Copa do Mundo trará 500 mil turistas estrangeiros, entre
eles muitos pornoturistas. Infância está vulnerável à exploração nas
cidades-sedes.
Quando a Copa de 2014 chegar, o Brasil terá provado ao mundo
ser capaz de erguer uma dezena de odes de concreto ao esporte que o notabilizou
como país do futebol. Terá estádios monumentais, mais aeroportos, metrôs e
avenidas. Vai dispor para isso de R$ 27 bilhões, o equivalente a metade da
economia de um ano inteiro de um país como o Paraguai, ou o Bahrein. Mas a Copa
não é para todos. Uma parcela dos brasileiros já saiu perdendo, a começar pelas
170 mil pessoas ameaçadas de perder suas casas para dar lugar às obras. Há
também os que ainda vão perder com a Copa, mas não sabem, e, ao contrário,
pensarão estar tirando alguma vantagem.
O Brasil desconhece a dimensão da exploração sexual de
crianças e adolescentes porque não dispõe de estatísticas a respeito. “Não se
faz políticas públicas sem dados e sem orçamento”, avalia a advogada
especialista em direitos da infância Jalusa Silva de Arruda, da Universidade
Federal da Bahia. O país carece de ambos. O único estudo do gênero é de 2002.
Desde então, tateia-se em cifras ocultas, mascarando o problema com
subnotificações ao lançar o pouco que se registra no pacote das “violências
sexuais”.
Megaeventos como a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 tendem
a agravar essas discrepâncias devido à vinda dos pornoturistas imiscuídos no
grande fluxo de turistas. “Os casos de turismo sexual, quando identificados,
são enquadrados na categoria de violência sexual”, observa Tiana Sento-Sé,
representante no Brasil da ECPAT Internacional, organização que trabalha em 20
países no enfrentamento da exploração sexual, da pornografia, do turismo sexual
e do tráfico de crianças e adolescentes.
“Os governos estão na verdade investindo na exploração
sexual, uma vez que trarão um grande número de turistas sem investir em
políticas públicas de prevenção”, analisa o presidente do Conselho Estadual de
Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, Marcos Dionísio Medeiros Caldas. O
mais grave é que estados e municípios estão ausentes das discussões, inertes
nas ações e omissos em seus orçamentos, constata o Centro de Referência em
Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Visão judicialista
Os governos resistem em admitir a existência do turismo
sexual porque isso mancha a reputação das cidades turísticas, o que se reflete
na falta de ações governamentais. Para o advogado Carlos Nicodemos, coordenador
do Projeto Legal, a visão judicialista sobre o tema leva à prevalência de um
sistema judiciário com viés criminalizador das vítimas. “Crianças e
adolescentes expostos ao turismo sexual são na verdade vítimas de estupro”,
considera. A origem do problema está na falta de ações de governo que sejam
capazes de protegê-las das redes de exploração.
Os exemplos de descaso se espraiam pelo país. No Rio de
Janeiro, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente tem desde
2002 um plano de enfretamento à violência sexual. Mas só 15% das ações saíram
do papel, diz Nicodemos. Os 92 municípios do estado têm Conselhos Tutelares,
mas sucateados.
Em Natal, os Conselhos Tutelares estão à míngua. Até julho,
a prefeitura não havia feito um repasse sequer no ano e o CT Leste sobrevivia
das sobras de 2011. A unidade enfrentou até uma ação de despejo porque o
município não havia pagado o aluguel. O repasse mensal de R$ 14,5 mil cobre
aluguel, combustível, água, luz, telefone e material de expediente.
O Brasil espera um grande movimento financeiro durante a
Copa e, antes disso, com as obras de infraestrutura nas 12 cidades-sedes. Mas
há uma ameaça por trás de tanta euforia: a concentração de operários nas obras,
a grande movimentação de pessoas nos jogos e a circulação de dinheiro
representam um risco maior às crianças socialmente vulneráveis. As redes de
exploração sexual e de tráfico de seres humanos tendem a se organizar para
recrutar mulheres, crianças e adolescentes para uma demanda que certamente
crescerá com a vinda de mais de meio milhão de turistas, pelas estimativas do
Ministério do Turismo.
Mais vulneráveis
Quem mais vai perder é uma infância já maltratada, que
ficará sem Copa e sem direitos. As condições estão postas desde há muito.
Durante 45 dias, a equipe da Gazeta do Povo percorreu 10.500 km pela costa
brasileira, passando por Rio de Janeiro, Recife, Natal, Salvador e Fortaleza,
as cinco cidades-sede da Copa onde crianças e adolescentes estão mais
vulneráveis ao turismo sexual, um simulacro do turismo convencional que melhor
se qualificaria como turismo predatório, pelo pouco que deixa e o muito que
leva. O sexo turismo existe, ainda que governos e parte do setor turístico não
o reconheçam.
