Os direitos buscados pelas pessoas que se prostituem quando
pensam na ocupação que realizam não seriam muito mais direitos de seguridade
social e de dignidade sexual do que propriamente direitos trabalhistas, os
quais poderiam ser estabelecidos em regimentos ou códigos de ética construídos
entre elas e os próprios clientes e entre elas e as parceiras de trabalho?
O NOSSO SOCIALISMO E A QUESTÃO DA PROSTITUIÇÃO
*Bernadete Aparecida Ferreira
Sou Mulher, sou libertação
Onde houver uma caída, eu levanto
Onde houver uma morta, doente, desesperada ou chorando!
Sou guerreira...
Sou pássaro, sou canto
Levanto meu povo, e o tiro da escravidão
Meu nome é libertação, sou paz, sou esperança
Sou arco-íris neste mundo de injustiça. Meu nome é
fraternidade
Me chamo Mulher: Sou humanidade!
(Francisca Andrade, GMEL, 2009)
PROSTITUIÇÃO E OUTROS
SUJEITOS NA DISPUTA
Esse poema: “Sou mulher, sou libertação”, é de autoria de
uma educadora do Maranhão, Francisca Andrade, que faz parte do GMEL – Grupo
Feminista Mulher, Ética e Libertação. O GMEL foi formado em 2006, por mulheres
que estiveram ou estavam em situação de prostituição, quando faziam advocacies
e lutas contra a aprovação do projeto de autoria de Fernando Gabeira, que
visava à retirada do Código penal, daqueles artigos que criminalizam a
exploração da prostituição.
Esta luta deu a elas ganas de continuar lutando e formaram
este grupo que tem lideranças em quatro regiões do Brasil. Para o senso comum
brasileiro que discrimina mulheres em situação de prostituição como a escória
da humanidade e para sociólogos, antropólogos e politicólogos que só encontram
um sujeito político no cenário de lutas referentes à prostituição, apresentamos
as outras visões e outros possíveis sujeitos, inclusive aliados à nossa luta
socialista e anticapitalista.
O GMEL, em 2009, lançou uma cartilha popular intitulada
“Mulher, a vida é tua”, onde apresenta em linguagem simples, mas não chula, um
pouco das três principais linhas no enfoque da prostituição. Vejamos o que diz
a cartilha.
Regulamentarismo:
Vem de regulamentar, tornar regrado, legal. No
regulamentarismo a prostituição é vista como um mal necessário, mas também como
um perigo para a ordem pública e para a moral social. Precisa ser controlada
pelo Estado e pelas Instituições. A prostituição, nesse modo de ver, é
permitida e legalizada, de forma a ser feito um melhor controle, e pode
acontecer apenas em determinados locais, horários e sob determinadas condições.
Geralmente a regulamentação visa o controle de saúde, conceder lucros ao
Estado, ou aos atravessadores, e àquelas pessoas e grupos que se beneficiam da
prostituição alheia. É engano pensar que no regime regulamentarista as mulheres
em situação de prostituição são prioridades e que regulamentação acaba com
todos os problemas.
Sobre a linha
abolicionista, diz o seguinte:
Abolicionismo:
No abolicionismo a prostituição não é exercida a partir de
uma autonomia sexual da mulher, mas de uma necessidade financeira, que
geralmente ocorre numa sociedade desigual que não proporciona aos seus cidadãos
condições dignas de vida. Ele propõe que a prostituição seja abolida, pois
entende que ela é em
Si uma violência contra as mulheres que a praticam, e que o
Estado e sociedade possam favorecer alternativas de vida no lugar da
prostituição. Assim, neste regime, as mulheres que exercem a prostituição não
são criminalizadas porque estão no seu direito de exercê-la enquanto modo de
subsistência. Mas, o cliente, cafetão, cafetina e proxeneta são criminalizados
porque exploram a mulher em benefício próprio. Por isso, o art. 6º. Da
Convenção Abolicionista Internacional reza que: Cada parte na presente
Convenção convém em adotar todas as medidas necessárias para ab-rogar ou abolir
toda lei, regulamento e prática administrativa que obriguem a inscrever-se em
registros especiais, possuir documentos especiais ou conformar-se a condições
excepcionais de vigilância ou de notificação às pessoas que se entregam ou que
se supõem entregar-se à prostituição.
