembro de ter 20 anos, descer do
ônibus no bairro Saci, zona Sul de Teresina, enquanto caminho várias quadras
até minha casa. Também era meio-dia e eu vinha da Universidade Federal do
Piauí, onde cursava Ciências Sociais. Aquele caminho era comum para mim, e
quase todo dia eu o fazia intercalando ônibus e longas caminhadas até minha
casa.
Naquele dia, há sete anos, um homem pára, pergunta as horas,
eu olho para o relógio e antes de responder ele coloca a mão debaixo da minha
saia, fala “b*********” e sai correndo. Fico atônita. Ainda tenho forças para
gritar enquanto ele corre para a outra rua: “Infeliz, maldito”, falo bem alto
com a revolta, humilhação e ódio engasgados.
Chego em casa me culpando por ter respondido a um estranho
na rua. Eu era jovem demais para saber que a culpa não era minha. Só muitos
anos depois consigo contar essa história para meu noivo, amigos e amigas.
Alívio quando estou sozinha na rua, sem possibilidades de
assédios / Foto: Nataniel Lima/O Olho
As mulheres, quando ouvem, solidarizam-se imediatamente e
passam a relatar também suas histórias. S.R., uma amiga jornalista, por
exemplo, conta que chegou a ameaçar com pedras um homem que a assediou nas ruas
a chamando de “gostosa”. Os homens, por outro lado, ouvem a mesma história e
acabam rindo. Acham que é apenas uma anedota. Não é. Violência sexual não tem
graça.
COMO SE SENTIR UM “NADA”
Logo eu, que me considero uma jovem mulher de 27 anos,
empoderada, firme, forte (quase sempre), me senti um “nada”. Ocupo um cargo de
chefia em um universo onde 80% dos colegas de profissão em posição de comando
são homens. Não choro fácil e não abaixo a cabeça porque alguém não gostou de
algo que fiz ou disse. Na rua, porém, eu baixei.
Quando passava por grupos de homens, tentava instintivamente
atravessar a rua e ficar o mais longe possível deles, mesmo sabendo que minha
missão nessa reportagem era seguir em frente e registrar caso fosse
importunada.
Homens bem arrumados, homens desarrumados, mais novos, mais
velhos, brancos, negros, mulatos. Não há um perfil para o assediador. Em comum,
a sensação de impotência. No assédio, ficou claro para mim, há uma relação de
poder em que se tenta colocar as mulheres em uma posição submissa.
Na rua, dificlmente encaro alguém, olho nos olhos, nada que
possa ser interpretado erroneamente como um “convite”. Percebo nas mulheres
próximas a mim, uma espécie de solidariedade quando tenho que passar por grupos
de homens. Uma troca de olhares assustados antecedem meus passos, como se me
perguntassem: “Menina, tem certeza que vai por aí?”.
Sim, eu poderia responder, retrucar, e algumas vezes já fiz
isso na rua (quando estava perto de outras pessoas a quem poderia recorrer para
manter minha segurança). O medo de ser seguida e (mais) agredida é ainda maior,
e na maior parte das vezes as mulheres se calam já que muitos homens, ao ouvir
um “não”, se revoltam, xingam e partem para a violência.
Quando a experiência chega ao fim, me sinto exausta. Não
pelos calos no pé ou pela roupa quase ensopada de suor. O que cansa é todo o desgaste
emocional de sentir medo e vulnerabilidade por ser mulher.
Um exemplo disso foi retratado em 2012, quando uma jovem
belga de 25 anos decidiu gravar o que ouvia dos homens enquanto caminhava pelas
ruas de Bruxelas – e principalmente de sua vizinhança, em um bairro pobre da
cidade. O resultado foi o documentário Femme de la Rue (Mulher da Rua, em
tradução livre). Um dos homens chega pelas suas costas, dizendo que ela é linda. Outro, simplesmente a cruza na
calçada, vira o rosto em sua direção e a chama de “vadia”.
COMENTÁRIOS ABUSIVOS NÃO SÃO CANTADAS
Comentários sexuais abusivos e ameaçadores não são cantadas.
Paquerar alguém pressupõe permissão, reciprocidade. A chave está em uma
palavra: consentimento. Assédios sexuais em locais públicos são um problema
social. Não tem a ver com “fulano de tal” que é grosseiro, ou aquele outro
indivíduo que é machista. Não são casos isolados.
Cada “fiu-fiu” e “meu bem” direcionados à mulheres na rua
que não são conhecidas de quem profere o “elogio” é, na verdade, apenas mais um
sintoma de uma cultura que incentiva e considera a misoginia (a repulsa,
desprezo ou ódio contra às mulheres) algo inofensivo.
E mesmo essa sendo minha opinião pessoal, em um texto
assinado por mim contando uma experiência pessoal com todos os viés decorrentes
dela, não estou só nessa ideia. Pesquisa divulgada em 2013 aponta que 83% das
mulheres brasileiras não gostam das cantadas de rua. A pesquisa feita pelo site
Olga, aponta que quase oito mil mulheres responderam o questionário elaborado
pela jornalista Karin Hueck, e 99,6% relataram já terem sofrido assédio na rua.
“A gente acha que o machista e o assediador é esse homem sem
rosto, esse homem desconhecido que abusa das mulheres nas ruas escuras. Não é.