Neste cenário de sol e mar se cruzam dois personagens da
exploração sexual no turismo, numa relação desigual entre quem tem poder
econômico e quem busca a sobrevivência ou uma melhor colocação socioeconômica.
De um lado, o turista à procura de aventuras eróticas em lugares onde possa
transgredir os padrões morais livre de hostilização e sem se submeter ao
escrutínio da consciência; de outro, crianças saídas de um cenário social
caótico, submetidas à miséria, ao alcoolismo, às agressões físicas e ao abuso
sexual, ou, ainda, jovens de classe média atrás de recursos para melhorar o
padrão de consumo.
O pornoturismo segue uma lógica de mercado. Existe porque
há demanda, e o Brasil é um destino barato para quem chega de países com moeda
mais valorizada do que o real. O predador sexual usa a mesma infraestrutura de
outros turistas e, em geral, a atividade depende da cumplicidade por ação
direta ou omissão de guias e agências de viagens, hotéis, bares, restaurantes,
barracas de praia, garçons, porteiros, caminhoneiros, taxistas, prostíbulos,
casas de massagem. E enquanto houver o turismo sexual, a possibilidade de ele
atrair crianças e adolescentes sempre existirá. Cada cidade tem seus pontos
propícios para o sexo proibido com menores de idade.
No Rio, um bar sofisticado de Copacabana atende aos turistas
que buscam sexo. Em maio, a Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (Decav)
recolheu dali quatro meninas de 16 e 17 anos, duas com documentos falsos. A
Decav indiciou três turistas dos Estados Unidos e quatro agenciadores
brasileiros por exploração sexual. Nem isso fez cair o movimento de
estrangeiros atrás de sexo fácil. Também é grande no local o fluxo de carros de
luxo que buscam garotas de programa para levá-las às saunas, hotéis e
condomínios onde os turistas as aguardam.
As garotas assediam os turistas e propõem diversos lugares
para o programa. “Pode ser ali na escada, amor, ali na escada, no carro ou no
motel”, diz uma. “Na beira da praia?”, exclama o repórter. “Não. Aqui, ó, na
calçada, no calçadão”, diz apontando para uma escada de acesso ao subsolo de um
quiosque.
“No hotel tem que pagar 80 reais, mais o programa. Ali não,
amor, ali é tranquilo”, assegura. O sexo ao ar livre também é oferecido na
Barra da Tijuca, bairro nobre para onde a prostituição está migrando. Ali, uma
travesti adolescente propôs o programa entre os latões de lixo atrás de um
quiosque fechado, ao lado do calçadão.
Praia e sexo
Em Fortaleza, um conjunto de bares anima as noites nos
arredores da Praia de Iracema, a mais badalada da cidade. “Ali é só para o
turismo sexual”, avisa um agente alternativo de turismo que aborda turistas no
calçadão. Ele sabe do que está falando. Ainda na rua dá para ver o balançar dos
corpos em movimentos insinuantes, ouvir os gritos alegres e uma música difusa e
barulhenta que entra pelos ouvidos. Corpos esguios, mal cobertos, transitam
entre os clientes. Pelas portas e janelas vazam nuvens de fumaça e os eflúvios
de álcool. São templos de prazer fácil e fugaz, onde se consegue horas felizes
com pouco dinheiro.
“São todas garotas de programa”, diz um dos taxistas que
aguardam à porta, apontando as duas boates, uma em cada esquina. As casas
simulam algum controle, mas nada que impeça a entrada de menores de idade. As
ruas em frente estão coalhadas de mulheres e adolescentes à espera de clientes
enquanto descansam e comem um cachorro-quente. O cenário se repete na Rua do
Salsa, em Natal, onde casas noturnas para turistas se confundem com bares que
se tornaram pontos de concentração de garotas de programa. Os turistas chegam
por indicação de guias de turismo, barraqueiros de praia, garçons, taxistas, recepcionistas
de hotéis.
Durante o dia, o assédio aos turistas se dá na Praia de
Ponta Negra, a mais badalada de Natal, comum também nas praias do Meio e
Rendinha. A relação das nativas com os visitantes nem sempre acaba bem. Só o
Conselho Tutelar Sul atende a 10 casos de estrangeiros que brigam na Justiça
pela guarda do filho que tiveram com brasileiras. Em Salvador, o turismo sexual
é frequente nas praias de Itapoã e Barra, onde a reportagem entrevistou mãe e
filha que fazem programas com estrangeiros.
Fonte: Gazeta do Povo
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