Por fim, sobre a
terceira linha a cartilha versa o seguinte:
Proibicionismo:
Nesse regime, a prostituição é proibida e criminalizada; é
vista como uma vergonha e um perigo para a moral e para a ordem pública. A
prostituição é interditada e a organização das mulheres é impedida porque ela é
totalmente ilegal e criminalizada, assim como clientes, atravessadores, aliciadores,
proxenetas, gigolôs etc. Esse regime vigora em alguns países. Os principais
meios de repressão são a Polícia e o Estado. As mulheres são revistadas, são
exigidos os seus documentos e são tratadas como delinqüentes. Embora no Brasil
tenha outra legislação, é comum acontecer a prática do proibicionismo. A
polícia, o Estado, a sociedade e alguns setores das Igrejas tratam as mulheres
em situação de prostituição com uma visão moralista e preconceituosa. E a
cultura jurídica é de impunidade.
Há estudiosas da questão da prostituição no Brasil que
chegam a propor a existência de uma quarta linha, que seria uma corrente
híbrida entre estas três visões, chamada de linha da autodeterminação das
próprias mulheres em situação de prostituição.
Porém, esta linha não é ainda reconhecida pelas mulheres
envolvidas no mundo prostitucional, mesmo que seja crescente a participação
delas em ações e propostas para diminuir sua desproteção social, isto ainda se
dá de forma tutelada ou impregnada de elementos teóricos advindos das visões
anteriormente apresentadas.
Como a luta é dialética, podemos supor que a luta por
autodeterminação continuará trazendo elementos sintéticos da visão
regulamentarista, abolicionista ou proibicionista, ou tenderá para uma única
destas visões, se as mulheres, a sociedade ou o Estado não estiverem
devidamente conscientes dessa dinâmica histórica.
É o que tem acontecido nesses últimos 20 anos de luta social
em que o sujeito político “prostituta” tem apresentado suas demandas sociais, e
a principal delas: Regulamentação do lenocínio e de uma suposta profissão. A
parte tem sido tomada pelo todo, tanto em termos de proposta macro a ser levada
em consideração por políticas sociais quanto em termos do enfoque teórico
utilizado para justificar a necessidade das mudanças sociais e jurídicas.
Há uma desconsideração ou desvalorização dos demais sujeitos
políticos e sociais: as mulheres e homens em situação de prostituição, as que
estiveram nessa condição e que não mais desejam viver e trabalhar no mundo
prostitucional, assim como há um desconhecimento generalizado da história
pregressa destes movimentos, inclusive, do movimento que lutou e luta por
regulamentação da prostituição em nosso país, e com que condicionantes este
país já vivenciou o regime regulamentarista da prostituição em etapas
históricas anteriores.
Há um desconhecimento de que foi o movimento abolicionista
internacional que legitimou e continua legitimando a normativa internacional
que ajudou a construir as leis no que tange a prostituição em muitos países,
inclusive no Brasil, que é a Convenção Abolicionista Internacional e que foi o
movimento abolicionista, com cunho feminista inclusive, que deu origem a
trabalhos sociais e religiosos com as mulheres em situação de prostituição no
nordeste e em São Paulo.
Nos últimos oito anos o Brasil viu surgir pelo menos dois
novos sujeitos diverso da Rede Brasileira de Profissionais do Sexo: a Federação
Brasileira das Prostitutas e o GMEL – Grupo Mulher, Ética e Libertação, com
posicionamentos e propostas muito diversas da regulamentação da prostituição.
Além dessa novidade, surgida à custa de muito trabalho e de
muita dialética histórica, há uma imensa massa de pessoas que vivem na e da
prostituição, que manifestam em pesquisas científicas e levantamento de dados
que não desejam continuar na prostituição, que se trata de uma atividade
provisória em suas vidas e, portanto, não desejam e não recomendam, por “N”
motivos, a regulamentação da prostituição.
O QUE E COMO É MESMO
A PROSTITUIÇÃO NO BRASIL?
Pela dimensão e a história do fenômeno da prostituição há
muito pouca coisa escrita e pensada sobre ele. A prostituição é, ao mesmo
tempo, uma mazela social, uma mazela econômica, um requinte do patriarcado e
uma das formas de expressão da violência de gênero.
