As mulheres somos as vítimas privilegiadas de um sistema que controla nosso paladar e nossa dieta e de uma indústria que extrai substanciosos benefícios sem levar em consideração os danos ao bolso, à saúde, ao meio ambiente e aos corpos e ao bem estar das mulheres.
Por Geraldina Céspedes
Ao ler o título dessa breve reflexão, algumas pessoas
pensarão que escrevo sobre a pintora Lee Price e seus quadros, que têm como
temática principal a conexão entre a comida e as mulheres. Apesar de que seria
interessante contemplar esses quadros nos quais a autora faz uma combinação
entre esses dois aspectos, aqui quero refletir sobre duas questões:
A primeira é a discriminação alimentar ou a realidade de
fome na perspectiva das mulheres. Sabe-se que no mundo somos 7 bilhões de
pessoas e o que produzimos daria para alimentarmos até 12 bilhões de seres
humanos. Ou seja, que o mito da sobrepopulação ou explosão demográfica é uma
das maiores campanhas de desinformação e mentira da história, que pretende
esconder o problema da injustiça e da divisão não equitativa dos bens da
criação.
No caso da América Central, alguns estudos mostram que só a
Guatemala produz uma quantidade capaz de alimentar duas vezes toda a região.
Porém, é também na Guatemala onde se registram índices alarmantes em relação à
questão alimentar. É um país com o mais alto porcentagem de pessoas subnutridas
(22%), seguido pela Nicarágua (19%) e o único país da região onde a subnutrição
da população aumentou em vez de diminuir. Em relação à desnutrição, a Guatemala
também ostenta uma cifra muito alta, com 15% da população atingida, uma taxa
que está muito acima da média da América Latina e Caribe, que, segundo estudos
da FAO, é de 8%.
Nessa reflexão, nos interessa a realidade da distribuição
desigual de alimentos entre os sexos. Apesar de que as mulheres jogam um papel
chave na produção, no processamento e na preparação de alimentos (as mulheres
produzimos mais de 50% dos alimentos cultivados em todo o mundo), no entanto,
de todos os desnutridos do mundo, as mulheres representam a escandalosa cifra
de 74%. Esse dado revela uma situação de desequilíbrio e de relações
desajustadas que acontecem na sociedade entre homens e mulheres e que se
expressam em questões tão básicas como, por exemplo, a alimentação. A respeito
existe uma série de tabus e de tradições que vêm a justificar a repartição
desigual de alimentos entre homens e mulheres. Pensemos, por exemplo, em uma
questão tão simples e cotidiana como a forma em que uma família reparte as
partes de um frango, feito para todos. Isso, que parece não substancial ou
puramente anedótico, pode servir para uma análise de gênero, pois, a partir daí
se pode descobrir que visão temos sobre o homem e a mulher, de seus direitos e
de sua valorização na sociedade e na família. È na repartição cotidiana dos
alimentos, onde podemos analisar de forma mais clara e concreta isso que se
chama a discriminação alimentar.
Outra questão que chama a atenção e que constitui uma
manifestação da baixa autoestima das mulheres é que interiorizamos e nos
acostumamos a comer aquilo que sobra e a comê-lo rapidamente, de pé etc. Em
muitas sociedades e culturas, as mulheres (jovens ou adultas) comem depois dos
homens da família e não comem sentadas à mesa, mas na cozinha; muitas vezes, de
pé, indo e vindo da cozinha até a sala de refeições, para abastecer e servir
aos homens. Se a família é de escassos recursos e não existe quantidade
suficiente e qualidade de alimentos, podemos imaginar o que acontece com a
alimentação das mulheres da família. Ou seja, as mulheres estão em uma situação
de vulnerabilidade em relação ao direito à alimentação adequada e saudável.