Esses assediadores são pais, são filhos, são profissionais competentes que
estão mais perto do que a gente imagina. […] Por quê? Porque o assédio é
legítimo culturalmente. Ele é entendido como algo que faz parte do homem. Ele é
entendido como algo bom, como flerte. Mas não é”, relata a jornalista Juliana
de Faria em sua palestra no TED São Paulo.
Ela é criadora de uma página no Facebook chamada “Chega de
Fiu Fiu”, que expõe, entre outras situações, atos que as mulheres deixam de
fazer por conta do assédio. Um exemplo disso é que sair de casa vestindo o que
quiser, independente do destino e do meio de transporte escolhido, ou então
olhar quando alguém lhe chama na rua.
“Ah mas eu sou homem e adoro quando uma mulher me ‘elogia’
na rua”, pode argumentar um. A diferença é que crimes sexuais contra mulheres
são estratosfericamente maiores do que em relação aos homens. Numericamente,
temos motivos para temer.
Campanha da página “Chega de Fiu Fiu” no Facebook alerta
contra assédios que mulheres sofrem nas ruas / Imagem: Reprodução Facebook
É possível, sendo homem, ouvir um “elogio” sem medo de ser
perseguido, seguido ou até mesmo violado contra a própria vontade – como ocorre
com muitas mulheres.
Em outubro de 2013, a estudante Anne Melo, chegou a ser
presa por agentes da Tropa de Choque após ser chamada por um dos policiais de
“gostosa”, durante o protesto realizado no centro do Rio de Janeiro.
Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o momento em que
a jovem foi detida sob acusação de desacato. Segundo a estudante relatou,
depois de receber o suposto “elogio” de um PM que estava na garupa de uma moto
do Choque, ela respondeu ao policial de forma “agressiva”. Terminou presa por
não ter aceitado a “gracinha” proferida por uma figura de autoridade.
“ASSEDIE A SUA MÃE”
Uma campanha (vídeo abaixo) realizada pela empresa Everlast
do Peru, selecionou homens que, constantemente, assediavam mulheres na rua e
localizou suas mães. Decidindo por participar da campanha, elas foram
produzidas com acessórios como perucas e vestimentos tornando-as mais jovens e
quase irreconhecíveis.
Resultado: foram alvos de cantadas dos próprios filhos. Ao
descobrirem a real identidade de quem eles estavam cantando, os assediadores
pediram desculpas e alegaram arrependimento e constrangimento. A pergunta que
não quer calar: homens que assediam mulheres gostariam que suas mães ou filhas
fossem assediadas da mesma forma?
CARETA E SÁTIRA
Em março deste ano virou notícia uma jovem de Belo Horizonte
que, cansada dos assédios nas ruas, adotou uma “tática” para afastar as cantadas
indesejadas. A estudante de administração pública na FJP (Fundação João
Pinheiro), Débora Adorno, 22, faz uma careta que consiste em dobrar o lábio
superior para dentro da boca, de forma que a arcada dentária fique exposta
constantemente.
“Os homens ficam com asco. É uma situação ruim para eles.
Tem homens que veem a cantada de rua como um elogio. Pensa que a mulher gosta e
que está na rua para isso mesmo”, contou ela ao site Uol.
O vídeo abaixo também mostra, de forma satírica e com
inversão de papéis (um homem “machista” assediando outros homens), pelo que
passam as mulheres diariamente:
ESTAR EM ESPAÇO PÚBLICO NÃO TORNA SEU CORPO PÚBLICO
Estar em um espaço público não torna seu corpo público.
Estar de blusa decotada ou short curto não é uma autorização velada para que
seu corpo seja analisado e a opinião não solicitada seja despejada na sua cara
sem seu consentimento – e isso vale para homens e mulheres.
Agressões disfarçadas de elogios não são bem-vindas.
Demonstrar interesse por alguém em qualquer situação, sem ponderar sobre o
ambiente ou a reciprocidade, não é lisonjeiro, é repulsivo. O simples ato de
andar na rua carrega medos e limitações para as mulheres. A dinâmica do
machismo – dominação do homem sob a mulher – se estabelece em ações comuns do
cotidiano.
Acuar as mulheres com “gracejos” que tentam submetê-las à
libido masculina é uma delas; julgar e culpar a mulher pela roupa que usa
(“também, com uma blusinha dessas, pediu pra ser assediada!”), culpabilizando a
vítima, são atitudes que refletem uma sociedade que cultiva não apenas a
cultura do assédio, mas também do estupro – já que ambas são pautadas na
objetificação das mulheres.
Campanhas de conscientização sobre o assédio verbal nas ruas
e punições mais rígidas, também contribuem para tirar o tema do campo pessoal,
colocando-o no seu devido lugar: o espaço público, já que este é um problema
social mais amplo. Na Argentina, por exemplo, três projetos de lei, um
apresentado no Congresso argentino e dois na Legislatura de Buenos Aires, buscam
punir – e, principalmente, prevenir – a prática difundida e naturalizada de
violência de gênero com a qual sofrem cotidianamente milhares de mulheres em
espaços públicos.
As sanções vão de multas a dez dias de prestação de serviços
comunitários ou até mesmo prisão para os que praticarem o delito. Acima de
tudo, a solução é tentar mudar a cultura em que vivemos. Expor os problemas e a
partir daí debater a respeito das causas estruturais. As mulheres não podem e
nem devem ficar amedrontadas e exiladas dos espaços públicos.
Produção e edição do vídeo: Nataniel Lima. Apoio: Ricardo
Moraes.
Fonte: Geledes
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