Há também pouca literatura feminista sobre o tema e os
movimentos têm dificuldade de expressar uma opinião consolidada sobre isto. Há
dubiedades e não há posicionamento único, posto que também haja vários
feminismos. Estes feminismos reconhecem que é preciso se debruçar mais em
entender o estado da arte de diagnosticar, teorizar e interferir social e
culturalmente sobre a prostituição, que, definitivamente, afeta e sempre afetou
majoritariamente as mulheres em todo o mundo.
Há mulheres e homens na prostituição advindos de todas as
classes sociais, é verdade. Mas, a prostituição não é tão democrática assim.
Nem mesmo com o maior dos esforços liberais, conseguiremos provar que há muitas
pessoas que em seu livre arbítrio e liberalidade, advindas de classes médias ou
altas, optam pela ocupação de se prostituir, em sã consciência e com condições
de permanecerem nesta ocupação na maior delonga possível.
A esmagadora maioria das pessoas que se prostituem no Brasil
é composta por mulheres, prostituídas por homens, advindas das classes
subalternas. Podemos dizer que a maioria é mesmo proletária e se ocupa na
prostituição não somente para sobreviver, mas para sustentar sua prole e sua
ascendência, muitas vezes também a agregados e para sustentar as condições de
reprodução de sua ocupação, enquanto ela dura. Ou seja, elas mesmas compram
suas roupas, sapatos, alimentos, maquiagens, enfeites, objetos de fetiche ou
outros equipamentos que precisem para o exercício da ocupação.
Há muitas variáveis que condicionam a prostituição em nosso
país. Como fenômeno social ela adquire diferentes contornos, dependendo da
região, do meio-ambiente, do turismo e até mesmo do modelo de desenvolvimento,
da política e da cultura local.
A prostituição brasileira demarca um território muito
contrastante composto por mulheres prostituídas em sua maioria por homens
(90%). Gays, lésbicas, travestis e transexuais também são prostituídos em sua
maioria por homens, em atividades exploradas, facilitadas ou intermediadas por
pessoas de ambos os sexos que almejam lucro ou resultados que se expressem em
bônus de diversas formas.
São atividades intrincadas entre elas, que nos permitem
dizer que até a prostituição mais recôndita e contratada bilateralmente somente
pela pessoa que se prostitui e por seu cliente sofre a interferência das várias
redes que conformam a indústria do sexo neste país.
Primeiro passo para que se faça uma análise o mais coerente
e real possível da prostituição do Brasil é reconhecer que:
As pessoas que estão em situação de prostituição são
trabalhadoras.
Elas sofrem violência de gênero, que são imensamente
discriminadas pela sociedade e que têm sua dignidade de pessoa humana aviltada
todos os dias, mesmo sem mencionar que são “prostitutas”;
Estão submetidas às regras do mercantilismo, do capitalismo,
da herança colonial-patriarcal e de uma rentável e muito organizada indústria
do sexo;
Buscam saídas e dificilmente as encontram, por isso se
rendem a dizer que prostituição é uma “opção” e que há a necessidade deste
trabalho assalariado, com direitos trabalhistas; posto que não têm outra
profissão.
A prostituição ainda é, mormente, uma problemática mais
econômica que psicossocial.
O QUE DIZ A
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O Brasil é signatário da Convenção Abolicionista
Internacional de 1949, que já naquela época propunha que os países deveriam
envidar esforços para elaborar políticas de proteção social às mulheres que se
encontrassem em situação de prostituição. O Brasil assumiu parte das normativas
convencionadas, não criminaliza formalmente as mulheres que se ocupam na
prostituição, porém não oferece seguridade social a elas, assim como não
oferece a outros segmentos de mulheres como o das donas de casa, das
trabalhadoras rurais, das artesãs, das cabeleireiras, das domésticas (embora a
legislação esteja avançando) etc.
Prostituir-se é mais uma das ocupações desvalorizadas das
mulheres, mas longe de ser uma ocupação como outra qualquer, pois ela traz mais
estigmas, discriminações e vulnerabilidades do que todas as outras juntas.
Do ponto de vista criminal, o Código Penal Brasileiro
criminaliza a maioria das pessoas que se empenha na organização, facilitação ou
exploração da prostituição alheia e apenas flexibiliza (com a nova lei
12015/2009) o lenocínio propriamente dito, que é manter “casa para fins de
exploração sexual” por conta própria ou de terceiros. Mas, não criminaliza quem
se prostitui e nem o “cliente” daquela (e) que se prostitui.