Um dos desafios que os movimentos sociais em geral e os
movimentos sociais de mulheres têm hoje é a luta pela segurança alimentar na
perspectiva de gênero, pois descobrimos uma realidade clamorosa que muitas
vezes permanece oculta quando se fala da desnutrição dos seres humanos em
geral. Hoje em dia, a luta pela segurança alimentar tem que incluir esse
enfoque de gênero devido aos dados que manifestam uma situação alarmante de
desnutrição ou subnutrição feminina. Muitas vezes nossas discussões e reflexões
feministas ou de gênero ficam em abstrações e não tocam questiones tão básicas
e tão cotidianas como essas expressões da feminização da fome.
Em uma perspectiva crente, essa realidade da feminização da
fome nos evoca o compromisso que se desprende do texto de Mateus 25,35: "tive
fome e me deste de comer”, que lido em uma perspectiva feminista nos convida a
propormos a questão de como garantimos a justiça e a segurança alimentar para
todos igualmente. A utopia para a qual homens e mulheres devemos caminhar em
relação ao tema da alimentação é a do profeta Isaías, no capítulo 25, ao
falar-nos do banquete para o qual Deus convidou todos e todas: um mundo onde
nenhuma pessoa fique excluída de participar da festa de manjares suculentos e
desfrutar por igual dos dons que Deus dá a todos e todas.
A segunda questão sobre a qual sugiro refletir é sobre as
formas daninhas e saudáveis de alimentar-nos como mulheres. Isso vejo ao
constatar que as mulheres somos as vítimas privilegiadas de um sistema que
controla nosso paladar e nossa dieta e de uma indústria que extrai
substanciosos benefícios sem levar em consideração os danos ao bolso, à saúde,
ao meio ambiente e aos corpos e ao bem estar das mulheres. É inegável que
existem desordens alimentares que se manifestam com mais força nos tempos
modernos e que atingem tanto homens quanto mulheres. No entanto, sabemos que
esses transtornos na alimentação, dentro dos que se destacam, sobretudo, a
anorexia e a bulimia (e também a bulimarexia, que é a combinação de ambos),
tendo as mulheres como as maiores vítimas.
95% das pessoas que sofrem de anorexia são mulheres
pressionadas pelos cânones de beleza da sociedade atual que predica a filosofia
da magreza e da aparência; a bulimia, por seu lado, atinge dez vezes mais as
mulheres do que os homens. Esses dois problemas me fazem recordar o que
Saramago disse em seu livro "Memorial del Convento”: ao longo do ano, tem
gente que morre por ter comido muito durante toda a sua vida ou por ter comido
pouco durante toda a sua vida.
Aprender a alimentar-nos é um ato cotidiano básico que
podemos converter em uma prática de grande transcendência revolucionária e
espiritual. No que comemos, onde comemos, como e com quem comemos vão mesclados
com nossas opções e com nossas cosmovisões, visões de nós mesmas e das relações
humanas. Através do ato de comer se expressam nossas convicções mais profundas
e nossas opções sociopolíticas e religiosas. Não é preciso dar exemplos; apenas
convido a que revisemos como acontece em nossas vidas e em nosso círculo de
relações.
Para nós como mulheres, é um grande desafio aprender a
alimentar-nos exercitando nossa autonomia e nossa liberdade; ou seja, aprender
a comer sem deixar de ter o controle de nossos corpos e de nossos gostos à moda
da época na sociedade neoliberal patriarcal a qual temos que comprazer. Temos
que aprender a encontrar o equilíbrio alimentar que brota de uma visão
solidária, da mística do princípio do suficiente (comer apenas o que
necessito), de praticar a liberdade e o autocontrole na hora de alimentar-nos
e, sobretudo, de uma contemplação dos alimentos como uma bênção de Deus, que
temos que desfrutar. Quem come muito ou não come, não pode desfrutar, nem
acolher o alimento como bênção e como presente de Deus. Em meio a um sistema
que banaliza tudo e quer converter tudo em mercadoria e em negócio, temos que
reivindicar a sacralidade da comida e do ato de comer.
Fonte: Adital
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