O escopo da lei penal no que tange a prostituição se encontra
no Capitulo que trata do lenocínio e do trafico de pessoas, entre os artigos
227 e 231-A do Código Penal.
Durante décadas que ultrapassaram séculos a prostituição
explorada pelo lenocínio, por proxenetas e rufiões deveria ser criminalizada
como crimes contra os costumes. Muitos criminalistas não entendiam o porquê de
se manter no Código penal artigos como o 227 e o 229 sobre induzir alguém a
satisfazer a lascívia de outrem ou manter casa para encontros libidinosos ou
onde ocorram prostituição, por não considerarem que os bens jurídicos e
materiais ameaçados e atingidos por estes tipos penais fossem merecedores de
uma tutela, pela dificuldade em se provar estes ilícitos ou mesmo porque,
embora constem no Código penal obedecendo ao principio da reserva legal e da
anterioridade da lei, estas práticas ilícitas assim como as outras deste bloco
de artigos do Código são largamente realizadas na sociedade, anunciadas em
jornais, em casas que possuem placas e cartões promocionais e que denotam o que
e feito em seu interior. Mesmo assim nada e feito no sentido de dar eficácia a
estes artigos, denotando que a sociedade, nem a policia e nem o Estado lhes dão
valor.
Muitos julgados com estes argumentos que inocentaram
proxenetas e até mesmo rufiões, semelhantes aos anteriormente expostos, têm
servido como jurisprudência até hoje, principalmente, por juízes que pouco
levam em consideração a violação do principio da dignidade da pessoa humana
para consubstanciar suas sentenças, por não o considerarem um principio que rege
o direito penal, mas que rege o direito como um todo. Estas mentalidades ainda
estão famuladas em que a dignidade a que se deveria auferir e recompensar (se e
que alguma deveria ser auferida e recompensada) era a da falsa moral social e
os costumes.
Mas, foi exatamente a dignidade humana, que deve ser
vivenciada também na sua dimensão do exercício do amor sexual, o principal
matiz para que o Código penal brasileiro fosse alterado pela Lei 12015 de 2009,
que entre outras coisas, colocou os crimes de lenocínio e tráfico de pessoas
como crimes contra a Dignidade e contra a Liberdade sexual e não mais como
crimes contra os costumes.
A exegese quanto aos bens jurídicos e até mesmo aos objetos
materiais ofendidos para merecerem uma tutela penal nestes temas mudou. As
dimensões de qualificação e finalidade nos tipos penais ganharam muito mais
relevância. Para aqueles e aquelas que o desvalorizavam esse capitulo do Código
Penal agora adquire ainda mais valor, porque o centra em relação a um principio
que diz respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana: a dignidade.
A dignidade de pessoas, em especial de mulheres, é o que
concretamente vem sendo violado com a forma como a exploração da prostituição
se dá no país, a despeito da tolerância ou não dos mecanismos capitalistas do
Estado e da sociedade brasileira e a despeito de ser um costume esta
exploração. Trata-se de um costume aceito porque é um requinte patriarcal,
herança da colônia, parte do estupro colonial, batizado pela filosofa Sueli
Carneiro, que negras escravas e brancas vindas da Europa sofriam para conformar
o miscigenado e machista povo brasileiro.
É muito importante também distanciar a noção de liberdade
sexual respeitada para que a exploração da prostituição possa ser legalizada
daquela verdadeira liberdade sexual almejada por toda pessoa humana, como
expressão da sua possibilidade de ser feliz em sua intimidade e de maneira não
tutelada ou intrometida por ninguém.
Não é bem a liberdade de se prostituir que as pessoas que se
prostituem buscam, mas o direito humano de não se prostituir ou de não serem
vistas como prostituídas e marginais pela sociedade como um todo. Estes
direitos devem lhes ser garantidos no hoje e na atualidade da história e não
postergados para um incerto momento ideal em que todos e todas respeitarão os
direitos humanos e atingiremos a tão almejada dignidade humana.
Na realidade concreta do dia-a-dia o que vemos é uma dura
situação em que mulheres de todas as idades, de todas as regiões, mas,
principalmente, negras advindas de regiões paupérrimas e das fronteiras
intermediadas por grandes projetos de desenvolvimento e por grandes vias, por
terra, ar, rio e mar são discriminadas, xingadas, excluídas e marginalizadas
pelo sistema informal de punição e criminalização que existe neste país, em que
seu principal agente ao invés de proteger seres humanos da ignomínia da
violência e da insegurança os introduz ainda mais em situações vexatórias de
indignidade, violência e desumanização.
Falamos do Estado e de seu aparato policial-militar. Falamos
também do poder da justiça que ainda não se imbuiu de institutos e de meios de
fazer valer as normativas legais assumidas no ordenamento jurídico brasileiro
para conter esta criminalização informal que somente aprofunda sexismos e
desigualdades de classe, gênero, raça, orientação sexual e etnias.
Falta à justiça e aos defensores/as de direitos humanos
entenderem sobre quem se prostitui e como se dá, de fato, a prostituição no
Brasil e tratar isto de forma crítica e de acordo a paradigmas que questionem
as desigualdades anteriormente mencionadas.
Com relação às desigualdades de gênero, falta também
enfrentar as terríveis desigualdades estabelecidas histórica e culturamente
entre as mulheres, mas que se expressam principalmente no binômio santas x putas.
Enquanto as mulheres não superarem todas as formas de discriminação existentes
entre elas mesmas nenhum dos grupos alcunhados por estes rótulos sociais
poderão se encontrar com a dignidade humana que pode vir de um real sentimento
de liberdade e de autonomia, que a nenhum será dado, mas conquistado com a
aproximação virtuosa entre ambos e a superação deste par contraposto, que tanto
mal faz às mulheres e aos homens de forma geral.
Com relação à forma como estas mulheres são exploradas no
mundo do lenocínio ou do tráfico de pessoas, falta compreenderem as intrincadas
redes mercadológicas e de objetação do corpo da mulher como algo a ser colocado
no mercado seja como ferramenta ou como máquina sexual para produzir o
principal produto objeto de necessidades e desejos: o paupérrimo prazer/alívio
cultivado pelas fantasiásticas fabricações de necessidades do capitalismo,
prazer muito distante daquele sonhado pelo sonho da liberdade sexual e da
autonomia do movimento feminista.
A PROSTITUIÇÃO E
NOSSA VISÃO ANTICAPITALISTA FRENTE AO ESTADO E À SOCIEDADE
Apartadas e apartados de tudo o que já foi dito, para
chegarmos a propor alternativas além da prostituição ou como vivê-la com mais
dignidade enquanto for meio de subsistência das pessoas dentro desta ordem
capitalista é preciso fazer uma acurada análise sobre até que ponto mesmo a
prostituição produz relações passiveis de ser computadas como relações
capitalistas que, portanto, mereceriam e precisariam ser regulamentadas em
níveis de produção, de mercado e de financeirização.
A primeira pergunta que nos devemos fazer é se é mesmo uma
forma de trabalho. Quem vende, quem compra, quem atravessa, o que compra? Gera
riqueza? Há lucro? Quem tem esse lucro? Em que medida, o/a explorador/a
capitalista tem mais-valia? Em cima de quê? Em caso de regulamentação da
ocupação de prostituição quem seria patrão, quem seria empregada/o
assalariada/o? Seria mesmo necessária uma regulamentação para uma ocupação
autônoma e que deveria contemplar apenas as pessoas envolvidas na atividade do
amor sexual, seus corpos e suas decisões sobre eles?
Outras perguntas importantes: Qual é a rota virtuosa nas
atividades relacionadas com a prostituição, do ponto de vista de quem ganha e
do ponto de vista de quem trabalha, para que se considere a prostituição como
mera relação entre trabalhador/a e capitalista? Quem detém os meios de
produção, quem detém a força de trabalho?
Qual é a mercadoria que vale mais do que vale na
prostituição? É o trabalho da “pessoa que se prostitui”? Se for, então, por que
o/a capitalista seria o patrão/patroa se o corpo/meio de produção principal é
da própria trabalhadora ou do próprio trabalhador? A quem caberia a decisão e
escolha do que e como fazer? Não se trataria de trabalho pessoal e autônomo a
cada novo contrato que deveria ser combinado apenas entre os envolvidos na
atividade sexual? Proxenetas e rufiões não seriam exploradores mesmo, usufruidores
mesmo da atividade e da dignidade alheia?
Os direitos buscados pelas pessoas que se prostituem quando
pensam na ocupação que realizam não seriam muito mais direitos de seguridade
social e de dignidade sexual do que propriamente direitos trabalhistas, os
quais poderiam ser estabelecidos em regimentos ou códigos de ética construídos
entre elas e os próprios clientes e entre elas e as parceiras de trabalho?
Não parece claro que o que se visa regulamentar quando se
fala em regulamentação da prostituição nesta etapa histórica é muito mais o
lenocínio e o rufianismo do que propriamente a ocupação de prostituta? Que o
que se busca mesmo é a descriminalização destes ilícitos penais que hoje se
configuram como crimes contra a dignidade e a liberdade sexual das pessoas, ou
seja, contra direitos fundamentais da pessoa humana?
Cabe ainda perguntar, levando em consideração os círculos
virtuosos de cada parte na relação capitalista, com relação à regulamentação da
prostituição: O que a mulher ou pessoa que se prostitui ganhará? O que ela
passará a fazer? Como ela se formará para isto? O que o/a atravessador/a,
facilitador/a ou agenciador/a ganhará? O que a polícia ganhará? O que o Estado
ganhará? Que tipos de impostos serão criados? O que o Grande Capital ganhará com
a regulamentação da prostituição no nosso país? Que sorte de grandes negócios
seria favorecida com a regulamentação? Que sorte de negócios seria dificultada?
O que a sociedade ganhará? O que a cultura ganhará?
É preciso responder estas perguntas, dentro da lógica
capitalista, para que entendamos o que está em jogo na disputa das três
correntes que enfocam a prostituição porque elas têm intenções diversas, já
vimos isto. Importante também para chegarmos a pensar o que proporíamos como
socialistas feministas de um Partido como o PSOL – Partido Socialismo e
Liberdade, para muito além do capitalismo, como diria Mészarós.
OS PROJETOS SOBRE
PROSTITUIÇÃO APRESENTADOS NO LEGISLATIVO FEDERAL
Nos últimos 20 anos foram os seguintes os principais
projetos de leis propostos na Câmara Federal e no Senado sobre o tema da
regulamentação/ legalização da prostituição:
Projeto para legalizar casas e estabelecimentos de
prostituição (Tartuce).
Projeto Para retirar do Código Penal a parte sobre o
lenocínio, deixando apenas o artigo referente à criminalização do rufianismo
(Gabeira).
Projeto de legalização de trabalhos relacionados com as
atividades prostitucionais e regulamentação dos “trabalhadores da sexualidade”
(Valverde)
Projeto de Lei “Gabriela Leite” que dispõe sobre a
descriminalização do lenocínio e propõe limites para a exploração da
prostituição, mas a admite parcialmente chegando a propor a porcentagem máxima
admissível sobre o valor do programa de quem se prostitui (Jean Wyllys).
Todos são projetos voltados primeiro a descriminalizar o
lenocínio para depois propor a regulamentação da ocupação de se prostituir.
Nenhum destes projetos foi construído, discutido e aprovado pelo conjunto de
pessoas envolvidas na prostituição, nem por movimentos que expressam pensamentos
e práticas relacionadas com as outras linhas além da regulamentarista. As
mulheres em situação de prostituição que não desejam a regulamentação e que são
a grande maioria, as “ex” ou as que estiveram em situação de prostituição, os
homens que trabalham como garotos de programa foram sujeitos excluídos deste
processo e o único sujeito político interlocutor admitido foi a Rede de
Profissionais do Sexo, principalmente na pessoa da sua liderança, Gabriela
Leite, porque desejam a profissionalização, apóiam a legalização do lenocínio e
até chegam a propor a margem de lucro de 50% para os proxenetas sobre a
atividade das “profissionais do sexo”. Mas, elas são minoria neste país. São a
minoria que passa uma vontade como se fosse a da maioria, que, calada e invisível,
não poderá se queixar depois dos malefícios causados por uma mal digerida
descriminalização e/ou regulamentação e nem poderá se beneficiar porque muitas
delas não têm interesse nisso e outras serão excluídas dos novos formatos e
contornos que a atividade prostitucional tomará no país.
Nenhum destes projetos teve a iniciativa popular e todos
foram escritos por homens. São detalhes muito importantes a serem levados em
conta, pois os deslegitimam do ponto de vista do protagonismo e da destinação
das leis e os deslegitimam também, pois o olhar, a visão sobre o corpo das
mulheres e até mesmo as formas de prostituição de homens e mulheres são muito
diferentes em nosso mundo. Detalhes que passam do entendimento, do sentimento,
até mesmo do inconsciente para canetas e computadores na hora de elaborar a
lei.
Foi exatamente esta deslegitimação, principalmente, quanto
ao protagonismo dos sujeitos que derrotou os mencionados projetos de lei até
agora. Muito mais do que o argumento da violação da dignidade humana, do aviltamento
à moralidade pública ou a atuação fundamentalista das igrejas. O desejo dos
sujeitos, a apropriação e validação de uma lei pela maioria são pontos a mais
para garantir sua eficácia e para a aprovação de uma atividade parlamentar.
A PROSTITUIÇÃO E O SOCIALISMO QUE QUEREMOS CONSTRUIR
Preocupado em entender o fenômeno da prostituição no Brasil,
em discutir sobre o tema, principalmente quando um de seus mais importantes
parlamentares em nível federal propõe um projeto de Lei que visa à regulamentação
da prostituição, O PSOL – Partido Socialismo e Liberdade inicia uma série de
debates, com as mulheres do seu setorial feminista, com as mulheres das
diversas tendências políticas que compõem o partido e até mesmo com o conjunto
de filiados e filiadas em núcleos regionais. Três olhares deveriam sobreguiar
estas discussões sobre o tema: que resposta o feminismo junto com o socialismo
daria? Que respostas dariam os diferentes socialismos considerados hoje pelo
Partido? Que respostas daríamos para muito além do capitalismo e seu reformismo
neoliberal?
Faz-se necessário que todas as tendências e setoriais do
Partido discutam a prostituição e construam suas teses sobre ela, e que o PSOL
busque respostas consensuadas pela maioria, a fim de que sejamos compreendidos
e validados pelo conjunto daquelas e daqueles que têm interesse nessa reposta.
Se as mulheres e homens em situação de prostituição participarem da construção
destas respostas, tanto e muito melhor.
Para qualquer modelo de socialismo que pensemos é preciso
levar em conta que na prostituição que queremos enfrentar tem um sujeito com
sexo, geração e gênero majoritário, de uma classe social despossuída e na base
piramidal da sociedade, remanescente de etnias colonizadas, sem acesso às
políticas sociais e/ou proteção social e imerso em um sistema de
desenvolvimento econômico e político que defende e promove o grande capital com
meios neoliberais, sendo, na maioria das vezes o promotor da prostituição
feminina e não o seu coibidor.
Reconhecemos nisto a possibilidade da emersão da luta de
classes? Reconhecemos nas mulheres em situação de prostituição a possibilidade
de se constituírem como um sujeito político? Um sujeito revolucionário em
potencial?
Temos o desafio de ajudar a construir grupos e movimentos
sociais fortes, de politizar as mulheres e homens que estão em situação de
prostituição e mostrar o real cenário da prostituição, quem explora e quem é
explorado. Quais são as redes que atuam nesta questão? Como contribuir para a
organização das mulheres e homens que se encontram em situação de prostituição
sem violar seus direitos fundamentais rumo a propostas para além do capitalismo
oportunista?
É possível fazer movimento de massas no enfrentamento à
prostituição com sujeitas invisíveis? Como fazer? Com que forças e com que
oportunidades?
“O desafio maior do mundo do trabalho e dos movimentos
sociais de esquerda é criar e inventar formas de atuação autônomas, capazes de
articular e dar centralidade às ações de classe contra o capital e sua lógica
destrutiva. Isso numa fase em que nunca o capital foi tão destrutivo em relação
ao trabalho, à natureza e ao meio-ambiente, em suma, à humanidade” (Ricardo
Antunes).
“A ação contra o domínio do capital em busca do socialismo
deve articular luta social e luta política num complexo indissociável.”
(Mészarós, 1995).
*Bernadete Aparecida Ferreira é presidenta do PSOL –
Tocantins, educadora popular que atua a 22 anos junto às mulheres em situação
de prostituição, tendo sido a I assessora nacional do GMEL – Grupo Feminista Mulher,
Ética e Libertação. É também acadêmica de direito, feminista da AMB e
coordenadora político-pedagógica da Casa Oito de Março – Organização Feminista
do Tocantins.
Fonte: www. casaoitodemarco-to.blogspot.com.br
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